O Problema do Horror em Mago: O Despertar. Parte 1: Sobre o Medo Humano.

Não sei vocês, mas quando li Mago: O Despertar (MoD) pela primeira vez, eu não senti medo algum. Com exceção do conto introdutório, não senti um pingo de medo lendo todas as 400 páginas do livro básico. No final, quando me dei conta disso, percebi que tinha algo errado. Os jogos do sistema Storytelling foram criados para divertir através do medo, tal como os filmes de terror, e se esse não causou em mim tal sentimento, é exatamente por isso que há algo errado. Mas seria comigo ou com o jogo. Talvez ambos e talvez nenhum. E justamente para descobrir onde o medo se escondeu é que resolvi escrever este (e possíveis outros artigos) tentando investigar um pouco mais a respeito desse tema que, ao meu ver, não é só uma questão minha.

A ideia básica vendida na capa do livro do módulo básico, “um jogo narrativo de feitiçaria contemporânea” trás em si a premissa: basicamente, você se divertirá ao passar por histórias lidando com o sobrenatural que acontece através da feitiçaria. Claro que, jogando MoD, a gente se diverte com muitas outras coisas, mas a ideia central da diversão é essa. E, se for assim, temos três pontos a considerar: as histórias de terror, o sobrenatural, e a feitiçaria.

O terror primeiro.


Começando com uma classificação básica, pois para falar das coisas complexas devemos primeiro esclarecer as básicas, podemos assumir que o terror é a palavra que usamos para descrever uma situação em que uma ou várias pessoas reagem com qualquer grau de medo, tal como quando encontram um animal o qual temem (já vi algumas mulheres quase desmaiarem ao encontrar uma barata ou lagartixa) ou quando passam por uma situação de risco de morte (quem já teve a experiência de ser assaltado a mão armada sabe muito bem do que estou falando, bem como quem sobreviveu a algum acidente).

Sendo ainda mais específico, a psicologia nos ensina que o medo é a principal reação natural de alguns organismos (e a nossa espécie é um deles) a situações que envolvem risco de morte. O medo foi o comportamento filogeneticamente selecionado através da evolução como mais uma ferramenta para garantir a sobrevivência do organismo e da espécie. Numa situação em que há risco de vida (como quando nossos ancestrais das cavernas encontravam, por exemplo, um leão) existem três respostas básicas: fugir, enfrentar ou se submeter.

Sempre que a resposta ao risco de morte for fugir ou se submeter, tal resposta será acompanhada por uma descarga de substâncias químicas no Sistema Nervoso Central que causarão a sensação de medo. Isso não acontece na resposta de enfrentar no mesmo grau que nas respostas de fuga ou submissão porque a adrenalina despejada na corrente sanguínea leva a outros sentimentos que não medo (mas misturados com ele). Como podem ver, a sensação de medo vem depois da reação, ou seja, não é o medo que faz a gente reagir, mas a reação que faz o medo.

E isso tudo para quê? Nada que existe em nós existe sem motivo. O medo que sentimos depois da reação serve para aprendermos. A psicologia também nos ensina que nossas emoções servem para melhorar nossa aprendizagem, e o medo serve justamente para marcar uma situação e uma resposta dada a tal situação. Então, se aquele nosso ancestral sentiu medo ao encontrar o leão e fugir dele, então na próxima vez que encontrar um leão, sentirá medo mesmo antes de reagir, o que tornará mais rápido sua resposta de fugir. Melhor: só de ouvir o rugido ou os barulhos que acompanharam o leão, ele já vai se borrar todo.

Existem, como eu disse, situações que nos fazem sentir medo independentemente de termos passado por essa experiência de aprendizagem, e situações que só passam a ser assustadoras depois de termos aprendido. E ambas as situações podem e devem ser usadas nas nossas experiências narrativas. As do primeiro tipo, as que já vêm de fábrica, envolvem coisas óbvias que ameaçam a nossa vida ou a vida de pessoas próximas (ou ainda de pessoas da nossa espécie). O grande problema desse tipo de medo é que como nossa espécie aprende muito, e com muita facilidade, digo que 90% de tudo que nos causa medo, foi aprendido durante a vida.

