Capítulo 11 – O olhar atento revela

por Hentges em

Décimo primeiro capítulo da crônica Os Espaços Vazios, publicada no blog The Truth's For Sale (links ao final do texto).

Quarta-feira, 27 de janeiro

Cena 01 – Dentro de Casa

A perna ferida de Cutler lateja quando ele se ergue. Está em uma sala de estar que não tem tempo de olhar com atenção. Procura algo para bloquear a porta. Kroll, também ele tombou quando as dobradiças cederam, levanta-se e reposiciona a folha de madeira. Seus perseguidores não podem ser divisados no pátio escuro. A casa encontra-se mergulhada em absoluto silêncio. Uma poltrona é improvisada como bloqueio à entrada.

Na cozinha, uma chaleira de água quente sibila. Procuram por utensílios que lhes sirvam de arma. Foi dessa casa que Cutler ouviu Gladys falando com as meninas. É provável que ainda estejam em algum dos cômodos.

Na sala de jantar – parece pouco utilizada – nada encontram. Quando preparam-se para sair são alertados pelo tilintar da cristaleira. Nada mais balança que não o delicado conteúdo. Kroll aproxima-se com cuidado. A janela ao lado está fechada. Não há nada no chão que possa ter se chocado contra o móvel. O piso tem apenas as marcas resultantes do arrastar necessário à limpeza. Tudo é tão ordenado quanto em um catálogo de decoração. Ainda que seus olhos mostrem o contrário, Cutler sabe que não estão sozinhos naquele cômodo.

Além da sala de estar deparam-se com um banheiro, um quarto de visitas e o quarto de Gladys. Nada de extraordinário nas peças. A última porta testada está trancada. É possível que a mulher esteja escondida ali. Seu objetivo, porém, é encontrar Clinton Weiss.

 Cena 02 – Onde Clinton Reside

A porta que leva da cozinha à área distinta da residência estava trancada por dentro. Trata-se de outra sala de estar, menor e decorada de modo mais despojado. A construção de alvenaria é recente em comparação à velha casa colonial.

Kroll verifica a TV, desligada em um canal de esportes, e o aparelho de DVD, que guarda um velho filme de zumbis. Cutler observa a estante de livros – artesanato, culinária e conservação de cadáveres dominam o espaço.

A sala dá caminho até um quarto de solteiro, tipicamente masculino, e um banheiro. A porta seguinte é destrancada pelas chaves encontradas por Kroll em uma escrivaninha.

É um escritório. Papéis junto de um computador revelam que daqui Clinton comanda os negócios da família. As anotações indicam mais de seu caráter metódico. Cutler percebe que a documentação está preparada como se a cremação de Jebediah Stone tivesse se dado naquela noite. Kroll usa o pendrive encontrado em uma gaveta para copiar informações do hard disk. Os últimos sites visitados por Clinton tratam de técnicas visando separar adequadamente a carne dos ossos de grandes animais para fins culinários.

Cena 03 – A Câmara dos Horrores

Um lance de trinta degraus leva ao porão. Chegam a uma saleta mal iluminada. Quatro cadeiras arranjam-se ao redor de uma mesa de madeira. Os móveis têm aspecto artesanal e apressado. Sobre a mesa, pedaços de cascalho e tampas de garrafa fazem companhia a um baralho gasto e incompleto. As cartas estão distribuídas como se um jogo tivesse sido abandonado no meio. E impossível dizer quais regras seguia.

A porta seguinte, como aquela no alto da escadaria, é colocada abaixo por Kroll. Há uma máquina de café, CDs de jazz e um incinerador de pequeno porte. Poderosos filtros de ar trabalham em força máxima. As janelas foscas que dão para o pátio estão seladas.

Equipamentos de costura e marcenaria ocupam um canto do amplo salão subterrâneo. Pedaços de vegetação de todo tipo preenchem diversas caixas grandes. O material veio do pântano nas imediações.

Sobre uma mesa de metal polido, partes ressecadas de diversos cadáveres aguardam algum destino sinistro.

Cena 04 – O Quarto (Vazio)

Impedidos de sair pela possibilidade de se verem diante de mais criações de Clinton Weiss, dirigem-se à porta trancada no térreo. Cutler bate vigorosamente antes de se decidir pelo arrombamento.

Trata-se de um quarto completamente vazio. A ampla janela que daria para o pátio está impedida por grossas tábuas de madeira.

Percebe-se, no piso, lascas de lenha e um ramo de folhas já enegrecido pelo tempo. Quando Cutler levanta os olhos do chão, percebe Gladys Weiss em um dos cantos da sala. Ele está em pânico, quase estrangulando as duas crianças que abraça. Em pé, parado junto de Gladys, um homem muito alto lança o olhar entorpecido para o vazio.

Gladys – Vão embora. Vão embora daqui!

Atordoados pelo modo como Gladys surgiu na sala, Kroll e Cutler a tratam como outra vítima de Clinton. Quando olham com mais atenção para a mulher e as crianças percebem que elas também foram absorvidas pelos estranhos acontecimentos que se dão nesse local. As meninas têm o semblante vidrado de bonecas, com jóias brilhantes fazendo às vezes dos olhos. O homem alto é outro dos bonifrates de madeira, ossos, arame e vinhas. E a própria Gladys parece usar um deles como vestimenta.

Kroll se aproxima para buscar alguma reação da mãe de Clinton Weiss. Recebe como resposta um duro golpe do boneco de madeira. Ele se posiciona impedindo o caminho até Gladys. Cutler grita exigindo respostas.

Gladys – É no crematório. Lá que ele está. Oh, você deveriam ir embora. Simplesmente ir embora de uma vez.

