Mago e uma análise sobre O Despertar
Um pequeno retrospecto
“Um jogo narrativo de feitiçaria contemporânea”. É o que nos avisa, já na capa, sobre o conteúdo do título. Um jogo, uma classificação proibitiva para menores de 18 anos, uma nova história. Para os fãs, recomeço. Mago: O Despertar, lançado no Brasil pela Devir Livraria, é tudo isso. Vai além, entretanto. Figura-se como demonstração definitiva de uma White-Wolf mais madura, empenhada, capaz de reformular a si mesma em busca do aperfeiçoamento. Mago atinge o ápice desta empreitada. É um livro denso, complexo, cheio de nuances, tramas e conceitos que ultrapassam de longe a visão comumente simplista que se tem dos jogos.
Ao lado de Vampiro: O Réquiem e Lobisomem: Os Destituídos, a obra constitui principal publicação da editora que, desde 1991, produz jogos interpretativos onde vampiros, fantasmas, espíritos, magos, lobisomens, entre outros, são protagonistas. O desafio destes jogos, porém, ao qual Mago também vem engrossar as fileiras, é atrair um público que reluta em aceitar o novo, apegando-se a um passado totalmente descartado pela White-Wolf. E o passado também é sobrenatural.
A Máscara, A Ascensão e O Apocalipse – referentes, respectivamente, a Vampiro, Mago e Lobisomem – fazem parte de um Mundo das Trevas que não existe mais. Um mundo de políticas sobrenaturais complexas, intrigas que se estendiam como redes, das Américas ao Oriente distante, de uma atmosfera opressora e decadente onde os seres humanos tinham pouca ou nenhuma força. O Novo Mundo das Trevas nunca é o que parece... Mistérios e suspense figuram-se como os temas principais, e em vez de intrigas megalomaníacas de seres quase invencíveis, vemos agora o desconhecido predominar, o que é perigoso mesmo para as criaturas sobrenaturais, ou dotadas de algum poder. O que ficou para trás? Lembranças agradáveis, personagens criativos, mas também um sistema que já dava sinais de cansaço. O que fica no presente? A qualidade, habilmente aperfeiçoada nestes novos jogos e atingindo seu ápice em Mago: O Despertar.
Um livro mágico
Mago não é um livro modesto. Tampouco um livro qualquer. São exatas 400 páginas modeladas com uma arte singular. A começar pela capa, cujo design é simplesmente fantástico. A carta sobre a areia desfazendo-se por mágica foi uma grande idéia, mas o destaque fica por conta do verniz localizado sobre o Pentagrama das Sendas, juntamente com o bom uso da cor azul-esverdeada (ou seria verde-azulada?), que dão ao todo uma aparência mística, como se fosse de outra realidade e, porque não, de uma realidade Superna?
Em seu interior, as cores do livro são o preto e o dourado. O preto ilustra desenhos dos personagens e da narrativa principal, enquanto o dourado colore desenhos místicos – como os Dragões Atlantes – e os boxes onde se encontram informações adicionais. Por falar nos desenhos, vale ressaltar o trabalho de Michael Kaluta. Seu traço nas imagens de teor místico, bem como nos símbolos das Ordens e Sendas, possui uma qualidade ímpar. Quanto às cenas de lutas entre personagens e aos representantes das Ordens, porém, devo concordar com outros resenhistas: a arte torna-se um pouco monótona. Talvez algo mais realista deixasse o todo mais completo. Esse é um dos pontos fortes do módulo básico d’O Mundo das Trevas, onde vários ilustradores participam, fazendo deste livro, a meu ver, aquele de melhores desenhos do Storytelling.
Vale falar ainda do meio entre as páginas de Mago, o miolo, que recebeu um detalhe especial. Sua ilustração lembra livros antigos e medievais, cujas folhas eram muitas vezes unidas por laços de tecido. Essa técnica de arte também é encontrada em vários livros de D&D, a exemplo de Forgotten Healms, e o efeito fica muito bom, você sente como se estivesse lendo algo realmente valioso e antigo.
Capítulos e Temas
Tendo descrito o corpo, agora é hora de descrever a essência da obra, e Mago está nos mais altos padrões. Dividido em 4 capítulos principais, mais uma Introdução e dois Apêndices, o livro é uma avalanche de informações e conceitos que muitas vezes exigem uma releitura, e releituras de releituras, para se apreender de fato toda a história e as informações. A estrutura é bem organizada, com temas distribuídos de forma a tornar a aquisição de conhecimento cumulativa e de fácil procura.
