Capítulo 03 – O Ponto sem Retorno

por Hentges em

Terceiro capítulo da crônica Os Espaços Vazios, publicada no blog The Truth's For Sale.

Quinta-feira, 29 de Outubro

Cena 01 – Segredos

Kallinger, Kroll e Cutler encaram-se em silêncio. As agressões, físicas e verbais, não têm importância. Estão cansados e estão confusos. Kallinger pensa no que houve. Foi diferente desta vez. Estava diante do porteiro do seu prédio. Cumprimentava o homem quando aconteceu.

Antes que possam formular qualquer teoria, os três se vêem em meio a um sonho desperto no qual compartilham segredos jamais confessados.

 O Sonho de Cutler:

Você sente a chuva molhando o seu cabelo através da máscara / A porta cede diante do mínimo esforço / Vagueia pelas prateleiras à procura de algo / Um grito o atrai / A mulher cai no segundo golpe / Pára de gritar depois de terceiro / Deixa de se mexer após o quinto / Seu rosto fica irreconhecível pouco depois / Um estampido o interrompe / Um novo disparo / Parado, com uma antiga arma nas mãos, ele atira pela terceira vez / Você tomba / Ele abraça a mulher já sem vida ao seu lado / Depois de remover sua máscara e observar com asco o que o fogo lhe fez, ele aciona o gatilho pela quarta vez / A última visão é da luz sendo bloqueada / Em um local gélido e úmido você aguarda desde então.

O Sonho de Kroll:

Está completamente escuro / Você não faz idéia de quanto tempo esteve na caixa / Você tem sede de algo que não sabe o que é / Do alto a luz banha sua pele escura / Ela estala, ressecada, enquanto você é retirado / É como nascer novamente / Ele o observa com curiosidade no olhar / Instintivamente, você sabe que poderia envolver-lhe o corpo e a alma / Você poderia lhe dar um propósito, se ele quisesse / Ele tira da caixa o couro, as argolas e tudo o mais que é a sua pele e a pele de quem vestir você / Tudo volta a ficar escuro / Ele não lhe dará de beber / A campainha toca e você volta para a caixa / Chegou alguém disposto a aplacar sua sede.

O Sonho de Kallinger:

Você é uma mentira / Uma pequena mentira sem importância que se recusa a ficar para trás / Você nasceu como algo que apenas um microscópio revela / Hoje você ocupa todos os pensamentos de um homem / Os dedos crispados dele o envolvem / A culpa comprime a você e corrói a ele / Nas suas mãos você percorre longos corredores / Quisera nunca tivessem fim / Cigarro, pólvora, morte, café e sangue / Nesse local você se torna a mentira de outra pessoa / De diversas outras pessoas / Ali você descobre que é capaz de muito mais do que culpa / Ali, alguém vai morrer por sua causa.

Quando voltam a si, os três sentem que algo que sempre esconderam agora é parcialmente compreendido pelos demais. As mãos de todos estão manchadas de sangue. Velho, seco e escuro, tem o fedor de algo há muito enterrado.

Cena 02 – Aflição

- Senhor Kallinger? Aconteceu alguma coisa?
- Ahn?
- O senhor ia dizer algo…
- Acho que apaguei… Quanto tempo durou isso?
- Não sei, senhor. Um segundo, talvez. Está tudo bem?
- (…)
- Nossa, as suas mãos. O senhor está ferido!
- Que horas são?
- Como?
- Que horas são agora?
- Dez e dezessete da noite. O senhor quer que eu chame um médico?
- Não, não. Isso não é nada. Boa noite.
- Boa noite, senhor.

Já em seu apartamento, Kallinger envia um e-mail para o neurologista com quem tem uma consulta dentro de alguns dias.

Prezado Dr. David,

Não me sinto à vontade para esperar pela consulta de segunda-feira. Talvez eu não esteja vivo. Isto não é nenhum tipo de bilhete suicida ou algo do tipo. Suicídio é a solução que os fracos encontram para os problemas. Eu não posso fazer isso… porque não sei o que tenho, apesar de me sentir cada vez mais fraco.

