Sob uma Lua de Sangue - Capítulo 6

por Aramil em

“Estou curado, cavalheiros: como posso representar o louco com perfeição; e eu o faço silenciosamente. Somente tenho pena de vocês que têm que viver sua loucura tão agitadamente, sem sabê-lo ou vê-lo.” - Luigi Pirandello, Henrique IV

John mal olhou para os dois lados antes de começar a correr como um louco pelo labirinto de corredores da área carcerária da Polícia Federal. As paredes de pedra e os corredores estreitos causavam um eco que tornava quase impossível distinguir com precisão a que distância estava realmente a fonte dos passos e tiros que ele ainda ouvia. Sabia que tinha que escapar dali, mas não sabia como. Decidiu correr para o pátio externo do prédio, uma ala restrita a funcionários, que poucos fora da Federal conheciam.

Klaus estava logo atrás dele, correndo com dificuldade. Sua respiração estava cada vez mais forte e ele parecia não prestar a menor atenção onde estava indo, apenas seguia John sem pensar. Controlar a sua raiva era cada vez mais difícil naquele lugar e o cheiro de morte e corrupção que aquele prédio exalava tornava as coisas ainda piores.

Juntos, correram por quase dez minutos, parando apenas em cada curva para escutar os passos no corredor seguinte. Dobraram à direita, esquerda e direita novamente até que finalmente encontraram a porta que levava ao pátio externo. John parou, se apoiando na parede para tomar fôlego.

“Eles estão ocupados demais correndo atrás dos outros, acho que temos uma chance por aqui.”

Ele colocou a mão no bolso do paletó e tirou uma ferramente pequena, que lembrava uma miniatura de chave de fenda. John costumava dizer que aquele era seu segundo melhor amigo, depois de Cody. Inseriu a ponta fina na entrada da fechadura e, alguns segundos depois, a fechadura se abriu com um pequeno estalo, liberando a porta que dava no pátio externo da Federal.

“Vamos!”

O pátio ligava o prédio da Polícia Federal com o Centro de Controle de Doenças, mas, como estava bem cedo, não havia quase ninguém ali. Os poucos cientistas que rondavam pareciam alheios a tudo que acontecia no prédio adjacente e não foi difícil para os dois correrem até um muro isolado, nos fundos do pátio. O muro era de cimento e não tinha cercas ou nenhuma espécie de segurança que os impedisse de pular. Era feito apenas para manter olhares curiosos longe e não para evitar algum tipo de fuga ou entrada, afinal, o pátio em si costumava ser patrulhado pela Federal. Bastou uma olhada rápida para os lados e, antes que alguém pudesse se dar conta, John e Klaus saltaram para liberdade.

O muro dava em uma pequena rua residencial na lateral dos prédios do CCD e da Federal. John sabia que ainda não estavam seguros mas não aguentava mais dar um só passo. Apoiou-se em um carro que estava estacionado ali perto e parou para tomar fôlego enquanto despia o paletó e abria a camisa social branca que estava usando, o suor escorrendo pelo seu rosto e ensopando sua roupa. Permaneceu alguns segundos de olhos fechados, tentando controlar a respiração. A voz de Klaus o trouxe de volta à realidade

“Não dá para a gente ficar aqui, garoto. Não levará muito tempo e esses ratos estarão cercando todas as ruas, procurando por qualquer um que não esteja morto ou enjaulado novamente.”

John não aguentava responder. Seu fôlego tinha ido embora e seu cérebro trabalhava a mil tentando pensar em como chegar até seu carro.

“Ei garoto, está me ouvindo? Ficar aqui é perigoso, vamos embora!”

Ele acenou com a cabeça enquanto limpava o suor com o paletó que havia tirado. Em seguida, jogou-o junto com a gravata em um latão de lixo e trocou de blusa com Klaus. Não que isso adiantasse alguma coisa, mas pelo menos de longe, não seria mais tão fácil reconhecê-los. Se é que, naquela confusão toda, alguém ainda iria lembrar de procurar por eles.

Caminharam em silencio tendo apenas a respiração acelerada de John como companhia por mais algumas quadras, pegando o caminho mais longo para evitar serem vistos, até finalmente chegarem ao carro. Mais alguns minutos depois estavam a caminho de casa, descansando no carro enquanto John dirigia.

A cidade estava finalmente acordada. Carros preenchiam a paisagem daquela manhã e pessoas apressadas fervilhavam nas ruas. Boa parte da população estava indo para o trabalho agora e parecia que todos haviam decidido ir de carro. Já passava do meio dia quando eles pegaram a rodovia principal, que ligava o centro da cidade aos bairros menos tumultuados. A casa onde John ficava não era muito longe dali e normalmente eles não levaria mais que quinze minutos de carro até lá, mas um engarrafamento havia os prendido por mais de meia hora naquela rodovia. E não parecia melhorar.

“Mas que merda é essa? Será que todo mundo resolveu sair de carro justamente hoje?” A falta de sono finalmente começava a vencer John e seu humor não estava dos melhores.

“Hum... Vai ver cercaram as avenidas principais depois do que aconteceu na prisão. Podem estar procurando por fugitivos ainda.” Klaus finalmente dissera alguma coisa. Desde que entraram no carro não havia dito uma só palavra.

