Capítulo 13 – Encontro às Escuras

por Hentges em

Décimo-terceiro capítulo da crônica Os Espaços Vazios, publicada no blog The Truth's For Sale.

Segunda-feira, 01/02/2010

Cena 01 – Convidados Inesperados

O antigo armazém não parece ter sistemas de alarme e as luzes estão desligadas. O frio que penetra o carro faz latejar o ombro de John Kroll. Precaução, é isso que a dor significa. Enquanto ele se dirige até a porta, Lucas Cutler contorna o prédio em busca de uma entrada secundária.

As batidas contra a barreira de metal ressoam. Demora um minuto até que uma abertura revele olhos nervosos que examinam com intensidade o convidado e os arredores.

- John Kroll. Eu vim sozinho.

Trancas são abertas e a grande porta metálica revela um pequeno corredor que termina em um longo lance de escadas. Ao lado, uma passagem para a área de armazenagem. De cabelos sujos, o anfitrião franzino de Kroll o fita com desconfiança.

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Uma cerca de arame é o único obstáculo no caminho de Cutler até o pátio interno do armazém. As farpas no alto há muito se perderam, mas o cadeado que segura a porta permanece sólido. Subindo com facilidade, Cutler é surpreendido no alto da escalada. Um conjunto de pinos solta-se do concreto e faz pender a estrutura. Ele cai de pé, mas o pouso ocorre sobre uma chapa metálica.

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A reação ao barulho é levar a mão às costas. A arma não é sacada, mas Kroll logo entende que tudo se complicou.

Rivers – São os outros, não é? Você trouxe os outros dois até aqui.
Kroll – Eu vim sozinho, já disse.
Rivers – Fica na escada. Fica aí!

Cutler ouve a conversa graças ao celular ligado no bolso de Krol. Assim que as luzes da área de armazenagem são ligadas percebe que será visto facilmente no pátio vazio. Sobe escadas enferrujadas esperando encontrar uma saída de incêndio. A porta trancada e as janelas estreitas demais se revelam um beco sem saída.

Kroll, enquanto isso, busca tomar o controle da situação. Afasta-se das escadas e cruza o armazém. Ainda que precária, a iluminação é o bastante para que ele desvende a farsa. Os dedos torcidos permanecem no mesmo lugar. Simulam a presença de uma arma na cintura. Mais seguro de si, convence Rivers, esse é seu nome, a abria a porta para Cutler.

Em seguida, quando os ânimos estão mais calmos, a primeira pergunta importante daquela noite é formulada.

Kroll – Por que você me trouxe até aqui?

Cena 02 – Negócios Inacabados

Kroll – E então?

Rivers observa a luz difusa que penetra as janelas e confronta a escuridão projetada ao longo de todo o segundo andar do prédio.

Rivers – Estávamos observando aquele clube há algum tempo.
Cutler – Estávamos?
Rivers – Sim. Eu e algumas outras pessoas. Foi Tyrone quem viu vocês entrando.
Kroll – E foi assim que você soube da gente.
Rivers – Eu já estava de olho no As Extremidades. Tinha algumas suspeitas. Pesquisando cheguei até o blog que você montou.
Cutler - E o que você queria com esse contato?

Rivers contorna a mesa. Sobre ela há um laptop ligado a um cabo de rede e alguns papéis. É o único móvel do amplo ambiente que não o colchão velho e os cobertores sobre ele. Retira da gaveta um jornal dobrado na página policial. A notícia dá conta da morte de um menor de idade. O crime ocorreu há dois dias nos arredores do As Extremidades. A vítima foi encontrada aos pedaços.

Rivers – O garoto da notícia é… era Tyrone.
Kroll – Não estou entendendo nada.
Rivers – Ele me avisou depois de ver vocês dois e o outro cara entrarem. Quando eu cheguei vocês tinham partido. Eu resolvi entrar para checar. Cheguei até o terceiro andar. Tinha um cheiro muito forte de gasolina…
Cutler - Nós tentamos incendiar o prédio.
Rivers – Imaginei. Bem, a única coisa que consegui pegar foi isso.

A máscara negra que Melinda Barton utilizou naquela noite é atirada sobre a mesa.

Kroll – E o restante da roupa?
Cutler - E os corpos? Tinha quatro corpos lá.
Rivers – Não vi corpos. Nem a roupa. Eu tive que sair rápido. Quando cheguei ao terceiro andar comecei a ouvir um barulho estranho. Como se alguém estivesse mastigando. Como um animal grande se alimentando.
Kroll – Que merda é essa?
Rivers – Eu acho que vi alguma coisa. Alguém de Chicago me mandou isso. É uma foto feita por uma câmera de segurança. Olha o tamanho dessa coisa junto do carro.