Na Introdução, anotações no diário do jovem Arctos nos transmitem a atmosfera do jogo. Um jogo que lida com Mistérios insondáveis, com poderes cujo único limite é a imaginação de quem os usa, um jogo que exige pensar. A descrença demonstrada por Arctos diante da constatação de que tudo em que ele acreditava até então constituía uma Mentira, o relato de seu Despertar e os primeiros contatos com outros Despertos conduzem magistralmente o leitor a se perguntar: e se fosse verdade? Melhor: e se fosse comigo? Esse talvez seja o primeiro passo para extrair de Mago as múltiplas possibilidades como jogo que ele tem a oferecer. Há ainda ótimas sugestões de músicas, livros, filmes e quadrinhos para que o leitor sinta de fato a atmosfera proposta pelos escritores, tornando a compreensão do sistema mais completa.
O primeiro capítulo, Arcanus Mundos, é também, a meu ver, o melhor. Nele somos apresentados ao glorioso mito de Atlântida, A Cidade Desperta, onde a magia, num passado muito distante, atingiu seu apogeu. Nele entendemos o que é Despertar, e o significado único que esse momento possui. Entendemos sobre os Padrões enredados que compõem a Trama da Existência, e de como a Magia pode ser usada para trazer elementos Supernos ao Mundo Decaído, o nosso mundo. Sim, porque em Mago: O Despertar, a Magia não é senão um meio pelo qual os Despertos exercem uma influência Superna por aqui. É trazer um pouco da essência de Lá para moldar nossa realidade.
Mas não sem consequências. O Abismo que separa os dois mundos não permite que a Magia se manifeste livremente, de forma que, se for Magia Vulgar e presenciada por um Adormecido, corre-se grande risco de invocar um Paradoxo, um efeito mágico reverso que ocorre de diversas formas, desde Desvarios, Anomalias, até Manifestações, quando um próprio ser abissal é invocado pelo erro do Mago. O que nos remete novamente ao mito de Atlândida. Não haveria Paradoxos, não haveria Abismo, nem mesmo haveria o Mundo Decaído não fosse a tragédia Atlante, quando muitos Magos esqueceram sua Sabedoria e, através de atos de húbris, tentaram alcançar o Mundo Superno por meios ilícitos, provocando assim uma guerra mágica que estremeceu definitivamente a Trama da Existência. Os Magos infratores que chegaram ao Mundo Superno teriam usurpado os tronos dos Deuses e aclamado o controle da Trama sobre si, sendo eternamente conhecidos como Exarcas. Foram combatidos, porém, por Magos sábios e poderosos, os Oráculos, capazes de, por si mesmos, tentarem resistir à decadência da Magia no mundo, obtendo domínios chamados de Reinos Supernos, responsáveis por trazer a Magia para cá.
Um passado com tamanha grandiosidade é mais que suficiente para que os Magos contemporâneos apeguem-se às suas tradições de forma devota. Assim, a sociedade mágica é estruturada em várias redes de influência que tornam suas existências um pouco mais fáceis. Porque os Magos, mesmo sendo estudiosos que muitas vezes optam por caminhos solitários, precisam de fato uns dos outros para evoluir como Artífices da Vontade, e não cederem aos impulsos que o poder frequentemente lhes incita.
É neste contexto que o capítulo nos fala sobre as Cabalas Mágicas, apresentando também as quatro Ordens Atlantes, que são: Escada de Prata, Guardiões do Véu, Mysterium, e Seta Adamantina. Há ainda o Círculo Livre, grupo que ostenta uma bandeira menos rígida e mais flexível que as demais ordens, além de negarem Atlântida e qualquer vínculo com sua história, para eles apenas um mito. As Ordens, no entanto, são mais como arquétipos de uma sociedade plural e complexa, e não necessariamente repetem-se de forma idêntica em quaisquer lugar que existam Magos. Assim, da mesma forma que Atlântica pode ser chamada de Hiperbórea, Mu, entre outros, a depender da cultura local, acontece o mesmo a estas Ordens.
No segundo capítulo, Criação de Personagens, temos uma série de instruções e guias para facilitar, como o próprio nome do capítulo diz, a criação de personagens Despertos. Tendo como base o módulo básico d’O Mundo das Trevas, é uma parte importante do livro pois volta nossa atenção novamente para a mecânica do jogo, distribuição de pontos na ficha, montagem de conceitos, prelúdios, etc.