Dois dias atrás tive um lapso temporal enquanto estava em um bar, com amigos. Fui ao banheiro e tive uma espécie de sonho acordado. Estava em um quarto, com dois estranhos. Coisas estranhas aconteceram e, depois de meia hora, eu havia voltado. Para meu espanto, aquelas duas pessoas que eu nunca havia encontrado na vida existem! E pior ainda, tiveram a mesma experiência.

Eu não sei o que é, doutor, mas meu cérebro parece dar pistas de que algo está errado. No dia seguinte voltamos para o tal quarto, todos os três. Foi por uma hora. Hoje, agora há pouco, ficamos lá por duas horas. Depois serão 4, 8, 16… Não sei se chegarei até o seu consultório na segunda-feira, e não me sinto confortável com a situação.

Já solicitei afastamento das minhas aulas para tratar desse problema. Pior do que me colocar em uma situação assim, só se eu conseguisse envolver a Universidade.

Não espero que altere sua agenda para me atender antes. Só queria que alguém soubesse, além dos dois “amigos” que fiz, que algo não está certo.

Até a consulta de segunda-feira (realmente espero por isso).

Dr. Charles Kallinger

Cena 03 – Tocaia

Cutler - Olha aqui essa merda!

Cutler estende a mão manchada de sangue na direção de Kroll, que vasculha o porta-luva em busca de lenços.

Cutler - Nós temos que fazer isso. Agora!

O ímpeto, porém, não passa da portaria do condomínio. Sob nomes falsos e pretextos idem, Kroll e Cutler não são recebidos. De volta ao carro, acomodam-se da melhor forma possível. Será uma longa espera até a manhã seguinte, quando então poderão colocar as mãos em Thomas Hoyt.

Sexta-feira, 30 de Outubro

Cena 04 – Abordagem

O seqüestro ocorre em frente à galeria comandada por Hoyt. Ele reconhece de imediato os dois homens, um deles empunhando uma pistola antiquada enquanto o outro dirige.

Kroll – Acha que estamos brincando? Acha que queremos algum quadro? Nós queremos sair daquele quarto. Nós precisamos do endereço da Krista.

Nas horas seguintes um jogo assustador subjuga as forças de Hoyt. Sob a mira da arma ele não se encontra em condições de mentir. Mesmo aquilo que não gostaria de revelar a tensão e o tempo trazem à tona. As palavras que lhe são dirigidas sempre carregam um tom de ameaça, ora evidente e acompanhadas por coronhadas desferidas por Cutler, ora mais sutis, quando Kroll sugere que a frustração de seus objetivos pode resultar em conseqüências jamais mencionadas.

Kallinger acompanha parte do desenrolar dos fatos por telefone até o encontro, de volta à galeria. Decide juntar-se ao grupo porque acredita ser o único capaz de preservar Hoyt. E a si próprio.

Com uma chave ele rasga uma das principais telas da exposição. A obra revela o ambiente no qual já esteve preso por três vezes com Kroll a Cutler. Aconteceria novamente? Com a dúvida ele se dirige ao encontro dos outros. Leva a tela enrolada sob o braço.

Depois de Kroll apagar do computador os registros da passagem pela galeria os quatro dirigem-se ao endereço que os dados de Hoyt sobre Krista Crown apontam. A casa, abandonada há meses, uma rápida invasão confirmaria, é mais um beco sem saída.

As melhores alternativas estão naquilo que, entre balbucios, súplicas, adulação e raiva, Hoyt lhes disse em fragmentos nas últimas horas:

Sim, ele conhece Krista Crown, sendo próximo dela. Ele foi o primeiro a impulsionar sua carreira. Eles muito já discutiram sua obra, e apenas uma vez ela mencionou um quarto vazio ou coisa do gênero – algo relacionado com sua infância e a casa onde viveu. As coisas entre Hoyt e ela, porém, mudaram desde sua saída do Hospital Psiquiátrico Bishopgate. O contato entre eles encerrou-se de todo após a organização da atual mostra de peças. Krista foi contra. Ela internou-se depois da morte do irmão, Mason, tendo sido tratada por um certo Arthur West.

É na forma como Kroll se despede de um aturdido Hoyt, com Cutler no carro e Kallinger já tendo partido, distanciados que estão pela incapacidade de consenso quanto à forma de agir, que toda a perturbação imposta pela situação é demonstrada.

