Sob uma Lua de Sangue - Capítulo 3

por Aramil em

“Durante o carnaval, os homens colocam máscaras sobre suas máscaras.” - Xaiver Forneret.

Lyn se abaixou e examinou o microscópio mais uma vez. Era a quinta vez naquele dia em que ela retornava à mesma amostra e ainda não se sentia segura o bastante para dar seu parecer ao Centro de Controle de Doenças. Apesar de tudo indicar a presença daquele vírus, algo não estava certo e ela não sabia dizer o que. Depois de mais alguns minutos em frente ao miscroscópio, ela retirou as luvas e foi para a janela. A altura daquele prédio sempre a fazia se sentir melhor, principalmente em dias de neve, quando a cidade inteira parecia coberta de algodão e as pessoas eram apenas pontinhos manchando a sua superfície branca e fofa.

Havia agora dois anos em que ela trabalhava para o CCD e estava se sentindo mais do que satisfeita. Acabara de comprar um apartamento novo na Avenida Volmer, localizada em um dos pontos mais seguros do centro da cidade e estava cursando doutorado em Virologia.

Gostava tanto do seu trabalho que quase não percebeu quanto tempo havia ficado no laboratório. Já haviam se passado treze horas que ela examinava a mesma amostra, tentando chegar a uma conclusão, mas cada vez que olhava no microscópio parecia ficar mais e mais confusa. Talvez um pouco de ar fresco fosse o que ela precisava. Não estava acostumada a deixar o laboratório antes de terminar uma análise, mas ela já estava andando em círculos e sabia muito bem o que os cientistas-sênior do CCD diziam quando os novatos começavam a demorar muito para enviar um parecer.

Retirou a amostra do microscópio e lacrou-a de volta no compartimento de segurança, destinado à amostras sanguíneas altamente contagiosas, e rumou para a sessão de descontaminação, que todos os cientistas eram obrigados a passar sempre que trabalhavam na Área de Alta Risco do laboratório. A maioria dos cientistas novatos odiava passar o dia cercado de amostras tão contagiosas que, caso fossem liberadas, poderima causar uma das maiores tragédias biológicas do país. É claro que haviam dois cientistas-sênior responsáveis por supervisionar o trabalho dos novatos e câmeras de segurança registravam cada movimento de qualquer um que entrasse na área de risco, mas isso não era o suficiente para fazer ninguém se sentir confortável naquele ambiente. Exceto, é claro, Alyne Sullivam.

Eram sete e meia da manhã quando ela finalmente deixou o laboratório e rumou para casa. O prédio do CCD era uma divisão interna da Polícia Federal e ela era obrigada a passar pela recepção de lá sempre que entrava e saía do trabalho, o que, na opinião dela, era degradante. Não que ela se achasse boa demais para se misturar com as pessoas, mas todos tinham que concordar que, sair da paz do laboratório para dar de cara com pessoas gritando e presos sendo conduzidos para dentro e fora do prédio, era demais para uma pessoa. Isso para não falar nos olhares indiscretos que alguns agentes davam pra ela sempre que passavam pela recepção. “Idiotas.” Ela pensava. Mas como cientista novata do CCD, não podia nem comprar briga com os agentes da Federal, pois corria o risco de irritar as pessoas erradas e acabar na rua. A estabilidade para servidores públicos havia acabado em 2012, fazendo da segurança no trabalho um privilégio para poucos.

A recepção essa manhã não estava diferente. Rick Bold, o recepcionista havia a informado que, em apenas uma madrugada as patrulhas noturnas haviam prendido mais de cinco pessoas e relatado aproximadamente nove assassinatos, todos ainda em investigação.

Ela já estava quase na saída quando ouviu a voz de Willian Cooper, um dos cientistas sênior responsáveis por seu trabalho.

“Senhorita Sullivam, tem um minuto?”

