Capítulo 24 – A Escuridão mais Profunda

por Hentges em

Vigésimo-quarto capítulo da crônica Os Espaços Vazios, publicada no blog The Truth's For Sale.

Segunda-feira, 05/04/2010

Cena 01 – A Culpa da Família Allen

Cutler e Kroll, sob balaclavas, circundam ao longo de uma hora a residência de Evangeline e Victor Allen. Cogitam desativar os sistemas de luz e telefone da silenciosa residência às escuras. Estão cientes de que qualquer descuido atrairá a atenção de vizinhos habituados à tranqüilidade do bairro. Como diversos acontecimentos do passado cansaram de nos mostrar, e como bons discípulos de Occam que por vezes são, resolvem pela abordagem mais simples.

Assim que Victor gira a maçaneta é atingido pelo chute de Cutler contra a porta. O choque parte um espelho no hall. Kroll entra, a esta altura o aturdido anfitrião já tem o braço torcido contra as costas, e repõe as trancas.

Demora alguns minutos até que Victor, sangrando e amarrado junto a um móvel da sala de decoração minimalista, entenda que os dois homens que esbravejam não querem dinheiro ou jóias. Estão ali por causa de Evangeline.

Kroll não demora a dar início ao jogo que Thomas Hoyt conheceu muito bem. Enquanto ameaça por meio de sugestões, Cutler comporta-se como o sádico que mal é capaz de controlar seus apetites.

 Menos de cinco minutos são necessários.

Allen – Eu amava aquela mulher. Eu fiz tudo o que ela queria. Tudo! Sempre! Mas agora ela sumiu… Eva foi embora. Há dois dias. Eu disse que deveríamos ficar aqui. Eu iria protegê-la depois que os outros começaram a morrer. Não adiantou. Ela disse que poderia resolver, mas que precisava fazer sozinha. Sozinha? Eu queria protegê-la, mas ela também queria me proteger de algo… Ela foi ao encontro do irmão que não sonhava mais. O irmão que despertou. Aquele que desenterramos do porão no velho antiquário.
Cutler – Foram vocês… Para onde o corpo foi levado?
Allen – Até a residência carbonizada. Tiramos do pó e levamos às cinzas… Oh, Deus, eu sinto tanta falta dela.

Mesmo diante das conexões estabelecidas, o braço de Cutler segue firme o suficiente para garantir que Vitor Allen possa apenas na inconsciência continuar com suas lamúrias.

Cena 02 – Lembranças não Morrem

Histórias nunca terminam, apenas são contadas novamente. É isso que faz sentir a residência em escombros da falecida Krista King, outra mulher capaz de construir com engenhosa malícia os pensamentos e desejos dos frágeis homens a sua volta…

As marcas do incêndio iniciado por Kroll seguem nas paredes. Rastros de uma longa língua escura. Quase seis meses se passaram e nada mudou. Pedaços de piso e móveis do segundo andar são o entulho enegrecido que se espalha pelo caminho até a entrada do porão. A porta barrada cede após algum esforço.

As trevas ali embaixo são mais profundas que a da madrugada do lado de fora. É como ir para outro lugar. Um perfeito lugar entre mundos, pondera Kroll, em meio a teorias sobre o uso do velho porão para animar um cadáver com algo que não deve ser confundido com vida.

No subsolo os fachos das lanternas cortam a escuridão. Velhas estantes de madeira que não guardam mais vinhos foram arrastadas até junto das paredes. O chão está coberto por fragmentos de páginas com trechos de obras literárias e ocultistas. Do fundo da sala há uma abertura com um metro de diâmetro de onde se desprendem vapores miasmáticos. Um leve ruído de água corrente escapa pela passagem escavada. Ao centro, uma mesa serve de cama a um manequim. Seu braço e pulso estão retorcidos. A perna seccionada repousa junto do tronco de cintura delgada. As feições ausentes na madeira rústica são de mulher. Os únicos tracejados são os dos ratos que se fartaram.

