Hong Kong Garden
Nunca vou me esquecer daquele fim de tarde chuvoso quando conheci Cho. Um dia atípico no verão londrino, mas coisas atípicas aconteciam naqueles anos. Era julho de 1983, eu tinha 16 anos mas já me comportava como uma punk de 17. Sim eu sei, hoje olho pra trás, pras loucuras que fazíamos e merdas que usávamos, sou muito sortuda por nunca ter tido uma overdose.
Mas a verdade é que eu era meio poser. Naquela época chamávamos os posers de pelegos. E você achava que não existia gente de vocabulário refinado entre os punks ingleses não é? Por coincidência, estava acompanhada de um dos muitos verborrágicos byronianos que usavam couro, correntes e moicano roxo nos anos 80.
Pilgrimage já não usava seu nome verdadeiro. Eu mesma abandonei o meu logo depois que despertei. Sorte minha não ter quebrado a cabeça para escolher um Nome das Sombras. Minhas irmãs sempre me chamavam de Sioux, porque diziam que eu tinha cara de uma nativa da colônia. Acho que porque herdei a pele mais morena de nosso avô, que era caribenho.
Naquela dia a chuva não deu trégua pra nenhuma alma viva – ou morta-viva, como as que acabei conhecendo depois – e foi Pilgrimage quem sugeriu que fôssemos até Hong Kong Garden, um pequeno, sujo e barulhento restaurante chinês em Chislehurst. Nunca fui muito fã de comida chinesa, principalmente porque era o que comíamos todas as terças e quintas nos dois anos em que minha mãe esteve desempregada, vivendo apenas bicos.
Mas meu parceiro por algum motivo gostava daquela barulheira toda. Acho que ele gostava da ironia de sentir-se transportado para um país distante, mesmo com os pés cravados em solo real. O restaurante estava sempre lotado aquela hora do dia. Eram jovens trabalhadores de diversos bairros de Londres, a maioria era de estrangeiros ou descendentes, mas alguns jovens ingleses também marcavam ponto.
Mal tínhamos acabado de sentar quando três skinheads entraram calando a todos. Normalmente Pilgrimage e eu seríamos as vítimas da vez, mas num ambiente como aquele, todos eram presas em potencial. Meu amigo segurou minha mão com força. Senti sua mente misturada a minha, não eram palavras organizadas, mas impressões livres das travas que o idioma impõe sobre o entendimento.
Pilgrimage parecia conhecer aqueles três buldogues. Sentindo minha ansiedade, tratou de me acalmar. “Parece que eles são do tipo que latem mas não mordem. Só estão a fim de procurar encrenca, mas se ficarmos na nossa eles logo irão embora”. A perspicácia dele me surpreendia, mesmo sem ter dado qualquer sinal visível é como se tivesse deduzido minha próxima ação. não fosse por Pilgri, teria sacado a presa de javali do bolso e feito uma ferida na cara de um destes manés.
“Má idéia” – ele disse, sem dizer – “Não se trata exatamente de feitiço Velado. Por mais que seja uma ação digna, é preciso avaliar bem suas chances de Paradoxo”. Fiquei contrariada, tenho certeza que ele percebeu, mas não fiz questão de disfarçar. Sempre ficava fula da vida quando recebia uma lição de moral por algo que eu sabia ser imprudência. “Controle seu gênio”, dizia minha avó.
Os buldogues, como previsto, só estavam lá pra atazanar. Apenas um deles era intimidador o suficiente, mas era o que menos falava. O cabeça do trio era um magrelo vestindo uma jaqueta escura que talvez pertencesse ao mais alto. Cabiam três dele. O alvo principal foram os donos do lugar; Sr. Chang, sua sobrinha Jade e um dos garçons, Cho, que eu ainda não havia notado.
Com um empurrão, o Sr. Chang foi ao chão, derrubando todos os pratos da travessa que segurava. Jade, na tentativa de ajudar o tio escorregou, produzindo uma cena que se não fosse pela incomoda situação até me faria rir. Os skinheads, por outro lado, acharam muita graça. O mais alto deles, sentiu-se no direito de comer os bolinhos do jantar de um trabalhador paquistanês ao seu lado, que é claro, não esboçou nenhuma reação.