Para ser sincero, só conheço um evento que amedronte até em bebês, ou seja, que causa medo independentemente da experiência de vida: barulho alto. Um ruído alto vindo do nada quando não se espera mata qualquer um de susto (e chega ser um clichê nos filmes de terror). Já experimentou fazer isso durante suas sessões de jogo? Quando os jogadores menos esperam, grite um “BANG!” simulando um tiro, ou um grito de dor, bata com os livros (tomando cuidado para não estragá-los, é claro) imitando uma porta que se bateu ou qualquer coisa que venha à sua memória (um rugido de uma criatura selvagem, um metamorfo então, pode fazer qualquer um correr).

Eu até afirmaria que alguns animais metem medo naturalmente, devido à sua ameaça óbvia à vida, mas não afirmo isso cientificamente. É plausível pensar que um cachorro enorme rosnando para alguém causa medo, mas acredito que isso acontece muito mais porque reconhecemos que o animal é uma ameaça do que por um mecanismo natural de todos nós. Cobras, aranhas, escorpiões poderiam entrar nessa seção, mas nunca ouvi sequer uma história (quanto mais um estudo) dizendo que bebês choraram ao verem (ao vivo ou em figuras) uma serpente pronta para o bote, ou qualquer outro animal peçonhento.


Mas se a maior parte dos nossos medos é aprendida, isso tem algumas consequências interessantes para a narrativa e outras não tão interessantes assim. As interessantes dizem respeito que, como participamos de uma mesma cultura, então aprendemos a ter medo de muitas coisas em comum. Os tais animais peçonhentos (e outros não tão peçonhentos assim, como a barata e lagartixa daquele) são clássicos da cultura comum. Armas de fogo também o são, para uma grande maioria da população. Grandes alturas, ficar sozinho (ou seja, não contar com a ajuda de ninguém, possível problema de segurança...) e a escuridão (não saber o que há aos arredores e supor o pior, outro possível problema de segurança) também são clássicos. Vale lembrar que podem haver pessoas que graças à sua história de vida, são exceções para essa regra. Faça uma lista das coisas que você acha que todo mundo tem medo e tente distribuir esses elementos aleatoriamente pela sua crônica, e fique atento para aqueles que funcionarão e aqueles que não. Aprenda com a experiência.

Um dos grandes elogios que faço ao novo Mundo das Trevas (nMdT) é justamente deixar claro sua proposta: o tema básico que fundamenta todo o jogo são mistérios sombrios. Que bela escolha! Reúne ao mesmo tempo o medo que sentimos por aquilo que não conhecemos e o medo que sentimos pela escuridão e as coisas ruins que imaginamos estarem escondidas nela. Posso estar errado, e aqueles que conhecem melhor o antigo Mundo das Trevas (aMdT) me corrijam por favor, mas a aposta dos jogos eram o do horror. Diferenciando, o terror pode ser dividido em suspense (medo do que não vê) e horror (medo do que vê). Claro que alguns jogos do nMdT ainda se baseiam muito no horror, como Lobisomem: os Destituídos, mas ter mudado o foco do horror para o suspense, foi, ao meu ver, uma ótima decisão, que conferiu todo um gostinho especial e característico ao nMdT.

Chega de puxar saco, voltemos ao que interessa aqui. A parte ruim de nossos medos serem, em sua maioria, aprendidos é que a pessoa que tenta manipulá-los (no nosso caso, o narrador) terá que descobrir o que cada jogador teme, e, está em vantagem aquele que joga com seus amigos, pois os conhece. Exemplo próprio: sempre que quero fazer um antigo jogador e grande amigo meu sentir medo, incluo na cena a participação especial de algumas aranhas ou de criaturas aracnídeas. É tiro e queda. Um truque sujo é, ao conhecer e conversar com familiares do jogador, perguntar pelas coisas que ele tinha medo na infância.

Isso me faz lembrar de outra coisa interessante e importante para este texto. Grande parte dos nossos medos são aprendidos na infância. Crianças não conhecem muito do mundo, logo o desconhecido delas é imensamente maior do que o nosso, além de que elas não têm a nossa capacidade de racionalizar, ou seja, não possuem a mesma capacidade que os adultos têm de dar explicações racionais às coisas estranhas que acontecem com elas e assim não sentir medo. Muito pelo contrário, uma vez que se conhece muito pouco, a grande maioria das coisas que nos acontece é algo estranho e, dependendo da situação, pode ser muito assustador.