Cena 05 – Carne versus Madeira

Ruídos no escritório alertam Kroll e Cutler. O primeiro não contém o ímpeto e avança a tempo de ver Clinton Weiss deixando o local. Parece usar uma máscara, mas tudo é rápido demais para ter certeza. Enquanto leva a perseguição adiante, Cutler observa a gaveta que Clinton deixou aberta. Dentro dela há munição para uma pistola e um mapa desenhado com caneta. Retrata o terreno escavado ao fundo dos celeiros. Garranchos algo infantis traçam movimentos rudimentares de tropas militares. Duas frases podem ser lidas. “O Exército do Clinton” e “O Exército do Prefeito”.

Cutler corre até a cozinha e rompe a tubulação de gás que alimenta o fogão. Ouve Clinton gritar no pátio. Logo em seguida é a vez de Kroll fazer o mesmo. Há dor e desespero na voz de seu companheiro. Um cão idêntico ao que os atacou antes está sobre ele. Os dentes serrilhados arrancam tecido e carne quando desprendem-se de seu ombro. Cutler salta sobre aquilo e o afasta. A faca de nada adianta. Kroll ergue-se para perseguir Clinton até o crematório. Sangra em profusão e apenas com muito esforço mantém-se consciente. Evitando ser mordido, ele já provou dessa dor, Cutler aguarda o bote para esmagar sob sua bota o crânio de madeira.

Cena 06 – Mais uma vez, o fogo

No crematório, Kroll vê Clinton Weiss atrás do caixão de Jebediah Stone. Protegido mais do que escondido, usa uma máscara de madeira com óculos e penas. Kroll está ferido demais. Mal consegue reunir as palavras corretas quando se dirige ao homem acovardado logo adiante. Cutler entra logo em seguida. Fecha a porta atrás de si com um estrondo. O impacto arranca parte do braço de um dos três bonifrates com quepe e distintivo que se aproximavam em seu ritmo trôpego.

A porta é pesada, mas sem trancas. Clinton aproveita-se e escapa por uma porta lateral. Cutler grita para que Kroll traga um dos bancos do crematório até ali. Kroll, porém, não tem condições de ajudar. Perde os sentidos sobre o banco assim que tenta arrastá-lo. As pancadas contra a porta se acentuam. Ela não resistirá muito mais. Cutler tira a camisa. Uma, duas, três tentativas são necessárias até que ele consiga um nó forte o bastante nas maçanetas. O improviso resiste por tempo o bastante para que ele arraste um dos bancos e bloqueie a porta.

Carregando Kroll, que começa a despertar, partem na direção que Clinton tomou. Cutler improvisa uma atadura sobre o ombro dilacerado de Kroll enquanto ouve o estrondo das pancadas acentuarem-se. Não poderão ficar ali mais tempo.

O único caminho leva até uma sala reservada com urnas em exposição e, mais adiante, a um depósito. Dali alcançam o lado de fora do prédio. Assim que vê a tubulação de gás, Cutler tem uma idéia. Kroll compreende e avança até um dos buracos cavados no gramado. Nem Clinton nem seus bonecos podem ser vistos. Depois de furar um dos canos, Cutler dirige-se ao depósito e volta com uma garrafa de solvente. Um canivete, um pedaço de tecido e um isqueiro são o bastante para improvisar o coquetel molotov.

Cena 07 – Quando o horror chega ao fim…

Apenas depois de um minuto Cutler e Kroll conseguem levantar-se do buraco no chão. Estão cobertos por terra e detritos. Pedaços de madeira ainda despencam do céu. Cutler vasculha os arredores e avista Clinton cinqüenta metros adiante, na borda do pântano. Focos de incêndio iluminam seu estupor diante da destruição.

Kroll, ferido e cauteloso, observa os arredores. Do crematório apenas algumas paredes restaram. Uma porção considerável da residência, onde gás há minutos vazava da cozinha, também foi destruída. Mas é um dos celeiros, cuja parede fora rompida, que atrai o olhar por mais tempo. Dali é possível ver sacos negros e grandes caixas de madeira desordenadas após o choque da explosão. O conteúdo parcialmente exposto revela corpos. Alguns inteiros, outros não.

Aproveitando-se dos buracos e montes de terra, além do próprio choque que domina o proprietário do local devastado, Cutler aproxima-se sorrateiramente. Mas falha no momento do bote. Clinton saca a pistola. Seu olhar é desvairado. Cutler golpeia na mão com o cutelo encontrado na cozinha. Clinton geme e se arrasta pelo chão em busca da arma jogada metros adiante. Antes que a alcance, é novamente golpeado na mão. Grita. Kroll se aproxima. Cutler pega a pistola e parte atrás de Clinton. Correm na escuridão do pântano. Cutler atira. O projétil atinge o joelho do fugitivo, fazendo-o tombar nas águas escuras do charco.

Weiss – Por que vocês fizeram isso? Eu só queria ficar aqui, em paz com meus bonecos. Monstros!

Perguntas são feitas, mas Clinton está em choque. Apenas balbucia. Kroll insiste para que ele seja levado a um hospital.

Weiss – Me deixem aqui. Eu quero morrer no meu pântano.

Atravessam o charco depois de, com muito custo, convencerem Clinton a apontar a direção da estrada. No caminho, enquanto é carregado pelo esforço combinado de Cutler e Kroll, ele sorri.

Um lagarto feito de pedras cobertas por limo e folhagem se afasta para não ser pisoteado. O olhar atento revela uma dúzia de outros improváveis animais em meio à vegetação. Vidas construídas a partir de matéria morta. Coisas inertes que perambulam.

Já na estrada, percebem que Clinton Weiss não resistiu. Seu último pedido é atendido. O corpo é deixado no pântano. Não demoraria até que seus habitantes artificiais avançassem para aplacar apetites reais.