Cooper era um bondoso senhor de sessenta e três anos de idade, que havia ensinado a Lyn nesses dois anos muito mais do que ela sonhara aprender na faculdade. Dono de um currículo invejável, o velho Cooper, como os agentes da Federal o chamavam, era responsável pela maioria das equipes do CCD, além de trabalhar com os agentes de campo em alguns casos.

Ela se vira e não pode deixar de abrir um sorriso ao olhar para o rosto do seu supervisor. Era quase impossível não lembrar do Papai Noel.

“Cooper, Bom dia! Claro, pode falar.”

“Você por acaso já terminou de examinar a amostra número duzentos e três?”

“Ótimo, tudo que eu precisava era ser chamada a atenção aqui, na recepção.” Pensou Lyn, enquanto se forçava para achar uma resposta rápida e convincente. A verdade era que, por mais que ela examinasse a amostra, não podia acreditar no que via e precisava de mais tempo.

“Não, senhor Cooper, eu... eu ainda estou trabalhando nisso e-” Ela foi interrompida no mesmo instante.

“Ora deixe de besteira, eu sei que você andou trabalhando nela pelo menos nas últimas dez horas, é claro que você já tem um parecer sobre a amostra.”

“Senhor Cooper, a verdade é que eu acho que errei no exame da amostra. Os resultados não são compatíveis com nenhuma outra amostra sanguínea já vista no laboratório, com certeza há alguma coisa errada.”

“Minha cara Alyne, você pode, por favor, parar de me chamar de “Senhor”? Faz eu me sentir velho assim. Agora, se tiver a bondade de vir até a minha sala...”

Ele girou nos calcanhares e seguiu em seu passo lento de volta ao caminho que levava aos laboratórios. Lyn não teve escolha a não ser segui-lo.

Não era como se ela não gostasse do laboratório ou do seu trabalho. Mas o cansaço estava começando a vence-la quando eles finalmente haviam chegado ao andar da sala do cientista. Ela nunca havia estado na sala de nenhum dos cientistas-sênior e não podia deixar de imaginar como seriam as instalações para alguém com mais de sessenta anos de idade que havia dedicado quase a vida inteira ao CCD.

Após alguns poucos passos andando pelo corredor, adentraram uma porta de vidro com os dizeres: “DIRETORIA DO CENTRO DE CONTROLE DE DOENÇAS”. A porta levava à uma sala redonda e muito ampla, com um segurança armado e uma mesa de recepção, aonde uma jovem de jaleco digitava rapidamente em um notebook enquanto falava com alguém pelo comunicador. Não foi preciso procurar muito para ver que uma das portas tinha uma placa pendurada aonde se lia “W. K. Cooper”. Entraram.

Era de fato diferente de tudo que ela podia imaginar. A sala possuía todos os tipos de gadjets que qualquer cientista poderia sonhar, além de total controle sobre tudo, desde temperatura até a luminosidade. Haviam diferentes tipos de microscópios, prateleiras com pinças, beckers, pepitas, corantes biológicos, substâncias de diferentes cores, amostras fumegantes, lupas que mais pareciam microscópios além de diversos freezers com etiquetas escritas: “Cuidado. Perigo Biológico.”. William se dirigiu direto ao computador no centro da sala, próximo a um microscópio eletrônico e ligou-o.

“Aceita um café, senhorita Sullivam?”

“Ahn? Ah, perdão, eu estava distraída.”

“Perguntei se aceita um café. Você parece prestes a dormir aí, garota.”

“Ah, sim, claro. Obrigada.”

William apertou um botão embaixo da mesa e ordenou:

“Dois cafés, fortes, por favor. Um descafeinado. Obrigado.”

Ele fez sinal para ela sentar-se em uma cadeira e tornou a se virar para o computador.

“Bom, acredito que você tenha visto a amostra duzentos e três e, pela quantidade de horas que passou em seu laboratório de ontem para hoje, creio que deva ter visto algo bem interessante, certo?”