Um exemplo clássico a esse respeito é o experimento (que vocês podem encontrar no YouTube, se não me engano) feito pelo psicólogo americano J. B. Watson. Watson, em posse de um bebê, aproximou dele vários animais peludos, e não notou nenhuma reação além das normais por parte do bebê, mas, das próximas vezes, quando o animal peludo era aproximado da criança, um barulho muito alto era produzido por perto e, depois de algumas vezes que isso se repetiu, bastava chegar um coelhinho inofensivo perto do bebê (sem som alto nenhum) que ele chorava em pavor.


Fico imaginando que aquelas meninas lagartixofóbicas além de terem passado por uma situação semelhante, nunca cresceram para poder racionalizar seus medos.

Em que esse experimento de Watson pode nos ajudar? Ora, se todas as outras dicas para perscrutar os medos dos jogadores (transmitidos inevitavelmente para seus personagens) não funcionarem, crie você mesmo os medos deles! É só fazer exatamente como Watson fez. Não exatamente. Não precisa ficar gritando o tempo todo para assustá-los. Basta apenas associar algo que eles não têm medo com algo que têm.

Um ótimo exemplo que me veio à cabeça foi o filme Terror em Silent Hill. Até hoje fico com medo quando ouço uma sirene daquelas tocando. Logo depois que se ouvia a sirene, no filme, alguma coisa muito ruim acontecia, então, depois da primeira vez que associamos barulho de sirene com coisa ruim, basta ouvi-la novamente para já ir sentindo medo.


Agora um exemplo prático: o personagem escuta um disparo de revólver, e, quando sobe no quarto do filho, percebe o sangue escorrendo por debaixo da porta. Ao abri-la, vê sangue e miolos espalhados por todos os lados, o corpo de seu filho jogado no chão, com o crânio estourado, e a arma de fogo próxima à sua mão (será que foi ele? Gancho para história...). Supondo que esse personagem realmente tivesse uma ligação sentimental com seu filho, o que você acha que ele sentirá da próxima vez que ouvir um barulho semelhante ao disparo de uma arma? Ou quando vir sangue escorrendo? Sim, medo. Medo de que alguém importante tenha morrido de novo. Para sentir isso, basta imaginar essa cena, mas ao invés de um personagem com seu filho, imagine você no lugar do pai e alguém de quem goste no lugar do filho.

Esse exemplo me fez lembrar de uma dica interessante/importante que já estava esquecendo. A evolução da nossa espécie nos presenteou não apenas com o medo vindo de situações que ameaçam nossa própria sobrevivência, mas também com o medo de situações que ameaçam a sobrevivência das pessoas e coisas de que gostamos. Justamente por isso é importante fazer com que os personagens gostem, tanto uns dos outros, quanto de figurantes. Isso é conseguido principalmente com cenas de interpretação da vida comum.

Como narrador, só fui aprender isso depois de um bom tempo: tão importante quanto as cenas em que os personagens combatem seus antagonistas e desenvolvem a trama da crônica são as cenas em que eles vão beber no bar, ou as conversas que têm enquanto dirigem, as compras que fazem juntos, ou as discussões que têm ao assistir um jogo de futebol (nem tanto, mas por aí...). Esse tipo de interação faz com que eles criem laços de afetividade com outros personagens, com figurantes ou mesmo com lugares, objetos, animais.

Imagine que, ao voltar para sua casa, numa noite dessas, você aviste à distância algo muito estranho se arrastando perto do portão de sua casa e de repente a coisa pula com um único movimento para dentro... quem tiver uma boa imaginação provavelmente sentirá medo aqui. Justamente porque a pessoa sabe que em sua casa moram (geralmente) pessoas de que gosta, com as quais se importa. Saiba usar isso em suas narrações. Permita que os jogadores criem laços de afetividade, e depois use esses laços. É o que todo bom filme faz.


