Tradução de Changeling pela Devir Livraria
1º E-MAIL:
"Eu agradeço a preocupação e o interesse de todos vocês pelo nosso trabalho aqui na tradução de Changeling.
Vou comentar brevemente, então, alguns dos comentários que você me enviou:
> "Na minha mesa eu traduzo Hedge por Bosque. É outra tradução totalmente livre, mas que transmite bem a idéia e tem a ver com o imaginário da língua portuguesa. Na minha opinião, a tradução literal por 'cerca-viva' ou 'sebe' não tem a mesma força de 'Bosque'." - Paulo Jr.
Interessante. Mas, na minha opinião, Sebe é perfeito, porque a presença dos espinhos já está embutida na própria palavra, o que não acontece necessariamente com Bosque.
> "Para o povo que falou para usar os próprios termos, é o jeito, mas não precisava ser assim, lembro do lobisomem o apocalipse 3ª edição, no final do livro tinha uma tabela de termos, o termo em ingles, e varias traduções opcionais, achei muito boa a idéia... " - Kauê
Bem, não se tratavam de "traduções opcionais". O apêndice da edição revisada de Lobisomem: o Apocalipse foi um esforço para padronizar a terminologia da linha. A ideia ali é informar o leitor de que, se ele encontrasse, digamos, num livro de tribo publicado antes da edição revisada, o termo Wyrm Corruptora ou Corrupção de Wyrm, deveria desconsiderar esse termo e entendê-lo como Wyrm Profanadora, como está na edição revisada.
> "Na verdade eles deveriam primeiramente traduzir uma boa parte do livro pra DEPOIS divulgar o que está traduzindo." -
Concordo. E é o que sempre fazemos. Na verdade, o texto traduzido só é divulgado quando o livro é publicado.
> "Creio que termos como Fae não devem ser traduzidos, e alguns termos devem ficar sem tradução, outros, devem ficar com tradução mais generalizada como fetch se tornar fantoche" - Meu comentário
Posso garantir que os termos traduzíveis serão traduzidos. Os termos que fazem referência à mitologia europeia sobre as fadas, por exemplo, e que não têm equivalentes adequados em língua portuguesa não serão traduzidos. Changeling é changeling, e não "criança trocada"; da mesma maneira que saci-pererê não é "little one-legged hopping black boy".
Eu tenho minha dúvidas se fetch tem algo a ver com fantoche. Pelo que pesquisei, a ideia por trás de fetch, em português, é conhecida como "duplo".
Grata,
Maria do Carmo Zanini
Editora - Mundo das Trevas Storytelling - Devir Livraria"
2º E-mail:
"Acho ótimo que os RPGistas queiram colaborar com o processo de tradução de Changeling, contribuindo com suas opiniões, sugestões etc. É exatamente por gostar dessa participação que tenho levantado discussões amigáveis a respeito da terminologia com as pessoas que seguem meu Twitter Feed (@MdT_Brasil).
Mas, antes de continuarmos, sinto que é preciso esclarecer uma coisa, se você me permite: eu ainda sou a editora da linha e, seja isso bom ou ruim, a decisão final quanto à terminologia do jogo em português cabe a mim. Afinal, é meu trabalho. Sou remunerada para fazer isso como profissional do texto que sou, e não seria justo nem ético delegar essa decisão a outras pessoas. Além disso, a tradução profissional está na esfera da competência técnica, e não da democracia. Podemos ouvir quantas opiniões for, mas a decisão final tem de ser técnica.
Claro que, como todo ser humano, posso tomar uma decisão equivocada vez ou outra, mas estamos promovendo esses debates amigáveis e a troca de ideias justamente para minimizar possíveis erros. Apesar de apreciar a colaboração dos fãs, tenho visto nessa interação um problema recorrente: há quem confunda "erro de tradução" com "diferença de interpretação" ou, pior ainda, "gostos pessoais".
Se alguém traduz "ocean spire" por "espiral do oceano" ou "mystery man" por "homem de mistério", estamos lidando com erros de tradução. "Spire" é "agulha de torre". Poderíamos encontrar soluções como "torre oceânica" ou "pináculo oceânico", por exemplo. "Mystery man" é agente secreto, espião, uma expressão idiomática da língua inglesa que provavelmente não tem correspondente em português (da mesma maneira que seria difícil achar uma tradução inglesa para "araponga" em português).
Agora, se traduzo "fate" por "sorte", por exemplo, e outra pessoa prefere "destino", não estamos mais tratando de erros de tradução, e sim de preferências pessoais, pois "sorte", "destino", "fado", "sina" têm o mesmo sentido em português. Ou seja, o idioma permite todas essas possibilidades. Aí, não havendo erro, por uma questão de simples coerência, vale a opinião de quem assina a tradução, porque, afinal de contas, foi essa pessoa quem trabalhou no livro e foi remunerada por isso.
Voltando à tradução de manuais de RPG, os Narradores e jogadores em sua mesa de jogo, quando usam como referência o material em inglês, têm toda a liberdade de traduzir (ou não) os termos como bem entenderem. E podem também flexibilizar esses termos como bem entenderem. Por isso, não vejo nada de errado em vocês preferirem "Bosque" como solução para "Hedge". Mas, se estamos falando da publicação de uma obra, algumas regras precisam ser seguidas.
