Réquiem
Final de mais um dia de verão em uma cidade estranha. O dia foi absurdamente quente e a noite não parece ser muito melhor. Sou eu ou essa cidade toda parece estar dentro de uma grande estufa? E hoje eu acordei me sentindo estranha, como se a cidade toda me observasse. Mas eu não me importo. Desde que entrei nesse trabalho eu sinto coisas estranhas, provavelmente uma tentativa frustrada do meu subconsciente de evitar que eu continue nessa vida. Tá bom.
Cansada e suada, passei a mão na pistola, acendi um cigarro e saí para caminhar um pouco. As coisas andam calmas na cidade desde aquele último assalto ao banco. Céus, tenho calafrios só de lembrar daquilo. O Rato tinha dito que ia ser fácil! Agora, a sete palmos, tudo deve ser fácil para ele.
Os guardas tinham que reagir, né? Se aqueles filhos da puta tivessem se rendido, nada disso teria acontecido! E depois veio a perseguição de carro, o corpo do Rato cravado de balas no banco do carona, noites e noites fugindo da minha própria sombra, sem conseguir dormir... Não quero mais saber disso!
Meu negócio é furto, assaltos de rua e roubos de carro. É menos dinheiro, eu sei, mas se vive melhor assim. Assalto a banco e tráfico geram mais grana, mas se morre cedo. Roubar na rua é mais tranquilo. Sempre tem algum palhaço que tenta reagir mas eles quase nunca estão armados. Não há nada melhor do que ver um bombado de academia se mijar nas calças quando eu aponto a arma na garganta deles.
Andando com a cabeça baixa, devagar, como alguém que está apenas aproveitando a noite, eu me dirijo para o meu ponto de sempre. Os bairros daqui não tem esgoto e a cidade toda fede a urina e fezes. Nos prédios, os vidros refletem a novela, a única diversão segura na noite. Vez ou outra também dá pra ver um casal ou alguém passeando com um cachorro, voltando pra casa.
Finalmente, o cemitério! Aqui sempre foi um bom lugar para se trabalhar. Vazio, mas sempre com alguém distraído por perto. As pessoas perdem tanto tempo se preocupando com os mortos que se esquecem de prestar atenção nos vivos. Há tempos a polícia desistiu de cuidar disso aqui. Mal conseguem proteger os vivos... Mas talvez seja porque perdem tempo demais tentando brincar de ser bandido. Se os policiais passassem mais tempo se dedicando ao trabalho deles, eu provavelmente teria que estar em um emprego honesto hoje.
Caminho tranquila entre as covas, admirando a paisagem. A maioria das pessoas acharia estranho se alguém falasse que gosta de caminhar no cemitério e apreciar a vista. Mas a maioria das pessoas também não sai por aí de noite, armada, procurando uma vítima. Sinto como se os mortos me protegessem. Talvez eles saibam que, todos os dias, corro risco de me juntar a eles.
Um barulho então chama a minha atenção.
Perto do portão, no ponto de ônibus, uma garota está de costas para mim, olhando apreensiva para as ruas enquanto espera seu ônibus passar. Sorte grande! Espero que ela seja bonitinha... Há um buraco aqui perto do muro que é ótimo para quando se quer algo mais das vítimas. Me aproximo devagar dela, sondando o meu alvo, tentando disfarçar a alegria. Ela então se vira e fica me olhando. Droga! Odeio quando me veem chegar. Vou ter que improvisar.
Paro do lado dela, fingindo estar esperando o ônibus, e puxo assunto, como quem não quer nada. Falo alguma coisa sobre o tempo, sobre o calor infernal.
A garota apenas olha pra mim, ainda me encarando. Céus! Ela por acaso é retardada? Seu olhar é inexpressivo. É melhor partir pro ataque logo, antes que ela fique mais estranha. Droga, nunca sei o que dizer nessas horas.
"Você não tem medo de ficar sozinha aqui nesse ponto?"
Que papo imbecil! Eu devo ter perdido mesmo o jeito. Mas ela nem parece ligar. Simplesmente continua me olhando e começa a dar alguns passos na minha direção. Eu já estava achando a garota estranha, mas nada se compara à sua resposta.
"Quando era viva, tinha."
Ninguém acreditaria, mas a maldita simplesmente atravessou meu corpo! Oh, Deus.. será que é tarde demais pra rezar agora?
Mas eu nem penso em me virar e começo a correr antes que algo mais aconteça. Cega de pavor, eu não vi a droga da lata de lixo na minha frente e tropecei, caindo de cara no chão. Atrás de mim, posso ouvir a risada da garota. Nem preciso pensar duas vezes pra saber que ela está vindo em minha direção. Sinto meu peito prensado contra o asfalto, meu coração pulsando contra o chão quente. Posso ouvir os passos da garota, seguidos pela sua voz.
"Lembra de mim, Gabrielle? Seis meses atrás..."
E qual doente ficaria pra ouvir o resto? Me levanto, cambaleando, e volto a correr. Passo batida pelo muro do cemitério, não olho para trás. É isso que se deve fazer quando se está apavorado: correr sem olhar para trás. Parece que, quando você olhar, a morte vai surgir bem atrás de você.
Ouço um rosnado. Chego a pensar que é a garota atrás de mim, mas logo vejo um vulgo saltar na minha frente. Por reflexo, eu paro.