Kroll – Você está livre. Sinta-se à vontade para fazer o que bem entender. Só quero que lembre que o que está acontecendo conosco hoje pode acontecer com você amanhã. Não é para concordar, discordar e nem achar nada. Não é para entender! Apenas fale com ela e pergunte. Aqui está o meu cartão. Se não nos encontrarmos mais, é possível que nos veja entre os mortos da página policial. Pense a respeito, agora que não tem mais uma arma apontada para a sua cabeça. E eu peço desculpas por tudo. Espero que nunca mais nos encontremos…

Cena 05 – O Bishopgate

Os muros correm à direita da estrada. Com mais de três metros de altura, não permitem vislumbres da imensa propriedade, em um local afastado e distante, nos subúrbios a nordeste de Filadélfia Central. Os portões de ferro do Hospital Psiquiátrico Bishopgate abrem caminho para um longo trajeto cercado de flores vermelhas, as poucas que resistiram ao outono e que sucumbirão ao longo do rigoroso inverno que se aproxima. Dividido em alas e com diversos prédios menores nas cercanias, o Bishopgate chama atenção pela sua arquitetura. A fachada de pedra trabalhada remete ao século XIX, enquanto o concreto insípido lembra algo feito nos últimos 50 anos. A impressão mais forte, porém, é causada pelos santos que decoram, aos pares, a entrada das três edificações principais.

- Socorro! Eu preciso sair daqui. Por favor!

Os olhos da mulher transmitem desespero e fúria. Ela grita e esmurra o vidro e urra. Seus cabelos escuros e desgrenhados contrastam com a bata branca. Antes que possa entrar no carro, é alcançada por seguranças. Sedada e carregada, ainda balbucia. O médico responsável, polido mas não constrangido, se desculpa pelo transtorno. Bem-vindos ao Bishopgate, diz ele, despedindo-se.

No segundo andar do prédio principal Cutler e Kroll aguardam pelo Dr. West. Uma ligação de Kallinger interrompe a espera. Seus contatos no departamento de polícia revelaram que a amostra recolhida na velha casa de Filadélfia Oeste pertence a Jamal O’Neal. Já cumpriu pena por tráfico de drogas e é considerado suspeito pelo assassinato do homem que encontraram no porão da Pentridge Street, 5282. Era O’Neal quem os observava quando deixaram a casa, dois dias antes.

Kallinger – Fiquem de olhos abertos. Esse cara é perigoso e pode ter pegado as placas de Kroll.
Kroll – Como se as coisas não pudesse ficar ainda piores…
Cutler - Nunca duvide de Murphy.

Murphy, ao que tudo indica, estava na sala do Dr. West. Nenhuma das palavras dirigidas por Kroll ou Cutler surte efeito. Como Kallinger previra, o psiquiatra não fala a respeito de uma paciente. Em vez de sensibilizá-lo, o relato a respeito de possíveis mortes com as quais Krista Crown estaria envolvida levanta suspeitas. Por que estavam no consultório dele quando deveriam procurar pela polícia? Praticamente expulsos, Kroll e Cutler veriam, finalmente, a sorte lhes sorrir quando o primeiro, após se deparar com uma sala vazia, consegue resgatar do banco de dados do Bishopgate algumas anotações realizadas pelo Dr. West a respeito de Krista Crown.

Cena 06 – A Residência de Krista

Kroll – Se nós ficarmos vivos, ele é o único que vai ficar solto.
Cutler - Ele deveria nos agradecer por isso.
Kroll – Apesar de tudo, eu não quero ferrar com ninguém.
Cutler - Eu matei alguém?
Kroll – Não… até agora.
Cutler - Então, está tudo bem.
Kroll – Que continue assim.
Cutler - Vamos subir.

Enquanto atravessam o corredor que recende à sujeira velha e umidade, Cutler e Kroll atacam a postura passiva de Kallinger. Mais uma vez o professor propôs a cautela, sendo novamente vencido pela urgência de um e a dubiedade de outro.

Diante do apartamento de Krista Crown, encontrado graças aos contatos de Kroll, percebem o sinal de que a porta foi forçada.