 

Rivers – Ele também me mandou esse vídeo. São três pessoas que ele conheceu. Uma delas era uma policial de Chicago. O outro era um professor e o terceiro um jornalista. Todos desaparecidos. As imagens foram feitas no Lincoln Park há mais ou menos um ano. Parece que eles são atacados por uma espécie de animal selvagem.
Cutler - E essa coisa que matou três pessoas em Chicago… Você acha que é a mesma coisa que viu aqui? Mas isso é impossível. Não tinha nada disso lá quando saímos.
Kroll – E que merda isso tem a ver com o tal Tailor?
Rivers – Nada, eu acho. Tailor foi um costureiro famoso. Mas parece que ele começou a se entediar. Suas festas foram ficando ousadas, e depois, bizarras. A tal roupa preta era apenas uma das atrações. Chegamos nele quando algumas pessoas desapareceram no bairro onde fica o As Extremidades.
Cutler - É uma região violenta. Ninguém deu atenção.
Rivers – Isso mesmo. Ainda acho que ele poderia ter alguma ligação com o tráfico de drogas por lá.
Kroll – Eu aposto que os traficantes é que tinham algum acordo com ele…
Cutler - Ok, mas isso ainda não responde nada. O que você pretende? Por que nos chamou aqui?
Rivers – Porque eu acho que o que eu vi matou Tyrone. E ainda está à solta.
Kroll – E os outros? O que houve com eles?
Rivers – O que houve com o seu amigo?
Cutler - Não suportou o que aconteceu no As Extremidades e se afastou.
Rivers – É o que costuma acontecer. Estamos na mesma. Poucos conseguem ir adiante… Teve mais alguma coisa a respeito desse lugar que pode ajudar?
Cutler - Eu vi uma criança no terraço.
Kroll – Tudo era esquisito no terraço.
Rivers – Nos idos de 1980 aquele prédio era para onde um serial killer levava suas vítimas. Meninos. Mas eu não cheguei ao terraço.
Cutler - A mesma escada em caracol que levava até o terceiro andar subia para o terraço.
Rivers – Não, vocês estão enganados. Eu subi por essa escada. Mas ela acabava no terceiro andar.
Kroll – Sem chance. Todos nós subimos. Uma escada prateada. Porra, isso está cada vez pior.
Rivers – Esquisito ou não, parece que não acabou. Tem mais algumas coisas que eu quero checar antes de resolver o que fazer.
Kroll – Nós vamos manter contato.

Rivers se nega a compartilhar o material. O esforço necessário para dividir tantas informações atingiu o limite de sua confiança.

Terça-feira, 02/02/2010

Cena 03 – O Pequeno Burocrata

É por volta de dez da manhã quando o funcionário da Prefeitura da Filadélfia entra no antiquário de Cutler. Até então, ele e Kroll discutiam formas de transportar o negócio para o meio virtual. Com o desemprego de um e a negligência do outro, o sustento tornou-se preocupação de ambos.

O homem é gentil e tem as credenciais corretas. Suas dúvidas são respondidas pela documentação que Cutler sempre administrou com zelo. Mas outro comerciante com atividade parecida, viria saber por telefone, respondeu em minutos às perguntas que o burocrata busca ali por quatro horas.

O servidor da Prefeitura despede-se e toma um veículo oficial. Permanece, porém, como tema da conversa entre Cutler e Kroll. Seria Henry Oak mexendo pauzinhos para intimidá-los? Ou aquela mulher que se ofereceu para participar da aquisição dos bens de Jebediah Stone estaria usando de uma abordagem indireta?

Cena 04 – Descanse em Paz?

Agynes Stone está terrivelmente nervosa ao telefone. Precisa saber imediatamente onde se deu a cremação de seu pai, ao que Cutler responde prontamente. Combinam de encontrar-se na residência que fora de Jebediah Stone dentro de uma hora. No caminho, Cutler compra um jornal.

Na seção Policial descobre que o caso de Clinton Weiss, ainda desaparecido, avança. Depois de removidos os escombros de sua residência, afetada pela explosão do crematório, foram encontradas evidências de violação de cadáveres. A polícia do condado de Camden, Nova Jérsei, ainda não tem suspeitos para o que considera ação premeditada. A morte de Gladys Weiss adicionou homicídio à lista de crimes investigados. Aspectos políticos e de fiscalização sanitária, que dizem respeito à negligência de autoridades responsáveis, também estão sendo levantados. Por fim, a administração do Condado solicita que pessoas que tiveram parentes supostamente cremados no local entrem em contato para eventual identificação dos mais de cem corpos encontrados.

Depois de ter lido isso, a após ter sido confirmada a possibilidade de que o corpo do pai pode estar jazendo em meio a tantos outros igualmente sem identificação, Cutler compreende a perturbação de Agynes Stone. Mal sabe ela quão pior é a realidade, e que Jebediah estava a poucos metros do foco da explosão que o espalhou aos pedaços por toda aquela terra amaldiçoada.

Conversam na varanda da residência. Cutler consegue acalmar Agynes, mas não a demove da idéia de buscar saber se o pai encontra-se entre os cadáveres que Clinton Weiss deixou para trás. Ela toma a atitude como uma forma de reaproximação, reconciliação. Algo que deve fazer sozinha, ainda que Cutler se ofereça para acompanhá-la, se assim desejar.

Com alguma relutância, ela entra. Cumprimenta Kroll, que cruelmente deixa à vista o jornal onde se pode ler a notícia a respeito do crematório. Agynes estremece e volta-se para uma das prateleiras. Do meio de outros livros empoeirados retira um volume com seu nome na capa.

Agynes – É o primeiro que escrevi. Não sabia que ele tinha um.

Sorrindo sem-graça, Agynes passa algumas folhas. As diversas passagens em branco a deixam intrigada. Pergunta-se o porquê de seu pai manter uma edição defeituosa. Antes de despedir-se, toma nos braços uma caixa com objetos pessoais que Cutler separou. Junto vão documentos dando contra da transferência do corpo de Jebediah Stone e sua cremação.

Kroll – Isso ainda vai dar problema.
Cutler - Não sei. Mas pelo menos não se pode dizer que temos culpa.