Deixe os Corpos Preencherem o Chão

por Stamato em

O que fazer quando se deparar com o inexistente? E o que fazer caso sobreviva a ele?

Onze horas da noite de quarta-feira. Era pra ser uma noite tranqüila, sossegada, mas uma mãe de família ligou para central e deu queixa de algum movimento estranho em uma casa abandonada, no subúrbio. Provavelmente foi algum adolescente brincando de visitar a casa mal assombrada, mas como esta cidade está cada vez mais violenta, uma equipe de quatro homens foi enviada para averiguar. Seja lá o que estiver naquela casa, vai levar um baita susto quando chegarmos.

 

- Não acredito que me interromperam bem no meio da minha partida de poker. E ainda mais pra atender um trote. Aqueles cretinos... – Resmungou o sargento.

 

- Já que você não vai perder seu dinheiro jogando, perca apostando. Eu aposto que é um drogado. – Falou Jimmy, um idiota que havia acabado de se formar na academia e já chegou podre de corrupção, doido para se misturar nas panelinhas de babacas da policia.

 

- Aposto que a casa vai estar vazia. – Matheus era o que menos fedia daqueles três. Na verdade, eu ainda não o conhecia direito, mas não dá pra esperar muita coisa boa naquela divisão da cidade.

 

- Ok, então. Se for um trote, cada uma das menininhas vai por vinte pilas no meu bolso. – Parecia que o sargento só falava através de resmungos.

 

- E você, Cristiano? Aposta que é o que? – Sabe aquelas pessoas parecem que nunca falam sério? Jimmy era desse tipo.

 

- Aposto que foi um lobisomem trocando de pele e que se dane as suas apostas. – Respondi, mantendo a atenção nas ruas.

 

- Vai ter que me pagar as vinte pilas mesmo assim. Chegamos. – era ridículo ver um barrigudo, bigodudo como aquele sargento bancando o manda-chuva, mas eu tinha que obedecer às ordens da central e só queria voltar para o meu posto pra me ver livre daqueles caras.

 

Estacionamos a viatura em frente a tal casa. Toda cercada por um muro de  pouco mais de dois metros de altura, que não era nenhum desafio para ninguém pular. Não dava para ver muita coisa do lado de dentro, além do topo de algumas árvores. A rua era estreita, sem asfalto, só de casas de dois ou três andares, completamente deserta e sem iluminação.

 

- Matheus fica cuidando da viatura, vocês dois vem comigo. – A voz do sargento já era meio rasgada pelo excesso de fumo. Um dos caras mais acabados que eu conhecia.

 

O portão principal estava entreaberto, sem nenhuma fechadura ou cadeado. Nos entreolhamos, em silêncio, e entramos. Do lado de dentro do terreno, a casa era de tamanho médio, dois andares, uma varanda no andar de cima, à direita havia um galinheiro abandonado colado com o que parecia ser um depósito de equipamentos de jardinagem ou qualquer coisa do tipo. Nos fundos, a casa do caseiro, só um andar e uma escada para uma laje, tudo muito velho e mal cuidado, parecia abandonada há, pelo menos, dez anos.

 

- Cristiano fica aqui do lado de fora, não deixe nada fugir pelos muros. Eu e o Jimmy vamos entrar.

 

- Afirmativo, Senhor. – Respondi com desleixo. Eu tentava encontrar algum movimento por dentro das janelas, mas a falta de iluminação e o excesso de poeira em todo canto dificultava muito. Parecia realmente que não havia nada ali.

 

O sargento e o garoto entraram pela porta principal da casa, enquanto eu fiquei no jardim da frente, observando. Olhava para as janelas do andar de cima, do andar de baixo, tentava observar algo na casa do caseiro, e nada. Após alguns instantes, um cheiro estranho começou a me incomodar. Olhei para a terra ao meu redor, mas não parecia haver nada errado ali. Olhei para o topo das árvores e nada também. Olhei para o galinheiro. Dentro da casa, os dois pareciam ainda estar investigando o andar de baixo. Caminhei lentamente, tentando seguir o cheiro, sem desprender minha atenção das janelas. Aproximei-me devagar e o cheiro pareceu ficar mais forte. A três metros de distância, o cheiro já me provocava caretas involuntárias. Olhei bem para a casa por um instante e então, olhei para o galinheiro. Não dava para ver quase nada, além de algumas moscas rondando o lugar. Apontei minha lanterna e não acreditei no que vi.