Antes que possam ir adiante com suas impressões, são alertados pelo ruído dos degraus. Encoberto pela escuridão, Kroll se refugia junto à escada. Cutler posiciona uma lanterna e dela se afasta. A distração cumpre seu papel. Atraído pela luz, o homem que anuncia estar armado é derrubado por Kroll. Seu ombro rompe-se com um estalo.

Preso com as próprias algemas, o detetive Henry Oak está completamente à mercê dos captores mascarados. Ainda que o ombro o faça gemer dolorosamente, não é essa a ferida que mais o perturba.

Oak – Eu venho aqui de vez em quando. Eu subo o que restou das escadas e espero perto de onde era o quarto dela. Onde ela gostava de pintar. A mulher que morava aqui, eu amava ela. O nome dela era Krista. E eu não vou descansar até pegar quem fez isso. Vocês não podem me matar.

Cutler ouve e ameaça. Do mesmo modo que Kroll, busca disfarçar a voz e o modo de falar para que Oak não os reconheça. Os ouvidos do detetive, porém, não se deixam enganar pelo arremedo de gírias.

Oak – São vocês dois. Kroll e Cutler. Eu reconheço as vozes. O que vão fazer? Me deixar aqui? Não faz nenhuma diferença. Se eu não pegar vocês, alguém vai. O amigo de vocês, Kallinger, ele já falou bastante para esconder a própria sujeira. Acabar comigo não acaba com os problemas de vocês. Na verdade, eles só vão aumentar.

Amordaçado e vendado, Oak ouve Kroll e Cutler utilizando uma corda para atravessar a passagem na parede e mergulhar na escuridão mais profunda.

Cena 03 – O Covil

Kroll desce primeiro. Há fragmentos de unha presos às paredes de argila. Beira o insuportável o odor carregado pela água escura tocando seus joelhos. Cutler vem em seguida. Observa que a estreita passagem foi escavada a partir da galeria subterrânea até o porão.

Por cerca de duas horas vagueiam por corredores abandonados que, apenas ocasionalmente, encontram-se com a rede de esgotos da Filadélfia. Perder-se-iam em minutos não fossem as marcas nas paredes. Os símbolos são indicações feitas recentemente.

O final da trilha de riscos nas paredes leva a uma porção ampla da galeria. Sobre suas cabeças o teto não eleva-se além de um metro, mas a luz de pilhas enfraquecidas mal pode lutar contra as trevas que se prolongam infinitas. Ruidosa, a correnteza pútrida parece encaminhar-se a um escoadouro.

Cutler aproxima-se de uma plataforma natural sobre a qual há uma mesa de madeira e um banco. Kroll permanece junto da entrada do salão. Observa os livros que formam uma barreira partindo da água até quase alcançar o teto. Milhares de volumes empilhados para serem lentamente devorados pela água.

Só então percebe que algo nada junto de sua perna. Um corpo longo e esguio serpenteia e desaparece.

Cutler também viu. As agulhas penetram sua carne quando apenas uma das pernas ainda se encontrava mergulhada. A sensação é compartilhada por Kroll, em cujas veias também já corre veneno.

Sobre a plataforma, Cutler esvazia na água uma garrafa cheia de gasolina. O que era um coquetel molotov pode ser a única chance de Kroll na luta para aproximar-se. A segunda picada o deixa em pânico. O taser é sacado e mergulhado na água. O choque atordoa e afasta as serpentes momentaneamente. As pernas de músculos contraídos o abandonam.

A gasolina sobre a água é incendiada. Manchas de fogo espalham-se e afastam os animais. Mas Kroll some na água. Cutler mergulha atrás do amigo e o puxa de volta, emergindo entre as chamas. A barba úmida salva o rosto das piores queimaduras.

Seguros sobre a plataforma, apenas respiram. Não podem fazer nada contra o veneno. Retornar pelo mesmo caminho seria suicídio. Na mesa vista à distância está um lampião, canetas e lápis. E um livro.

Composto pelos recortes de outros volumes, vem sendo montado há um longo tempo. Trechos de obras sobre ocultismo unidos de modo que extinguem qualquer sentido. As últimas páginas foram preenchidas por registros à mão. São relatos de sonhos, repletos de mudanças abruptas e significados simbólicos. Há espaço para apenas mais uma dessas colagens antes de ser concluído.