Sob uma Lua de Sangue - Capítulo 4

por Aramil em

“Nós... de agora em diante resolvemos que a Humanidade não mais será ameaçada por loucos e bestas, e que o Mundo será um lugar de Ordem e Razão” - Declaração da Torre de Marfim, 1325

John Crowley havia acabado de sair de casa e dirigia com pressa em direção ao prédio da Central da Polícia Federal. Passava agora pelo centro da cidade, por um labirinto de ruas antigas tão estreitas que, apesar de estar amanhecendo, o crepúsculo ainda reinava naquela parte da cidade. Finalmente, após dobrar uma última esquina, ele havia achado o Largo Central, a famosa praça pública onde a velhinha do noticiário havia sido assassinada na noite passada. Agora já estava bem menos movimentada e uns últimos policiais terminavam de limpar a cena do crime antes de tornar a praça aberta ao público novamente. John decidiu parar o carro em uma das ruas do Largo e seguir a pé para a delegacia. Não achava que sua história iria funcionar, caso vissem que ele ainda dirigia um carro antigo cujo motor gostava de anunciar a sua presença para o país inteiro.

Comprou um café num dos bares noturnos da cidade para espantar o frio e ensaiou mais uma vez o texto em sua cabeça. Estava acostumado a mentir, mas não podia deixar de se sentir nervoso cada vez que tinha que fazer isso na presença de muitas pessoas. Não que ele não fosse bom em mentir, afinal, sua vida inteira era uma mentira, mas é que as vezes se pegava desejando que pudesse contar a verdade à alguém, pra variar um pouco. Mas não adiantava ficar pensando em coisas que nunca iriam acontecer, ele tinha um trabalho a fazer e precisava se concentrar.

Levou apenas alguns poucos minutos de caminhada para finalmente entrar no prédio principal da Polícia Federal. Era como pular de cabeça na realidade. Se alguém ainda achava que havia beleza naquela parte da cidade, com certeza mudaria de opinião ao entrar ali. A entrada principal, que abrigava um fluxo constante de agentes, visitantes e advogados, era como um formigueiro. Mesmo naquela hora da manhã já haviam pessoas entrando e saindo, agentes mal encarados esbarrando nas pessoas, advogados de nariz empinado evitando contato visual e crianças e mulheres com cara de choro indo visitar familiares. O problema, pensava John, era que o prédio da PF abrigava tanto o CCD quanto o necrotério da cidade, tornando aquilo ali uma zona completa.

Localizou rapidamente um guichê de informações e, colocando os óculos escuros, se dirigiu à ele.

“Pois não?” Um atendente gordo, com um uniforme manchado e fedendo a cigarro o havia recebido.

“Meu nome é Henry Gipp, estou aqui a serviço da Defensoria Pública de Hamshire. Gostaria de dar uma palavrinha com Klaus, o jovem que foi levado em custódia na noite passada.”

Se passar por defensor público não havia sido a idéia mais brilhante que já havia tido, pensou John. Mas a vida não era como um seriado de televisão. Não haviam pilhas e pilhas de distintivos e identidades falsas à sua disposição e não havia tempo para entrar em contato com algum falsificador. Tudo que ele possuía era um distintivo de agente da Federal, que obviamente não iria funcionar ali e uma carteira de identificação da Defensoria Pública, que seu pai costumava usar no trabalho.

O atendente murmurou alguma coisa no comunicador, olhando de cara feia para John e, alguns minutos depois, um agente apareceu do seu lado.

John sabia que os agentes da Federal não gostavam nem um pouco da Defensoria. O próprio governo não sabia o que fazer para diminuir a tensão entre os dois órgãos, mas a verdade era que a Defensoria era composta por funcionários humanistas que queriam tratar o crime como algo que podia ser sanado, enquanto a Federal era o lugar de pessoas que encaravam os criminosos como a escória da sociedade cuja única solução era cadeia ou morte.