Um encontrão revela o apartamento minúsculo. Não há ninguém ali para ser surpreendido. Diversas telas estão espalhadas junto das paredes, a maior parte delas inacabada. O estilo de Krista é evidente. Quase não há ruído vindo da rua. Kroll verifica o telefone. A última ligação foi feita para uma delegacia de polícia com jurisdição sobre outra área da Filadélfia. Cutler encontra, escondida sob o estofamento gasto de uma poltrona, uma caixa de munição. Projéteis de 9mm. Pouco mais de dez de um total de cinqüenta.

Cutler - Ela não só está armada como parece que gosta de atirar.

Antes que responda, Kroll ouve um ruído. Alguém pára diante da porta. Cutler se aproxima. A mão procura a Luger que leva no bolso interno do casaco. Passos pesados recuam na direção das escadas. Cutler salta para o corredor. A vantagem da surpresa de pouco lhe serve. Jamal O’Neal esperava o ataque. A Luger é acionada. O projétil perfura o velho tapete e se aloja no piso. O’Neal responde com um soco que deixa o antiquário grogue. A aproximação de Kroll o coloca na defensiva. Buscando uma brecha, corre na direção das escadas. Kroll o persegue, aos poucos perdendo o contato. Seus pulmões queimam. Os joelhos falham. Quando está perto de desistir – O’Neal parece ter escapado – é atingido em cheio no pescoço. A garganta se fecha. É impossível respirar. Estirado, dos degraus ouve a fuga de O’Neal. Em seguida, um grito. E então, um disparo. Após recuperar o fôlego e descer os últimos lances da escada, se depara com Cutler. A Luger ainda na mão. Sangue verte do abdômen e da testa do fugitivo. A coronha da arma está manchada de vermelho.

Cutler - Peguei ele assim que saí do elevador.
Kroll – O que vamos fazer agora?
Cutler - Vamos levá-lo para fora e chamar uma ambulância. Foi sorte desse homem que o encontramos a tempo de salvá-lo.

Os dois saem carregando O’Neal pela rua. Avançam não mais de dez metros antes de serem cercados por curiosos. Uma ambulância é chamada. Alguém grita pela polícia. Meus Deus, será que ele está vivo? Alguém mais ouviu um tiro? Quem eram aqueles o carregando? Aproveitando-se da confusão, Kroll e Cutler evadem-se em meio à multidão.

Cena 07 – Papelada

Encontram-se todos no apartamento de Kallinger. São quase dez da noite e esperam ser em breve capturados novamente. Vivem a resignação pacífica dos que nada podem fazer.

Cutler e Kroll levam na carne as marcas dos eventos daquela tarde. Kallinger se exime das perguntas. Esteve no endereço, viu o sangue respingado nas ruas, ouviu alguns relatos desencontrados e foi ao hospital para onde Jamal O’Neal fora levado. Não precisou de mais para deduzir o quão mal tinham ido as coisas. Contentaria-se, porém, se fosse possível encontrar nexo nos fatos vivenciados e um caminho claro a seguir a partir dele.

Durante a madrugada acontecimentos são revistos, anotações repassadas e conversas rememoradas. Pouco deles se tira. A única informação adicional vem de um registro policial, dando conta do freqüente desaparecimento de Krista e Mason quando moravam com os pais, na Pentridge Street, 5282. Suspeitou-se de maus tratos, mas como as crianças sempre voltavam, o entediado assistente social responsável pelos dados atribuiu o comportamento a má-criação.

Já está amanhecendo quando os três percebem que o cômodo vazio não os requisitou naquela noite. E isso os inquieta mais do que alivia.

Sábado, 31 de Outubro

Cena 08 – Vítimas da Arte

Histórias terminam onde elas começam. Por isso, Kallinger, Cutler e Kroll estão diante da casa onde Krista King cresceu. O final de tarde sopra uma brisa que move sujeira de um lugar para outro. A faixa amarela deixada pela polícia se agita à porta.

Cutler vai até os fundos. Um balanço e uma gangorra tomados pela ferrugem, últimos sinais de uma infância esquecida, jazem ali. A grama ao seu redor não voltou a crescer. Vasculhando os arredores, procura sem sucesso um abrigo antibombas ou esconderijo semelhante.

Kroll e Kallinger dirigem-se ao segundo andar. Os degraus gemem em protesto. Mais adiante, de um cômodo no final do corredor, luzes bruxuleantes projetam formas sombrias. Cutler junta-se a eles.