O segundo deles, um sujeito esquisito de tatuagem no rosto e que até então só observava, lançou um olhar libidinoso em direção as pernas de Jade, expostas depois da queda. Aquilo me vez sentir ainda mais nojo da situação. Pilgri tentou dizer-me algo, mas o sangue ferveu mais rápido do que seu pensamento. Só não contava com Cho, que pareceu se mover na velocidade da luz.
Antes que alguém pudesse entender o que havia acontecido, o tatuado já estava com a cara no chão encardido. O buldogue maior investiu, sendo derrubado como um movimento de pernas que eu só veria novamente alguns anos depois num desses filmes Wuxia. O magrelo sequer fez menção de atacar, dando no pé enquanto vomitava impropérios e ameaças. Seus dois amigos seguiram seus passos porta da rua à fora logo depois.
As pessoas então começaram a rir. Timidamente, mas aquela demonstração de habilidade marcial não seria esquecida tão cedo. Foi Pilgri quem notou que Cho usara algo mais do aquelas Kung Fu para afugentar os carecas. Não demorou muito e lá estávamos os três conversando à mesa. Cho mostrou de início ser um sujeito reservado, o que não me surpreendeu. Ser estrangeiro num país como a Inglaterra nos anos de economia perdida não era exatamente um passeio turístico.
“Entendemos sua posição”, disse Pilgri. “Mas nos procure se precisar”. Sem tirar os olhos da mesa, Cho mergulhado numa lânguidão que o acompanharia até seus últimos dias disse “Provavelmente não os verei mais. Estes homens vão voltar com mais homens. Teremos que nos mudar pra mais dentro da periferia. De qualquer forma, agradeço sua proposta”.
Cho estava certo, os skinheads voltaram, mas só encontraram uma loja vazia. Mudaram-se para a periferia, como Cho vaticinou. Mesmo assim, os ultranacionalistas de couro e merda na cabeça não deixarão por menos, queimando o ponto comercial de um cidadão inglês como eles, pai de três filhos e que não tinha nada a ver com toda aquela história.
Nosso novo amigo pode ter acertado quanto ao retorno dos babacas, ele era bom em predizer o futuro. Mas errou feio quando disse que não o veríamos de novo. Cho foi membro efetivo da nossa cabala durante os 20 anos seguintes. No final de 2003 ele voltou para a China com Jade, com quem se casou e com o Sr. Chang, já doente, ansioso por retornar a seu país de origem onde gostaria de ter suas cinzas espalhadas.
Estamos novamente em Julho. A chuva deslisa pela janela como naquele dia há quase três décadas. O ano é 2011 e acabo de receber um telefonema de Jade avisando sobre a morte de Cho. De certa forma já esperava por essa. Se Cho era tão bom adivinho quando artista marcial, então as chances dele ter vislumbrado a própria morte anos à trás é bem grande. Talvez isso explique sua posição sempre tranqüila perante as dificuldades e aquele olhar tristonho que tanto me atraía.
Troco algumas condolências com Jade e desligo o telefone. Confirmei minha ida a Hong Kong para o funeral. Nem sei se encontrarei passagens à tempo, mas também não ligo. Tanto estudo nas artes do Espaço tem que servir pra alguma coisa mais mundana de vez em quando. Na cozinha, pego algumas ervas aromáticas e faço uma pasta azulada para me proteger. Desenho os sigilos atlantes com certa impaciência e em tão invoco um espírito dos enigmas.
Depois de realizar as oferendas adequadas e resolver suas charadas obtenho a resposta que procurava. A morte de Cho não foi casual. Infelizmente, meu limitado conhecimento espiritual não me permitiu ir mais fundo. Se Cho foi alvo de antigos inimigos ou vítima de algum predador sobrenatural ainda era um mistério para mim. O que não me impediria. “Controle seu gênio”, diz o fantasma de minha avó parado sob o tapete no cômodo ao lado.
“Ah vó. Não se ensina truques novos a macaco velho”, respondi.