O agente fez sinal para John o seguir e, sem dizer uma palavra, levou-o por um labirinto de corredores. Não fosse o fato de que já tinha estado ali, John poderia ter certeza de que estavam indo para alguma espécie de latrina, a julgar apenas pelo cheiro. Em pouco tempo estavam em frente a uma cela minúscula, com um jovem sentado em um canto.

“Identificação.”

“Ahn?” John estava tão distraído em seus pensamentos que havia esquecido completamente de que os agentes de custódia da Federal eram também responsáveis por examinar a identificação de todos que se apresentavam para falar com os presos.

“Eu disse ‘identificação’” O agente pronunciou cada palavra com ênfase, como se estivesse falando com alguém cuja capacidade de compreensão era limitada.

John respirou fundo e entregou o cartão ao guarda. Seu temperamento não era dos melhores, mas estava cansado e preocupado demais para bater boca com um funcionário da custódia. A última coisa que queria fazer era arrumar briga ali.

O funcionário examinou o cartão com cuidado, alternando os olhares entre John e o cartão.

“Achei que a Defensoria não viesse hoje.” O sarcasmo era aparente na voz do policial. “O jornal da manhã disse que vocês estavam sobrecarregados de trabalho tentando tirar os ratos das jaulas.”

“E é justamente por isso que eu vim trabalhar e não conversar. Agora que tal terminar o seu trabalho pra que eu possa começar a fazer o meu?”

O agente trocou o sorriso debochado por um olhar intimidador, enquanto sacava um aparelho eletrônico da cintura. Passou o cartão de identificação no aparelho, que emitiu um breve bip seguido de uma luz verde, e devolve-o à John. Sem dizer nada, abriu a cela e fez sinal para que John entrasse.

“Você tem trinta minutos para fazer seu... trabalho.” Disse o agente, enquanto trancava novamente a cela, dessa vez com John dentro.

Dito isso, o agente virou as costas e foi ralhar com algum preso, que estava gritando palavrões e batendo nas grades da cela.

John nem mesmo parou para discutir que a Lei de Custódia de 2002 obrigava os agentes a ficarem presentes para garantir a segurança do Defensor enquanto ele conversava com o preso. Ele não acreditava que esse em particular representasse uma ameaça e não queria a presença de mais ninguém por perto. Por fim, após se certificar de que não havia ninguém prestando atenção neles, ele virou sua atenção para o preso.

Klaus era um rapaz novo, apresentava uma barba por fazer e seu rosto era cortado por uma enorme cicatriz em forma de concha que descia da sua testa até o queixo, passando pelos olhos.

“Klaus. Klaus Chaos, é você?”

O jovem apenas levantou a cabeça e encarou John com seriedade. John sustentou seu olhar por alguns segundos antes de prosseguir falando.

“Então.. Por quê, Klaus? Por que matar uma pobre senhora em plena praça pública para depois se deixar prender por simples agentes da federal?”

Klaus o encarou por mais alguns instantes antes de desviar o olhar e voltar a encarar o chão, sem dizer uma palavra. Depois começou a falar, num tom rouco e grave, como alguém que não usava a voz havia muito tempo.

“Você é John Crowley, o caçador. Eu lembro de você... sim. E também lembro de como ganhei uma cicatriz feita por uma faca de prata alquímica. Sim, sim, eu me recordo muito bem...”

“Achei que você e eu tivéssemos um trato, Klaus. O que você veio fazer aqui? A cidade não é o seu lugar. E por que se deixou capturar por um grupo de simples agentes da polícia enquanto gritava feito uma garotinha? Por acaso enlouqueceu? Pelo que eu sei o único motivo de você ainda não ter sido setenciado à morte é que os tribunais públicos estão sobrecarregados com assassinatos essa semana!”

“Perguntas, perguntas...”

Klaus respirou fundo. Apesar de aparentar vinte e poucos anos, sua voz era lenta e cansada, como alguém que já havia vivido tempo demais.