Aqui também há uma descrição detalhada das Sendas pelas quais ocorre o Despertar do Mago, e se, comparativamente, as Ordens mágicas seriam como as Ordens da nova sociedade vampírica no Réquiem, as Sendas corresponderiam aos clãs. Durante o Despertar, o Mago é levado misticamente até a Torre de um Reino – os Reinos Supernos são descritos no capítulo I – onde gravará seu novo nome e Despertará para a consciência Superna. As Sendas são: Acanthi, Mastigoi, Obrimoi, Moroi e Thyrsi.
O terceiro capítulo, intitulado Magia, é o mais técnico de todos. É também o maior capítulo, e aqui noto mais uma semelhança com o D&D. Na parte que descreve os Arcanos e as Magias possíveis para cada um, lembrei-me automaticamente das descrições de Magia da 4ª edição de D&D, não pelo conteúdo, mas pela escrita em si. Essa sessão ensina sobre como usar a imaginação para desenvolver efeitos novos a partir de um Arcano, criar as próprias magias, além de explicar detalhadamente como funciona um Paradoxo e seus efeitos a partir da Senda trilhada pelo Mago invocador. Além disso, descreve os chamados “Clássicos da Ordem”, magias que podem ser realizadas sem custos dispendiosos e que exigem bem menos concentração por parte do Artífice.
Narração e Antagonistas, o último capítulo, é uma sessão para narradores. Quem estiver interessado em mestrar Mago vai com certeza ler avidamente este capítulo. Nele são sugeridos panoramas para inícios de crônicas, de como introduzir a essência de Mago numa ambientação, além de descrever mais detalhadamente assuntos que só foram anteriormente citados, como os Reinos Invisíveis, o Dromo, etc. Conta ainda com uma sessão de antagonistas, e vale ressaltar a criatividade dos autores nessa parte. Os Profetas do Trono Superno e os Interditores são personagens palpáveis, "visíveis", com complexidades que, se exploradas do modo certo, podem render ótimos resultados numa crônica.
Por fim, os Apêndices. Dividido em duas partes, enquanto a primeira se dedica a explicar melhor como funciona um Legado, espécie de herança mágica transmitida de mestre a discípulo e capaz de elevar a própria essência de um Mago, a segunda nos apresenta a cidade de Boston e seus habitantes, proporcionando melhor visualização do funcionamento de uma sociedade mística.
Conclusões
Mago: O Despertar, não é jogo para qualquer um. Exige reflexão e maturidade, além de uma criatividade nata que acompanha todo bom RPG. Sua história é densa, bem estruturada, e com possibilidades de alcance inquestionável. Interpretar um Mago, neste sentido, é lidar com questões profundas, que remetem à nossa própria psique e à forma como percebemos o mundo e a habilidade de moldá-lo à nossa vontade. É um jogo que lida com conhecimento e poder.
Tanto lida que seu título poderia ser Mago: O Preço do Poder, ou Mago: A Queda. A todo instante são relembrados os dilemas que envolvem a existência mágica, o risco de ceder à loucura pela invocação de Paradoxos, de cometer atos de húbris capazes de abalar todo um mundo enredado em Padrões complexos e interligados. Poder, em Mago, nunca é somente uma benção. No entanto, não obteve nenhum desses outros títulos porque, em essência, o objetivo do jogo não é obter poder, mas atingir um nível de consciência capaz de ignorar as limitações do Mundo Decaído ao máximo, e aproximar-se definitivamente do Mundo Superno. Poder, nesse sentido, é apenas um bônus.
É preciso estar atento também à história Atlante de Mago. Ela é tão belamente construída, tão magistralmente apresentada, que em muitas partes fica difícil esquecer seu passado e olhar para o jogo no presente, no mundo que vivemos hoje. Por mais que às vezes seja difícil, porém, é sumariamente preciso. Como a própria capa diz, este é “um jogo narrativo de feitiçaria contemporânea”, e saber “contemporanizar” Mago usando como base o Mundo das Trevas, tornará a crônica tanto mais rica quanto envolvente para o jogador.
Por fim, vale ressaltar a importância que Mago desempenha dentro do sistema Storytelling de RPG. Desde Lobisomem: O Apocalipse, eu não via um jogo que exigisse tanta interpretação por parte do jogador. E é esta a essência de um Storytelling: interpretar, construir histórias, interagir de forma a tornar o jogo algo, além de divertido, consistente, estruturado, possível de se sentir. Mago oferece tudo isso. Como livro, pode não ser perfeito e deixar algumas coisas sem total explicação, mas com um pouco de imaginação por parte do narrador este problema se resolve. Como jogo, porém, é tão envolvente quanto completo, capaz de atingir não apenas os personagens, mas qualquer jogador que esteja interessado em algo que realmente desafie sua interpretação e capacidade de imaginar.