Um cão enorme, um rotweiller, está na minha frente, rosnando pra mim. Sem dúvidas não é meu dia de sorte. Devia ter sacado isso quando tivesse aquela estranha sensação ao sair de casa. Segundos depois, um homem surge de algum lugar perto das lápides. Eu chego a ter vontade de rir. Está tudo horrível demais pra ser verdade.
"Eu tinha mulher e dois filhos, Gabrielle. E nunca mais vou poder abraçá-los por sua causa..."
Mas que merda é essa? "A volta dos Mortos-Vivos"? O que esses merdas pensam? Que eu guardo o nome de todo mundo que eu matei em um assalto dentro da minha agenda da Hello Kitty? Droga, se eu me preocupassem com o rosto das pessoas e seus sentimentos eu seria médica e não assaltante!
Tento recuar, mantendo os olhos no cão, mas sinto a garota do ponto se aproximando atrás de mim.
"Nós estamos aqui por sua causa, Gabrielle..."
Não aguento mais. Minhas pernas se dobram sem forças e eu caio na calçada, pela segunda vez. Sinto rios de suor escorrendo pelo meu corpo, encharcando a minha roupa. Fecho os olhos para ver se algo acontece. Esse não é aquela hora em que você acorda na sua cama, encharcada de suor e com o barulho do ventilador de teto no quarto?
O latido do cachorro me desperta. Porque eles ainda não me pegaram ou sei lá o que pretende fazer? Abro os olhos. Estão todos na mesma posição, apenas me encarando. Sem pensar, me atiro do outro lado do muro do cemitério, caindo pela terceira vez de cara no chão. Sinto alguma coisa estalar no meu peito. Mais tarde, isso provavelmente irá doer muito. Agora, não faz nem mesmo cócegas.
Salto por cima das lápides, chutando flores e tudo mais que ficasse em meu caminho. Nesse momento não estou nem mesmo raciocinando. Se tivesse parado pra pensar, teria visto que fugir de fantasmas em um cemitério foi uma das coisas mais estúpidas que eu já fiz. Estou novamente correndo sem olhar para trás, até não ouvir mais os latidos do cachorro.
Paro pra respirar, ofegante. Meu peito dói, minha perna dói, mas, mais que a dor, o medo é o sentimento dominante. Antes que eu tivesse tempo de me recuperar, vejo algo brilhando ao meu lado. É uma criança. Um menininha.
"Eu só tinha dez anos quando você e seu amigo assaltaram aquele banco, Gabrielle. E eu já estive com o seu amigo. Agora só falta você."
Vultos, surgem das sombras a minha volta. Caminhando entre os túmulos, sussurando o meu nome. Todo o ambiente parece estar coberto por uma densidade diferente, surreal, quase imaterial. Era como se o cemitério fosse agora uma grande cúpula de depressão, gemidos de dor e silêncio, impedindo que qualquer pessoa se aproximasse o suficiente para ver o que estava acontecendo ali dentro.
Eu me belisco, procurando algum indício de que aquilo tudo não era real e que eu iria acordar em breve, mas começo a perceber que nunca vou despertar desse pesadelo. A essa altura, diversos rostos e pessoas já haviam se juntado a minha volta, chamando meu nome, andando sem rumo. Sua vestes eram sujas e rasgadas, quase todas manchadas com sangue e sabe-se lá mais o quê. Até mesmo respirar estava ficando difícil. Só me resta rezar, como nunca rezei antes. Não dizem que há sempre um momento em que as pessoas se regeneram?
"Você acha que Deus ouviria as suas preces, Gabrielle?" A garota do ponto sai do meio da multidão, caminhando até mim. "E, se ele ouvisse, você gostaria de saber o que ele pensa ao seu respeito?"
Droga, ninguém nunca vai acreditar, mas eu só estava tentando ganhar a vida! Minha cabeça é uma zona só. Não sei mais aonde estou e nem em que acreditar. Não sei se agora estou correndo ou se ainda estou ali, parada, esperando que algo aconteça. Passo a mão em meu rosto e sinto ela derreter com meu suor. Ouço um barulho de algo de chocando contra uma lápide. Era a minha perna.
A terra úmida me devolve os sentidos e eu amaldiçôo esse momento de lucidez. Agora começo a sentir dores pelo corpo. A costela partida, diversos arranhões pelo meu corpo e, agora, a perna quebrada. Não vou conseguir mais correr.
Ótimo, que isso acabe logo de uma vez.
A garota do ponto se aproxima e me põe de pé, como se eu fosse feita de papel. Antes que eu pudesse fazer qualquer coisa ela me abraça, prendendo meu corpo junto ao dela. Eu não quero olhar, mas é como se uma força maior me fizessem encarar aquela garota. Eu podia ver seu sorriso podre, seus dentes cheios de terra.
"Você se lembra de mim, Gabrielle? Você disse que eu era gostosa. Disse que queria sentir meus seios, minhas coxas, meu corpo. Agora, você poderá sentir meu corpo inteiro."
Talvez estivesse tentando empurrar a garota, ou talvez estivesse me debatendo inutilmente no chão. Procuro um rastro de sanidade nessa noite, alguma lembrança para me agarrar, para dizer que valeu a pena. Mas eu nem mesmo sei onde estou agora. Estou confusa e com dor.
Talvez tudo isso seja uma alucinação. Talvez a morte seja uma grande alucinação.