CONFLITO, DILEMA MORAL E TRAGÉDIA.

por Fausto_Veloso em

Posso dizer que o texto anterior desta série se dirigia ao elemento "tom" de uma narrativa rpgística (quiçá literária). Este se dirigirá mais à estrutura narrativa, ou melhor, ao "tema". Não sou nenhum especialista em literatura e nem tenho formação nisso (por enquanto), mas o que escreverei a seguir foi produzido através de reflexões fundamentadas nas minhas experiências e investigações. 

Conflito, dilema e tragédia não são apenas elementos essenciais para qualquer jogo de RPG no Mundo das Trevas (MdT), mas são também, cada um, uma especificação do anterior. Meu objetivo neste texto é apresentar as definições desses conceitos de maneira que seja possível empregá-los eficazmente durante as sessões. Apesar de que Narradores possam apresentar muito mais interesse neste texto, também tentarei mostrar como eles são importantes para jogadores na medida em que podem aprimorar a criação de seus personagens.

Comecemos pelo mais básico: conflito é qualquer situação em que existe um recurso que é importante para duas ou mais pessoas mas esse recurso é limitado, ou seja, só é suficiente para uma ou poucas delas. Pensemos em um exemplo simples: há conflito quando dois bandos de leoas estão caçando um mesmo antílope. Um exemplo mais elaborado: duas cabalas de Despertos precisam encontrar um artefato que cancelará uma profecia. 

Na prática, o que importante preparar para haver conflito são as consequências para quem não consegue o recurso limitado. Ficam evidentes as consequências de quem o consegue, mas o que acontece com quem fracassa? É importante programar consequências ruins para quem perder. Do contrário o conflito tem pouca importância. No exemplo das leoas acima, se não conseguir o antílope não lhes causar problemas, então o conflito não tem sentido. Mas e se não conseguir o antílope deixar o bando mais faminto e mais fraco... será que eles sobreviverão ao ataque dos bandos de leões inimigos? No outro exemplo, com certeza as consequências da profecia serão terríveis caso o artefato que a cancela não seja obtido pela cabala dos jogadores.

Resumindo: ao planejar o conflito de cada capítulo, o conflito maior de cada história e de cada crônica não se esqueça de planejar seus elementos-chave: 0 recurso limitado, os competidores/rivais e as consequências do fracasso. 

Agora perceba que nenhuma história de MdT (e nenhum romance também) pode ficar bom sem no mínimo um conflito. Ninguém gostará de jogar/ler uma história completamente pacífica, sem desafio algum. Da mesma forma, personagens sem conflitos não tem nenhum atrativo; são completamente desinteressantes. Notei isso quando estava ajudando meus jogadores de uma história de Vampiro O Réquiem que comecei a narrar no cenário Curitiba das Trevas: os personagens interessantes eram aqueles cuja história tinha no mínimo um grande conflito principal, ou uma série de outros conflitos menores. Um dos personagens, por exemplo, era um médico humano especialista em hematologia que descobriu um gigantesco desvio de bolsas de sangue no banco de sangue. Ao ameaçar contar essa informação para a imprensa local, recebeu uma ligação anônima dizendo que a família dele ficaria muito triste se ele entregasse as informações. Esse era o conflito. Esse era um ótimo personagem. 

Portanto, jogador, ao criar seu personagem, pense: por quais conflitos ele está passando? Por quais conflitos ele já passou? Quais escolhas fez? Quais consequências ruins teve de suportar e como lidou com elas? As respostas para essas perguntas não só constroem a história do seu personagem como deixam uma série de ganchos para serem explorados por você e pelo Narrador durante a narrativa. Por exemplo: um personagem que teve importantes conflitos familiares pode ficar muito emocionado sempre que lida com situações em que novos conflitos familiares aparecem para si mesmo ou para qualquer outra pessoa.

Existe um certo tipo de conflito que é particularmente interessante para as histórias do MdT: o dilema. O dilema é caracterizado por um problema (recurso limitado) para o qual existe no minimo duas soluções, mas (1)  elas são concorrentes, ou seja, se a alternativa A for escolhida, não é possível escolher a alternativa B, e se a alternativa B for escolhida, a A é impossível, e (2) ambas têm consequências ambíguas, ou seja, qualquer alternativa escolhida não só trará consequências boas para a pessoa, mas ruins também. 

