O Problema da Cultura em Mago: O Despertar.
Basicamente, quando o jogo saiu, e conforme foi sendo assimilado pelos novos e velhos jogadores, surgiu naturalmente a comparação do Despertar com a Ascensão. Para aqueles desconhecem Mago: A Ascensão (MaA), o jogo de mago do antigo Mundo das Trevas (aMT), havia uma divisão tipológica básica entre os magos, que eram classificados de acordo com Tradições, da mesma forma que em Vampiro: A Máscara os vampiros eram classificados de acordo com os clãs.
No livro básico de MaA haviam 9 Tradições as quais narradores e jogadores poderiam escolher, todas elas inspiradas em tradições místicas reais, ou seja, baseadas em cultos, doutrinas e sistemas mágicos do nosso mundo real. Devido a isso, essas Tradições de MaA carregavam em si um forte apelo cultural, pois sua construção estava explicitamente influenciada por aspectos característicos de tradições místicas reais, aspectos tais que qualquer um pode identificar com uma simples pesquisa na internet.
O exemplo mais clássico e de mais fácil acesso para se entender o que estou falando é a Ordem de Hermes, visivelmente inspirada na filosofia e nas práticas de um sistema místico conhecido como hermetismo. Mas também pudera, a ambientação histórica de MaA permitia (e exigia) esse apelo cultural. Tendo a história dos magos transcorrido de maneira tão enlaçada à história da humanidade, seria mais do que natural que as Tradições fossem tão íntimas ao que são na nossa realidade.
Mas MaA encontrou seu fim com o aMdT e chegou da vez do Despertar. Um dos primeiros temas de debate foi justamente essa característica cultural. Lendo as extensas 400 páginas do módulo básico de MoD pode ser difícil, para um iniciante, perceber quaisquer influências culturais além das óbvias que os próprios autores expõem. Contudo, conforme a pessoa vai se familiarizando com o misticismo do nosso mundo e com o do jogo, começa também a perceber as influências que ele exerceu na criação de MoD.
Claro que o apelo cultural no Despertar é muito mais sutil do que na Ascensão, e, tal como disse acima, esse novo jogo ( já não tão novo assim) permite e até exige esse aparente distanciamento da cultura humana comum. Ora, não são os Despertos aqueles que vão além dos horizontes que os Adormecidos costumam ir? Então, como sua cultura seria tão ligada à cultura dos Adormecidos. Não pode ser e não o é.
Agora prestem atenção nessas próximas duas considerações: existem influências culturais da nossa cultura em MoD e existem as influências da cultura Desperta também.
Para os que leem sobre misticismo e ocultismo no mundo real, as referências reais na criação das Sendas de MoD são claras. A senda acanthus foi inspirada nas tradições pagãs, principalmente as célticas, em suas histórias de maldições, de sorte e azar, nos verdadeiros contos de fadas (os originais e sinistros, não os atuais). A senda obrimos foi inspirada nas tradições da teurgia, no hermetismo, e em grande parte da magia europeia moderna, que tem Deus (em qualquer interpretação Dele) no centro. A senda mastigos, também inspirada nas tradições místicas europeias, foca-se, diferentemente desta anterior, nos rituais de invocação de entidades inteligentes (das várias interpretações sobre os demônios que não exclusivamente a judaico cristã) e sua submissão à vontade do mago, tal como e principalmente, a goécia. A senda thyrsus foi influenciada pelo xamanismo característico do misticismo de tribos de índios e culturas “menos” civilizadas, com suas invocações espirituais e seus rituais curandeiros. Por fim, mas não menos importante, a senda moros foi influenciada principalmente pela alquimia europeia (mas também nos princípios orientais de transmutação) como também pelas tradições que lidam com os mortos, como os vários tipos de vodu (dos quais a umbanda e parecidos derivam) e outras formas de necromancia.
