Capítulo 16 – A Caçada

por Hentges em

Décimo-sexto capítulo da crônica Os Espaços Vazios, publicada no blog The Truth's For Sale.

Quinta-feira, 04/02/2010

Cena 01 – O que Rivers tem a dizer

Nada e coisa nenhuma. Após horas diante dos vídeos copiados no Lar da Criança da Filadélfia, nenhuma imagem de Tom deixando seu quarto. Saiu pela janela, mas como? Cutler resolve distrair-se com uma passada rápida no mercado próximo. Retorna com duas sacolas e uma garrafa de Jack Daniel’s.

Kroll chega em seguida. Tratam rapidamente do trabalho no site do antiquário. Bebem um terço da garrafa enquanto discutem hipóteses que ligam Tom e o Sr. Claude ao clube As Extremidades e Tailor. Quando os palpites ameaçam esgotar-se recebem mensagem de Rivers:

- Phineas Claude e o Por Trás da Máscara são nomes relativamente famosos, mas desconhecidos até três anos atrás. Ao que tudo indica, o homem é temperamental e com a tendência a não atender aos pedidos de qualquer um. Sem uma relação de clientes é impossível chegar a um perfil. Porém, ele foi alvo de um processo por parte de um deles. Virgil Walters alegou presença de material tóxico nas peças. Afirmou ter sentido náuseas e tonturas após usar uma das máscaras do Sr. Claude. O caso não foi adiante após uma análise revelar a ausência de produtos que poderiam causar tais efeitos. Isso foi há seis meses.

- O Lar da Criança da Filadélfia é um dos mais respeitados da cidade. Apesar de administrado em conjunto com a Prefeitura, quem comanda o dia-a-dia é uma entidade encabeçada por Rose Fairweather, advogada que ganhou notoriedade em casos envolvendo abusos contra menores. Ela não atua mais, dedicando seu tempo integralmente ao projeto social.

- Não existem informações a respeito do desaparecimento de crianças no Parque Fairmount. Pelo menos não a ponto do fato chamar atenção. Rivers anexa, porém, uma notícia daquele dia ao texto.

A mensagem sugere que o favor em breve será cobrado. Ela encerra com um desejo de boa sorte.

 Cena 02 – Chegada e Recepção

Por obrigação e pela necessidade de combater o frio o policial circula nas imediações do Parque Fairmount. Kroll e Cutler deixam o carro e discretamente partem até onde o grupo de garotos jogava baseball na tarde de ontem. Assim que cruzam o diamante ouvem gritos atrás de si. Não satisfeito com a caminhada noturna, o oficial demonstra atenção apurada e, pior, disposição para uma corrida leve. Acelerando o passo e ignorando a advertência, avançam até encontrar onde esconder-se. Maldito porco entediado é uma idéia que poderia ocorrer a ambos.

Ofegante, de lanterna em punho, ele averigua os arredores. Depara-se com as pegadas de Cutler e, em seguida, com o próprio, que se preparava para deixar o esconderijo improvisado atrás de uma pedra.

Oficial – O senhor não pode entrar aqui! Um homem foi atacado. Essa área do parque foi restringida.

A contragosto, Cutler é conduzido de volta até a região menos arborizada do parque. Dirige-se lentamente até o carro. Certamente com a sensação de dever cumprido e não querendo ocupar-se de um adulto teimoso, o policial toma outra direção. Do porta-malas Cutler retira as duas sacolas. Estão cheias de carne. Cumprindo uma rota diversa, encontra Kroll no ponto onde se separaram.

Cena 03 – Pistas na Neve

Carregando cada um uma sacola, avançam pela escuridão com as lanternas mirando o chão. Refazem o caminho tomado na tarde de ontem, quando Tom foi encontrado junto de uma árvore especialmente frondosa.

Mas as trilhas que a neve se ocupa de ocultar, a noite que ilude a memória, ou ainda a apreensão diante da pequena delinqüência que significa estar onde estão… Um desses motivos ou todos eles juntos levam Kroll e Cutler a inadvertidamente desviar-se de seu objetivo. Detém-se diante de uma ponte seca que une um dos muitos trajetos de passeio que cortam o Parque Fairmount. Sob ela as faixas amarelas da polícia refletem a luz das lanternas.

Kroll cruza o bloqueio e rapidamente vasculha o espaço que serviu de abrigo improvisado. Há ali um colchão velho de acampamento sobre os quais estão alguns trapos sujos fazendo as vezes de lençóis e travesseiro. Parcos instrumentos de cozinha foram espalhados junto do que era uma fogueira. Em uma sacola com pedaços de papel e quinquilharias Cutler encontra uma medalha de cunho religioso. Identifica as pegadas dos policiais que estiveram examinando a cena, as de Marcus Knowles e de um bom número de cães. Outras, porém, lhe perturbam mais: sinais da presença de uma criança.

Afastando-se dezenas de passos enquanto segue as pegadas, Cutler se depara com outra área isolada pela polícia. Desta vez as faixas formam um quadrilátero sustentado pelos troncos de árvores. A neve está pintada de sangue. Os minutos examinando o local resultam em coisa alguma.

Kroll, por sua vez, permanece intrigado por não terem encontrado a árvore visitada no dia anterior. Circula nas imediações até que se depara com o rastro de cães. Um grupo grande. Terminam sob o a ponte seca que acabara de examinar. Identifica a origem das marcas a partir de uma planta jovem, pouco mais do que uma muda, quase que totalmente encoberta pela neve. Os arredores revelam-se familiares. Ali é o ponto onde deveria estar a “porra da árvore”. E é dali que partem os rastros da matilha.