Um exemplo bobo de dilema: chapeuzinho vermelho tinha que entregar uma cesta de comidas para sua avó que estava passando mal e morreria se a garotinha não chegasse à tempo, mas, para isso havia dois caminhos, um longo e menos perigoso e um curto e mais perigoso. Essa é uma situação conflituosa e dilemática: ou ela vai pelo caminho longo e corre menos perigo de ser roubada ou agredida mas pode não chegar a tempo, ou ela vai pelo caminho curto, correndo o risco de ser atacada mas com maiores chances de chegar a tempo para salvar sua avó querida. 

Esse exemplo da chapeuzinho vermelho também tem outra característica interessante: trata-se de um dilema moral. Dilemas morais são aqueles dilemas nos quais as consequências também afetam outras pessoas e, assim, adentram o campo dominado pela ética, que é qualquer situação em que o comportamento de alguém é importante para uma ou mais pessoas. 

Dilema moral, sendo assim, é um conflito para o qual existe no mínimo duas alternativas concorrentes mas que podem trazer, ambas, consequências ruins para outras pessoas. Por exemplo: um pai que precisa trabalhar se encontra em um dilema moral se não tiver mais ninguém que possa cuidar de seu filho. Ele tem duas alternativas, ambas com consequências boas e ruins para si mesmo e para seu filho: ou ele vai trabalhar e deixa a criança sozinha (com todos os problemas acarretados por isso) ou ele fica cuidando da criança e perde o dinheiro que será importante para eles mais tarde.

Nem é preciso dizer que personagens e histórias com dilemas e dilemas morais são ainda mais interessantes do que aqueles sem. Agora, algo que é preciso dizer: as pessoas, ao enfrentar um conflito, um dilema e/ou um dilema moral, tendem a escolher as opções de solução que apresentam consequências imediatas e ignorar as consequências à longo prazo. Exemplo: devo fumar ou não este cigarro? Por um lado, a consequência de curto prazo é prazerosa ainda que a de longo prazo possa ser fatal. Outro exemplo: escovar os dentes agora é incômodo, mas se ficar sem escová-los, só muito depois terei cáries. Sem o devido treinamento, tendemos a deixar de escovar. Por fim, outro exemplo ético: as consequências sociais de jogar lixo no chão é o entupimento de bueiros, o que leva a inundações e o prejuízo para muitas pessoas... mas como a consequência de curto prazo é boa (se livrar daquele lixo na sua mão), então... nem precisa explicar o que acontece. 

Para facilitar a vida dos Narradores, os jogos do MdT já vêm com seus conflitos prontos. Em Vampiro: O Réquiem (VoR) o dilema moral pode ser elaborado da seguinte maneira: se eu aproveitar o máximo a minha condição irei ser muito poderoso, e isso é agradável, mas também me tornarei uma besta que causará muito mal às pessoas ao meu redor, mas se eu não fizer isso, se não me tornar poderoso, meus inimigos poderão me destruir. Qualquer uma das alternativas é boa e ruim ao mesmo tempo, para mim e para outros. Lobisomem: Os Destituídos (LoD) também trás um dilema semelhante. Já em Mago: O Despertar (MoD) e Changeling: Os Perdidos (CoP), ao invés de se tornar uma besta, o perigo é perder-se em si mesmo através da ruína espiritual (MoD) ou pela loucura (CoP). Cada um desses jogos até possui uma ferramenta para se medir em que posição desses dilemas morais os personagens se encontram. Diferentemente dos RPG's de fantasia medieval, em MdT o maior conflito de cada personagem é consigo mesmo.

Por fim, tragédia é um estilo de histórias cujo principal atrativo são os dilemas, especialmente os dilemas morais. É que na tragédia o expectador já sabe que alguma coisa ruim acontecerá, não importa quais escolhas faça. Pode parecer que não tem graça alguma esse tipo de história, já que de qualquer forma os personagens se darão mal, mas isso não é verdade. A diversão está em como eles lidarão com as consequências de suas ações, que, apesar de ruins, são ruins de formas diferentes, algumas formas, inclusive, mais aceitáveis ou fáceis de lidar por uns e mais difíceis para outros. De certo modo, todos os jogos do MdT são trágicos. Essa é a essência dessas histórias e, quando abordamos alguma em que as coisas estão indo muito bem, ou o jogo está fugindo de seu gênero (o que não tem problema algum, já que cada grupo se diverte de seu jeito) ou alguma coisa muito ruim só está aguardando para acontecer. 

Espero que, apesar de longo, o texto tenha sido útil . Infelizmente tive de me limitar quanto ao número de exemplos e isso foi por si só um dilema, já que com mais exemplos posso facilitar o entendimento dos leitores, mas com menos exemplos o tamanho do texto diminui e ele fica menos cansativo de ler. Pois é, ninguém escapa dessas tragédias (risos).