Temos de nos preocupar, por exemplo, com a fidelidade ao original. E, por fidelidade, não quero dizer "tradução literal" (que seria o problema de "homem de mistério", no exemplo anterior; ou "rolar os dados", em vez de "lançar ou jogar os dados"). Temos de nos perguntar por que os autores de Changeling escolheram o termo "Hedge" para fazer referência à zona de transição entre nosso mundo e Arcádia. Temos de nos preocupar com a interação de "Hedge" com todo o milhão de palavras que compõe o resto do livro. Nesse caso específico, será que "hedge" não teria a ver com as barreiras que aparecem tradicionalmente nos contos de fadas, separando o mundo humano do universo encantado? Nas lendas europeias, essas barreiras costumam ser os limites de uma vila: um muro, um portão, uma sebe. E, nitidamente, as referências constantes aos espinheiros dessa "hedge" no texto de Changeling exigem, por uma questão de coerência interna, que o termo em português seja mantido o mais próximo possível da ideia original em inglês.
(Vamos analisar o caso de "fetch", então. Eis o que nos diz o dicionário Random House, que tem 2.478 páginas: fetch = wraith; perhaps short for fetch-life, one sent to fetch the soul of a dying person. Portanto, a ideia é de uma aparição que viria buscar a alma de uma pessoa agonizante. O "duplo" corresponde ao "ka" dos egípcios, uma das nove almas do ser. Em várias culturas, principalmente a bretã, o duplo é uma aparição idêntica à pessoa que está prestes a morrer; avistar o próprio duplo costuma ser um mau presságio. Há um bom exemplo disso em As brumas de Avalon.)
Outras regras a serem seguidas:
1. Respeitar o tom e a escolha vocabular do original, algo que é mais fácil explicar com exemplos retirados de Mago, Changeling e Vampiro:
(tom elevado):
The sea of time grows murky as one approaches the distant past. (...) Even master mages cannot part the curtains of time so far back to see what truly occurred.
As águas do tempo se curvam quando nos aproximamos do passado. (...) Nem mesmo os mestres dos magos são capazes de descortinar o tempo a ponto de ver o que realmente ocorreu em épocas tão remotas.
(tom coloquial):
Funny thing to hate, right? But I do. Ever since I got back, I've hated it. I always thing it's going to be him, my Keeper or whatever you want to call him.
Coisa engraçada de se odiar, né? Mas eu odeio. Desde que voltei, odeio (telefone). Acho sempre que deve ser ele, meu Protetor, ou seja lá como você quiser chamá-lo.
(tom vulgar):
Fuck him. Back to the booth, where dinner awaits. I can smell that she's excited, too, the dirty old whore, and you know what I mean by "excited".
Que se foda o cara. Voltei pro reservado, onde o jantar me esperava. Pelo cheiro, saquei que ela também 'tava empolgada, a puta velha e imunda, e 'cê sabe o que eu quero dizer com "empolgada".
Quanto ao vocabulário, se os autores originais, para transmitir a ideia de "escudo", optaram pela palavra "aegis" (incomum), e não "shield" (comum), a boa tradução tem de respeitar essa escolha e usar "égide". Se eles escolheram "Celerity", e não "Quickness", o tradutor empobreceria o texto se optasse por "Rapidez", em vez de "Celeridade".
2. Evitar palavras não dicionarizadas (a não ser no caso de neologismos presentes no original): parte do motivo pelo qual preferimos "Dissimulação" a "Furtividade" para "Stealth" (a outra parte é para que não se confunda Furtividade (Stealth) com Furto (Larceny)).
3. Utilizar a norma culta da língua portuguesa: os livros educam, mesmo quando não foram escritos com essa intenção. As pessoas aprendem a escrever, lendo. Publicar livros é uma grande responsabilidade. Por isso, é importantíssimo cuidar para que o texto siga a gramática e a ortografia vigentes. É preciso tomar cuidado para escrever "ansioso", e não "ancioso"; "o orbe", "o húbris", e não "a orbe", "a húbris"; "a resposta implica uma decisão", e não "a resposta implica em uma decisão"; "preferir uma coisa a outra", e não "preferir uma coisa do que outra"; "se chegar a isso, ele não resistirá", e não "se chegar a isso, ele não resiste". E assim por diante.
4. Respeitar a inteligência do leitor: o tradutor não pode se deter a cada palavra, frase, ideia ou conceito complicado que encontrar no texto original e pensar: "Xi, nossos leitores nunca vão entender isso. Vamos trocar isso aí por algo mais simples". Se proceder assim, o tradutor produzirá uma adaptação, e não uma tradução. E, além disso, estaria demonstrando um profundo desprezo pela capacidade do leitor de fazer associações, consultar um dicionário, uma enciclopédia, pesquisar na internet, perguntar para um amigo, um professor etc. Não posso partir do pressuposto de que nossos leitores são burros e preguiçosos -- aliás, recuso-me a pensar dessa maneira.
Os autores da White Wolf escrevem para um público culto, geralmente capaz de reconhecer um poema de Yeats ou Fernando Pessoa, ou entender o que é uma "epifania joyceana". E, para aqueles que por acaso nunca ouviram falar de Yeats, Pessoa e James Joyce, hoje há recursos acessíveis para ajudar a preencher essa lacuna. Vejo a linha Mundo das Trevas não só como manuais de RPG, mas também como literatura e um incentivo para os leitores ampliarem seus horizontes culturais.
Grata,
Maria do Carmo Zanini
Editora - Mundo das Trevas Storytelling - Devir Livraria"