Dizer que MoD não trás em si relações e influências culturais do Mundo das Trevas e do nosso mundo não é uma verdade, como estou tentando mostrar nesse artigo. Para aqueles que, lendo o livro básico, não conseguiram perceber essa influência que descrevi na criação das Sendas, podem então perceber no livro as várias vezes que os autores falam da importância de objetos e símbolos do Mundo Decaído na conjuração mágica. Símbolos das tradições reais são canalizadores para a magia Desperta. Por exemplo, é mais fácil para um mago acanthus conjurar um feitiço em torno de uma árvore antiga, próximo a um monólito ou um círculo de pedras (símbolos místicos da tradição druídica) da mesma forma que é mais fácil para um mago thyrsus livrar alguém de um espírito maligno se executar as danças e canções indígenas em torno de uma fogueira, ou ainda se um mastigos usa de maneira exata toda a parafernália (como espada, cajado, varinha, tiara, manto, altar, incenso, braseiro, velas, giz coloridos, figuras geométricas perfeitamente traçadas, e etc. e etc. tudo construído manualmente pelo próprio mago) recomendada nas tradições goéticas para fazer seus encantamentos.
Se, por um lado, MoD recomenda insistentemente que os personagens jogadores usem as bases e influências culturais das quais seus personagens pertencem, o jogo também é extremamente dogmático ao não abrir mão de seu aspecto cultural próprio: a cultura Atlântica. A sociedade Desperta e extinta de Atlântida desenvolveu toda uma cultura própria de verdadeiros magos. É fácil compreender isso: imagine uma sociedade erigida e dirigida por Despertos, por pessoas que buscam a iluminação e detém segredos sobre os mistérios (e Mistérios) do universo. Tal sociedade obviamente seria construída de maneira diferente da nossa sociedade comum, com características próprias, o que levaria à criação de uma cultura própria, visivelmente diferente da cultura das pessoas ordinárias, dos Adormecidos. Contudo Atlântica caiu, sua sociedade foi extinta, e tudo o que sobrou foram fragmentos de sua cultura.
Os magos mais tradicionalistas (principalmente aqueles da Escada de Prata, uma das Ordens de MoD) defendem a manutenção do que sobrou dessa cultura, das tradições e conhecimentos que sobreviveram à Queda. E não é sem motivos que fazem isso, pois a cultura atlântica representa o ápice do que uma sociedade Desperta seria capaz, representa uma sociedade tão perfeita, tão sonhada e atualmente idealizada pelos magos que muito apropriadamente é taxada de utópica. Então, a defesa tão clara em MoD da preservação do legado cultural de Atlântida é porque ela representa o ideal que permeia os sonhos e desejos de poder da grande maioria dos Despertos.
Exemplos dessa cultura são óbvios e evidentes em todos os livros de MoD: as Ordens e suas funções sociais (com exceção do Concílio Livre, é claro), a organização da sociedade Desperta na forma de Consilium, com seus Hierarcas, Conselheiros, Prebostes, e etc. e também no estilo de feitiçaria, com a existência dos feitiços clássicos codificados pelos atlantes, sem falar na própria Língua Sublime.
E se até aqui ainda existem aqueles que não estão satisfeitos com as influências culturais de MoD, o jogo ainda expõe mais uma ferramenta que permite fácil customização do mago à qualquer tradição mística real: os legados. A mecânica de criação de legados permite uma flexibilidade de adaptação dos magos a qualquer cultura mística existente, limitando-se apenas à imaginação de jogadores e narradores. É perfeitamente possível, inclusive, transformar as Tradições de MaA para legados.
Bem, espero ter deixado claro que as reclamações sobre a falta de influências culturais em MoD estão um tanto equivocadas, e que não é preciso ir muito além do livro básico para se perceber isso. Contudo, para aqueles que não estiverem satisfeitos, recomendo a leitura de dois livros da White Wolf feitos especialmente para esses eternos descontentes: o primeiro é o Magical Traditions e o segundo é o Tome of the Watchtowers. Sem falar no capítulo sobre cultura em MoD do Tome of Mysteries e outros tantos textos da linha de mago. Por outro lado, também recomendo muito que narradores e jogadores de Despertar leiam sobre as tradições místicas do nosso mundo, principalmente sobre o druidismo, xamanismo, teurgia, alquimia, hermetismo, goécia ou goétia, taoísmo, xintoísmo, vodu, cabala, dentre outros. Conhecer um pouco sobre essas tradições ajuda a deixar qualquer mago melhor elaborado, mais legal.
Para terminar, deixo claro que esse artigo é parcial, representando a minha visão e interpretação dos eventos, que poderia ser diferente caso fosse outra pessoa que o redigisse, mas que nem por isso deixa de ser útil na medida que introduz a discussão do tema. Em momento algum tentei ser parcial, pois não era meu objetivo criticar os dois sistemas, mas defender um deles. Espero que me compreendam.