Cena 04 – Isca Mordida

Tomando nas mãos as sacolas cheias de carne, Cutler começa a espalhar seu conteúdo pelas imediações. Não sabe ao certo o que vai atrair, mas é sua melhor cartada para descobrir o que está acontecendo.

Kroll permanece incerto quanto à posição. Recorda que, na tarde anterior, não conseguia ver a árvore que lhes serve de referência quando observada do campo de baseball. Com isso mente, afasta-se. Supõe que a mudança de perspectiva venha a facilitar a localização do ponto correto.

Antes que termine de esvaziar o conteúdo das sacolas, Cutler é atraído por um ganido. Um vira-lata maltratado se aproxima. Fareja os arredores sem aproximar-se. A pata erguida em meio a uma passada denuncia sua desconfiança. Cutler abaixa-se lentamente. Tenta parecer amigável. O cão assusta-se e corre até topar com Kroll – ele responde positivamente ao primeiro sinal de afago. Tem várias cicatrizes pelo corpo, antigas e recentes, uma orelha fendida e muita fome, avançando sobre a carne assim que Kroll retorna com ele.

Agora acompanhados, avançam até o segundo ponto do parque isolado pelas faixas da polícia. Sem saber ao certo para quê, Kroll recolhe alguns pêlos encontrados no solo, presos na vegetação que escapou do cobertor gélido. Antes que leve a amostra até o bolso nota a agitação do vira-lata. Late para a escuridão adiante, avançando sem poder ser contido.

Cena 05 – A Matilha

Atrás dele, Cutler e Kroll movimentam-se com cuidado sobre a neve fofa. Começam a perder a sensibilidade dos pés. A respiração de ambos, pesada pelo esforço naquela noite de temperatura negativa, é interrompida quando os latidos transformam-se em ganidos. O som aflitivo cessa em segundos.

O cão que há instantes os acompanhava agora é a carcaça jazendo além de um agrupamento de árvores. Kroll aponta a lanterna para as trevas. Pares de olhos refletem sua luz. A matilha os espreita.

Cutler atira entre eles e os sinistros pontos amarelos a sacola com os últimos nacos de carne. Lentamente, em passadas calculadas, os predadores deixam seu abrigo. Farejam e rosnam, com a boca ainda pintada pela última refeição parcialmente devorada. São crianças.

Têm cabelos desgrenhados e os olhos selvagens; olhos ávidos que refletem luz como os dos cães. Aproximam-se da carne, mas logo os rosnados ameaçadores do líder prevalecem. Pêlos escuros percorrem torsos magros e as costas das mãos que terminam em unhas grossas. Mas são aquelas faces, de maxilares e mandíbulas anormalmente proeminentes, que as brutalizam mais. Não há traço remotamente infantil naquelas bestas.

Kroll – Vamos sair daqui.
Cutler - Não mesmo. Você vai chamar atenção do líder.

Kroll agacha-se e começa a bater com as mãos contra a neve. Sabe o que precisa fazer. O grupo distrai-se e hesita. Antes que seu líder decida entre atacar ou fugir, Cutler avança. O spray de pimenta dispersa a maioria da matilha. Uma segunda carga afasta os mais persistentes.

Às cegas, o líder salta e fecha a mandíbula no antebraço de Kroll, que buscava agarrá-lo. É a mesma dor de um pesadelo recente. Cutler golpeia e derruba ambos. O tranco não impede a continuidade da mordida. Músculos e tendões são rompidos quanto a criatura sacode histericamente a cabeça. Em pânico, Kroll não consegue acionar o taser na posição correta.

Com um estrangulamento Cutler consegue separá-los. Kroll soca desesperadamente. O abraço, contudo, dura pouco diante do frenesi convulso daquilo que um dia foi humano. Acuada pelos golpes de ambos, o líder da matilha ensaia a fuga. Kroll, sangrando em abundância, reúne forças para apontar o taser. O mecanismo defeituoso pela umidade emite um choque que percorre todo o corpo e o arremessa de volta ao chão.

Ileso, Cutler segue seu alvo. A fuga sobre quatro patas é impedida pelas diversas escoriações. Um último chute na altura do quadril encerra a perseguição. Cutler saca a pistola e prepara-se para golpear na altura da nuca. Pela primeira vez, porém, ele vê algo de humano naqueles olhos agora assustados.

Cena 06 – Epílogo

Na saída do Parque Fairmount oficiais de polícia trocam o turno de guarda. Kroll abandona a vegetação e grita por socorro. As marcas e o sangue não deixam dúvidas: mais um ataque ocorreu. Cutler, refugiado na mata, aguarda que viaturas e ambulância dispersem para chegar até o carro. O destino da presa desacordada é o porta-malas e, em seguida, o sótão vazio da sua nova propriedade. Confere duas vezes os nós das cordas e mordaça antes de sair.

No hospital, Kroll esquiva-se das perguntas de oficiais de polícia com respostas satisfatórias, ainda que vagas. No quarto compartilhado, revés causado pela ausência de um plano privado de saúde, um homem envolto em bandagens ocupando a cama vizinha apenas aguarda a partida de médico e enfermeira.

Knowles – Foram os filhotes que fizeram isso em você, não foram?