Ali dentro, Krista Crown pinta. Os traços preliminares não deram forma à imagem, mas suas testemunhas preenchem com experiências recentes os espaços vazios que a tinta negra ainda não revelou. Ela move-se diante da tela, febril. Sob a iluminação tênue das velas é possível ver as cicatrizes. Cobrem os longos braços pálidos como os riscos de uma criança aprendendo a desenhar.

Cutler - É o quarto, não é?
Crown – Sim. É o quarto vazio.
Cutler - Onde fica o quarto, Krista?
Crown – Eu não sei chegar lá. Eu não posso sair.
Cutler - Você ia até lá, mas não sabia como chegar?
Crown – Sim, é assim que funciona. Vocês sabem disso, não é? Mas quando eu terminar, tudo vai ficar bem.

Kroll não se importa. Aquela mulher de olhos insanos não deve discernir o certo do errado. Não é ela quem decidirá o que significa ficar bem. Com o isqueiro nas mãos, aproxima-se da tela. Alimentadas pela tinta, as chamas logo estão lambendo todo o quadro. Um golpe de Krista quebra o pincel nas costas do incendiário. Subitamente, recordam de Hoyt e seu joelho ferido. A mulher grita e se contorce, incapaz de escapar de Kallinger, que avançara para dominá-la.

Conforme a pintura incompleta arde, a fumaça se espalha por toda a casa, que também parece estar em chamas. De súbito, os quatro são capturados pelo quarto vazio.

Crown – Agora vocês terão que resolver isso.

Os olhos dela se dirigem a um dos cantos do cômodo. Jazem ali, como os dentes banhados pela saliva de uma criatura que não se alimentou o bastante, quatro lâminas ensangüentadas.

Kallinger – A sua saída é morrer?
Crown – Não. A sua saída é matar!

Kroll vai até as lâminas. Kallinger imediatamente compreende suas intenções quando ele se volta na direção de Krista.

Kallinger – Isso não vai acontecer.
Kroll – Ah, vai sim. Você não a escutou?
Kallinger – Ela é a única que pode ter alguma resposta.
Kroll – A resposta dela está aqui, bem na minha mão.

Krista se esforça, mas não consegue tirar Kallinger do caminho até Kroll e a lâmina. Cutler assiste a tudo, impassível. O encerramento trágico é inevitável.

Kroll – Ela é a causa disso tudo.
Kallinger – Não, não é!
Crown – Deixe-o fazer o que ele tem que fazer.

Fumaça começa a tomar o quarto.

Kroll – Eu não vou esperar quatro horas para ver se esse lugar vai pegar fogo ou não.

Kallinger se vira na direção de Krista. Ninguém jamais saberá o que ele viu em seu rosto. E se isso levou a algum tipo de iluminação ou se fez com que algo se apagasse dentro dele. Mas a conseqüência não poderia ser mais evidente.

O punho cerrado a atinge. Sangue escorre do nariz de Krista. Ela sorri, sem alegria ou surpresa. Apenas alívio. O segundo golpe de Kallinger acerta o ventre, fazendo-a dobrar-se e tossir. Cada soco parece movido por ódio e desejo assassino.

A fúria de Kallinger vence qualquer esforço de Cutler para afastá-lo. O espancamento continua até que a fumaça roube todo o seu fôlego.

Kallinger – Vagabunda! Vagabunda desgraçada! 

No chão, Krista tosse e engasga. O sangue de sua face é absorvido pelo piso assim que o toca.

Cutler - Cansou de bater nela?
Kallinger – Moralista de merda! Hipócrita! Você atirou em um homem.
Kroll – Nos vemos no Inferno.

Kroll ergue as feições deformadas da mulher e, com a lâmina, corta seu pescoço de orelha a orelha. O sangue verte mas não se espalha, logo tragado pelo chão.

Não demora até que tombem, vítimas da fumaça.

Os três despertam. Continuam na casa. Não há sinal de fogo além daquele que consumiu o quadro inacabado. Junto da moldura vazia está o corpo de Krista, desfigurado e degolado.

Cortinas, colchões, as próprias roupas. Tudo é combustível para que Kroll inicie o incêndio. Lá fora já é madrugada. Muito tempo se passou.

Com a casa em chamas, tomam direções diferentes. Afastam-se com a certeza de que seus caminhos voltarão a cruzar-se.