Quem reparou no conceito que dei de terror percebeu que o medo é a consequência de uma relação entre uma situação e como a pessoa reage a essa situação. Sendo assim, algumas ferramentas nos permitem aprimorar as situações que causam medo. Mais um exemplo pessoal, eu prefiro jogar Storytelling no fim da tarde, ou ao anoitecer, e em lugares mais reservados. O cair da noite, o escuro são ferramentas ótimas para ajudar a criar o clima (a situação) de terror. Lugares mais recatados são preferíveis para não distraírem ninguém, mantendo o clima por mais tempo.

Outras dicas desse tipo é usar músicas sinistras (procure por álbuns do gênero ambient music  e seus derivados, bem como trilhas sonoras de filmes ou games de terror, lembrando que a maioria dos livros do nMdT têm algumas indicações de bandas e álbuns), ou ainda outros recursos sonoros (faixas de música contendo uivos, gritos, gemidos, portas se abrindo, etc.) e até mesmo fotos, imagens, e semelhantes. Não podemos esquecer dos recursos que alteram a iluminação do lugar.

Para finalizar com as dicas, recentemente li no livro Night Horrors: the Unbidden, da linha de Mage: the Awakening, uma dica muito feliz para a narração, que reproduzirei a seguir, segundo minha própria tradução. O original pode ser encontrado na caixa do lado direito da página 12. Diz assim:

"Não conte, mostre.

Você lerá isto um bocado de vezes, mas vale a pena repetir. O que acabamos de dizer sobre magia e horror fica mais bem exemplificado pela antiga regra do não conte, mostre.

Contar a alguém significa que você diz ‘Magia é assustadora. Você sente horror’. Exceto porque isso não é verdade. Você não pode simplesmente dizer ‘é assustador’ e ficar nisso. Os jogadores entenderão a noção de maneira abstrata, acenando com a cabeça e concordando, mas é uma concordância intelectual. Fria, racional.

Você tem de ir além do que fazê-los compreender abstratamente o que está dizendo e mostrá-los como pegar o que você está largando.

Mostrá-los é algo descritivo: ‘Conforme você puxa a magia do Superno, seu coração acelera, sua boca seca. Você se sente como se estivesse tentando agarrar uma cobra ou um tubarão se debatendo. A qualquer momento a boca do bicho pode se virar para você e dar um bote bem perto do seu rosto.’

Talvez essa descrição seja um pouco exagerada, mas deu para pegar a ideia: você deve mostrar aos jogadores para que a experiência não seja puramente objetiva. Faça-os entrar no jogo levando suas imaginações para dentro dele. Eles te agradecerão por isso."

 

Bem, acabei me estendendo muito analisando o medo humano e posterguei as análises sobre o sobrenatural e a feitiçaria, bem como suas relações com o medo e com o usar isso em Mago: o Despertar para criar a atmosfera assustadora que o livro não criou em mim. Tratarei disso em postagens futuras.

 

Posts em O Problema do Horror em Mago: O Despertar. Parte 1: Sobre o Medo Humano.

O Problema do Horror em Mago: O Despertar. Parte 3: Quem Tem Medo de Bruxa?

A ideia inicial surgiu de um problema: depois que li o livro básico de Mago: O Despertar (MoD), não senti um pingo de medo, e, se tratando de um jogo de terror pessoal, havia alguma coisa errada. Será que feitiçaria não é um tema assustador ou foi o livro que não conseguiu transmitir isso? As...

O Problema do Horror em Mago: O Despertar. Parte 2: O Medo do Sobrenatural.

A ideia original era escrever um texto que suprisse de alguma forma a falta de medo que senti ao ler o livro básico de Mago: O Despertar (MoD). Sentir esse medo durante a leitura de um livro da linha conhecida como novo Mundo das Trevas (nMdT) é importante porque é justamente nessas situações que...

O Autor

Fausto_Veloso

Conhecido pela alcunha de Acusador. Caminhante da Senda da Flagelação, no Reino dos Pesadelos.Tearca, Mestre dos Grandes Mistérios da Mente e Controlador de Fobos, O Próprio Medo. Adepto dos Mistérios do Espírito, e Praticante de Goétia como Ferramenta para Ascensão. "Porque sem oposição não há...