John desligou o motor.

“Você realmente acha que alguém conseguiu fugir? É uma milagre nós ainda estarmos vivos! Você tinha que ver esses caras. Não tinham a menor piedade, começaram a atirar nos primeiros que viam pela frente! Eu vi um deles derrubar um policial com a lateral da arma e depois partir para cima de outro presidiário. Pareciam animais.”

“Os animais não se atacam sem motivo.” – Grunhiu Klaus – “Animais lutam por seus territórios, por respeito e por comida. Nunca sem motivo.”

“Não foi isso que eu quis dizer, foi apenas uma comparação e... ah, esquece.”

Ele abriu a porta do carro.

“Ei, garoto, aonde você vai?”

“Vou ver que merda está acontecendo aqui. Não passei por isso tudo para morrer de calor em um engarrafamento, nem para ir para a prisão por ser pego dirigindo com um fugitivo. Você espera aqui.”

John saiu do carro e seguiu caminhando em meio ao engarrafamento. Todos pareciam ter desistido de andar. Aqui e ali havia carros com o motor desligado, pessoas sentadas na calçada e algumas estavam até mesmo tomando sol e conversando sentadas no capô de seus carros. Uns poucos tiveram a mesma ideia que ele e estavam caminhando pelo acostamento, tentando chegar à causa do congestionamento.  Ele continuou caminhando por quase dez minutos até ver uma ambulância caída de lado no meio da pista, cercada por uma confusão de policiais e paramédicos.

Havia um carro destruído perto da ambulância e dava pra ver que tinha alguém preso embaixo dele. O chão estava coberto de sangue que ainda escorria, mostrando que o acidente era recente, e os paramédicos estavam falando com alguém que parecia estar preso dentro da ambulância. As portas dianteiras dela estavam abertas e não havia ninguém dentro. No chão, haviam dois sacos pretos, cada um cobrindo um corpo. Talvez fossem as pessoas que estavam na frente da ambulância?

De repente, gritos. O motor da ambulância começou a pegar fogo, alarmando os policiais e paramédicos, que gritavam inutilmente com a multidão para que todos se afastassem. Enquanto isso, a multidão fazia seu papel de sempre de gritar de volta e atrapalhar o trabalho da polícia em nome da curiosidade. John odiava o modo como sempre os acidentes e destruições captavam a atenção das pessoas. Era como a novela da vida real.

“Meu Deus...” Murmurou John.

Um senhor de idade, vestindo uma calça quadriculada e um agasalho gasto foi quem respondeu.

“Se quer saber, garoto, Deus não teve nada a ver com isso.”

“Perdão?”

“Eu vi tudo. Trabalho aqui perto e estava passando pela rua quando aconteceu.”

“O que aconteceu?”

“Um carro capotou aqui mais cedo. Um casal de jovens. O acidente não foi grave, mas a garota tinha batido de cabeça no vidro e sangrava bastante, então eles ligaram para a emergência. Mas quando a ambulância chegou, o motorista decidiu levar todo mundo logo para o céu. Ele veio a toda e simplesmente não freiou! Não usou os freios, sabe? Primeiro eu pensei que haviam quebrado ou algo assim, mas não, o cara parecia querer mesmo atropelar o casal! Passou direto por cima da garota” O velho tinha uma voz asmática e pontuava sua fala com uma risada igualmente irritante. “A garota foi jogada longe e o cara tá ali preso até agora embaixo da ambulância, deve estar morto a essa altura. Funcionários públicos, eu digo! Esses caras não prestam atenção em quem contratam! Na minha época era preciso fazer prova pra essas coisas e avaliavam até a sua cabeça, o sujeito tinha que ser bom das ideias para trabalhar e-”

Uma explosão cortou a fala do velho. Por um segundo, uma onda de calor tomou conta daquela área e o fogo coloriu tudo de laranja e vermelho. Pareceu que o barulho ia matar a todos, então, tão rápido quanto aconteceu, cessou. A ambulância explodiu. O fogo agora lambia o carro que estava próximo a ela e havia alguns policiais e paramédicos caídos no chão. Um deles não se movia. Alguns curiosos estavam caídos no chão também e um ou dois havia sofrido queimaduras. O velho que conversava com John estava se levantando do chão, praguejando contra a “falta de segurança nas ruas” e a “incompetência dos policiais por não terem afastado os curiosos dali” e muitos outros curiosos agora se afastavam, alguns chorando e gritando, todos com medo de outra explosão. Os policiais rapidamente trataram de expulsar a multidão restante de perto e aumentar o raio do cerco, para que ninguém mais corresse risco com uma nova explosão.

Uma parte das pessoas parecia se divertir. Comentavam, riam, apontavam e gesticulavam, reproduzindo o acidente em conversas com outra multidão de curiosos que havia sido atraída até ali pela explosão. Enquanto isso, os que haviam lutado para ter uma visão melhor do acidente agora se empurravam e tropeçavam uns nos outros, abrindo caminho para o mais longe possível, com medo de outra explosão. Um carro que estava ali perto deu ré e acabou acertando um outro carro próximo. Os donos saíram e começaram a discutir. O caos havia tomado conta.

Para John, não havia nada a fazer, além de voltar para o carro.

Duas horas depois, estavam em casa.