“John, vocês caçadores juram proteger seus parentes e amigos, mas são incapazes de sentir o cheiro da corrupção dentro de suas próprias casas. Para vocês, não importa se as árvores morrem e se o vento traz aos seus ouvidos o choro de seus parentes, pois vocês são incapazes de ouvir. Mas nós não, John. Nós ouvimos... e sentimos.”

“Ótimo, muito lindo, você deveria fazer parte do Partido Naturalista. Mas o que isso tem a ver com você matando uma velhinha?”

“Como você se sentiria, John, se visse, um a um, seus filhotes morrerem? E se o cheiro do assassino estivesse gravado em sua mente e você pudesse sentir em cada esquina, em cada pessoa? Eu falhei, John. Eu vim até a cidade rastreando o assassino dos meus filhos, mas o cheiro está por toda a parte. Eu pude sentir. Espalhado pela cidade, em cada canto, em cada esquina, em cada criança inocente, estava aquele cheiro. Por meses eu me controlei e vivi, rastreando e sentindo o cheiro da minha presa, até finalmente sucumbir à raiva e matar. Eu estava louco, não pude me controlar. As vozes na minha cabeça só pensavam em matar e rasgar e, quando sua polícia chegou, eu o vi. E foi nesse momento que eu recuperei meu controle. Ele está aqui, John, e eu me deixei capturar para ficar de olho nele. Nesse prédio está a minha presa. Ele está espalhando seu sangue para os humanos e por isso seu cheiro está por toda parte. E eu sabia que, quando me visse na televisão, você iria aparecer. Você é o único caçador dessa cidade, John, não é difícil chamar a sua atenção.”

“Você está maluco, né? Quem está aqui e quem está espalhando sangue por aí?”

“Minha cabeça está confusa e toda concentração que me resta eu uso para não sucumbir à raiva, John, por isso me escute.” – Klaus falava ofegante, era como se cada palavra pronunciada fosse um seguida de um esforço enorme para respirar.

“Há um sugador nesse prédio. Eu não sei como, mas ele está espalhando seu sangue por aí, por isso posso sentir seu cheiro em cada esquina. Suponho também que ele seja muito, muito antigo, pois apenas o odor de sua mácula é o suficiente para despertar a minha fúria e me fazer perder o controle. Encontre-o, John. Encontre-o!”

John estava prestes a disparar uma chuva de perguntas quando ouviu o barulho de algo caindo, seguido de gritos. Depois, outro barulho. Um som familiar, que se repetiu mais algumas vezes antes de silenciar novamente. “São tiros!” Pensou John. Levou alguns segundos para entender o que estava acontecendo quando viu que uma confusão crescente assolava o corredor. Ele colocou a cabeça entre as grades e olhou em volta.

Alguém havia acionado o sistema eletrônico das celas e deixado os presos saírem! Havia um corpo de um policial morto no chão com uma arma ao seu lado e diversos presos e agentes estavam lutando e gritando, enquanto alguns atiravam. Ao longe dava pra ouvir gritos de pessoas apavoradas e crianças chorando, além de ordens sendo dadas e pessoas correndo

Novamente no corredor, alguns agentes agora corriam para longe. Os presos haviam dominado aquela ala e alguns haviam roubado a arma dos policiais e agora atiravam sem piedade. Era um massacre. Havia presos e agentes mortos por toda a parte e todos atiravam sem pensar. Rapidamento os gritos naquela parte do corredor cessaram. Ninguém parecia prestar atenção a John e Klaus. Ao longe, apenas tiros e o barulho de passos apressados.

Todas as celas haviam sido abertas. Todos os presos fugiram. E John era o único que tinha alguma idéia do que estava acontecendo ali.

“Que Deus me ajude...” Ele pensou, antes sair da cela e começar a correr em direção ao hall principal, rezando para não ser confundido com algum preso em fuga, caso alguém o encontrasse.