“Cooper..” Ela começou a dizer, escolhendo muito bem as palavras. “Eu acredito seriamente que eu tenha errado em algum momento da análise, provavelmente comprometi a amostra pois os resultados são altamente improváveis e-” Foi interrompida novamente.

“Minha jovem, apenas me diga o que você viu e discutiremos as probabilidades depois, certo?”

Lyn estava se sentindo bastante desconfortável com aquela pressão, mas no fundo estava agradecida por estar ali com William Cooper. Era notório que ele tinha um carinho especial por todos os cientistas novatos e tratava a cada um como se fosse seu filho. Diferente de Roarke Half, que tinha total desprezo por qualquer um que fosse hierarquicamente inferior a ele.

Vendo que não teria escolha, ela limpou a garganta e prosseguiu, falando cautelosamente.

“A amostra apresentava um Rhabdovirus com genoma de RNA simples de sentido negativo. O vírus tem envelope bilípidico, medindo cerca de 170 nanômetros de comprimento por 70 nanômetros de largura e formato de bala.” Ela esperou, deixando seu diretor digerir o que havia ouvido.

Ele respirou fundo.

“E, minha jovem, você sabe o que isso significa?”

“Cooper, veja bem, eu posso estar completamente errada nisso! Como pode uma amostra mostrar sinais de uma doença que foi totalmente controlada há anos?”

“Alyne, Alyne. A CCD colocou em quarentena o dono da amostra que você está examinando nesse exato momento. Examinamos a vítima e o vírus está se modificando de forma localizada nos músculos. Agora, Alyne, você saberia me dizer qual é a cura para essa doença?”

“Não, não há cura. Todas as terapias antivirais falharam, assim como o uso de cetamina e indução de coma terapêutico. O pobre coitado que vocês estão mantendo em quarentena está em uma contagem regressiva para a morte.”

“Mais do que isso, minha jovem. O pobre coitado que está em quarentena matou uma senhora de setenta e cinco anos enfiando um guarda chuva em sua barriga. Além desse, o CCD encontrou mais dois casos pelo país com a amostra de DNA parecida com a desse indivíduo e todos, sem exceção, tiveram surtos psicóticos e mataram pelo menos uma pessoa antes de serem levados pelos agentes da Federal. Não obstante, estão sendo relatados casos de agressividade pelo país inteiro, além de assassinatos.”

“Mas esse vírus está sob controle do CCD desde 2011, seria preciso uma tragédia enorme para que ele pudesse se espalhar por aí.”

“Alyne, o CCD possui três diretores gerais e somente eles têm a chave para a Sessão de Doenças Controladas. Apenas eu, Roarke e Trevisan poderíamos ter entrado naquela sala.”

“E é claro que nenhum de vocês seria louco o suficiente para sair disseminando uma modificação genética do vírus da raiva por aí.”

“Eu estou aqui com você nesse exato momento e passei os últimos dois dias no laboratório. Trevisan foi achado morto em sua sala ontem a noite, eu mesmo fui responsável por examinar seu corpo. Ele apresentava os mesmos sinais do vírus que está na sua amostra...”

Lyn emudeceu. Cooper não poderia estar falando sério. Ela fechou os olhos respirou fundo, tentando controlar seu coração que parecia prestes a saltar pela boca. Um vírus mortal se espalhando pela cidade.. um diretor do CCD morto... E que Deus tivesse pena da Federal e do CCD quando a imprenssa descobrisse tudo isso.

“Lyn.. ainda está aqui comigo?”

“Estou mas... mas e Roarke? Com certeza já estão providenciando tudo para que o vírus seja controlado, certo?”

“Roarke... desapareceu.”

O ar parecia escapar por vontade própria dos pulmões de Lyn.

“Venha comigo, Alyne. Há mais coisas que você deve saber.”

Lyn fechou os olhos mais uma vez, rezando para esta ser aquela hora em que o despertador toca e você acorda suando na cama e atrasada pro trabalho.

Mas não era.