 

Por dentro, o galinheiro era todo rubro, tanto nas paredes quanto na palha do chão. Era difícil contar quantos corpos tinham lá dentro, de tão brutal que eles haviam sido distorcidos. Braços e pernas se contorciam em nós, deixando apenas as cabeças penduradas, pesando para baixo. Fraturas se exibiam em cada parte do corpo das vítimas, todas penduradas no teto. Liguei para o rádio da viatura.

 

- Matheus, na escuta? – Minha voz tremia e meus olhos tentavam flagrar algo pelas janelas da casa.

 

- Na escuta, Cristiano, o que houve?

 

- Encontrei corpos no galinheiro do terreno, Jimmy e o sargento estão em perigo dentro daquela casa, temos um psicopata na cena. Tranque a viatura e se prepare para intervir. Repito, temos um psicopata na cena, prepare-se para intervir a qualquer momento.

 

Mandar um rádio para o sargento seria denunciar a posição deles para o assassino, minha única opção era entrar. Puxei minha pistola e corri pela porta da frente. Uma pequena sala, com duas portas para quartos, uma passagem para a cozinha e uma escada para o andar de cima. Eles já haviam subido e o assassino deveria estar lá também. Subi a escada correndo. No segundo andar, outra pequena sala com uma porta para a varanda e três outras portas. Jimmy estava de prontidão no meio da sala.

 

- Ei, Cristiano, o sargento mandou você ficar do lado de fora, o que está fazendo aqui em cim... – As palavras do garoto foram interrompidas pelo corpo do sargento voando por uma das portas a fora, batendo de forma brusca contra a parede, fazendo um estouro espantoso. Eu e Jimmy arregalamos os olhos e apontamos nossas armas para a passagem aberta. Esperávamos ver algo ruim sair dali, mas quando saiu, era ainda pior.

 

O cara devia ter mais de dois metros de altura, todo robusto, careca, com a pele em uma  coloração bizarramente cinza. Ele saiu pela porta com tranqüilidade, como se não sofresse nenhuma ameaça e olhou para cada um de nós.

 

- Mãos pro alto! – gritou Jimmy. Na época, eu não sabia como aquilo foi ridículo.

 

O cara olhou para o Jimmy e começou a andar na direção dele, sem a menor pressa. O garoto tremia todo, de boca aberta com a figura em sua frente. Quando os dois se encontravam a uns três passos de distância, Jimmy apertou o gatilho... E recebeu um soco avassalador na cara, como resposta. O garoto caiu para trás, quebrando uma estante de vidro com as costas e desmontou no chão com o rosto amassado e coberto de sangue. O homem parecia ter a força de um gorila.

 

Não pude acreditar no que meus olhos estavam vendo. O sujeito tinha que ser abatido. Mirei em suas costas e disparei meu primeiro tiro da noite. O corpo dele mal reagiu ao impacto. Ele começou a se virar em minha direção. Outro tiro, dessa vez no ombro. Outro tiro, na barriga. Outro tiro, no tórax. E ele continuava de pé. Veio caminhando em minha direção, me olhou com a seriedade de quem não se diverte matando suas vítimas e fechou os dois punhos se preparando para me derrubar. Mais um tiro disparado e mais um passo do homem. Outro tiro disparado e ele estava na metade do caminho. Disparei de novo e seu punho já estava preparado pra me nocautear. O soco veio e eu me joguei em cambalhota para trás dele e liguei o rádio.

 

- Matheus! Estamos sob ataque, precisamos de apoio! Repito, precisamos de apoio!

 

Enquanto falava, o pé do assassino veio em minha direção. Me joguei em cambalhota novamente. Terminei o movimento já disparando, errando o primeiro tiro, mas não o segundo e nem o terceiro. Comecei a acreditar que estava enfrentando algum tipo de imortal - eu já teria derrubado um boi com tantos tiros e o maldito continuava de pé. Só me restava uma opção: mirar na cabeça.

 

O assassino tirou o seu pé do buraco que havia criado na parede num solavanco e se virou na minha direção. Respirei fundo, mirei na testa, mas não fui eu a disparar. Jimmy, no chão, mal tinha forças para levantar a pistola, provavelmente com a visão quase incapacitada apertou seu gatilho sem contar quantas balas estava disparando, nem hesitar. Atingiu a parede, atingiu o teto, mas também atingiu o maldito. Ele olhou feio para o Jimmy, parecia que não gostava de dar mais de um golpe para matar suas vítimas, mas não houve dúvidas, o segundo terminou o serviço. Um novo buraco foi aberto na parede do segundo andar, dessa vez, com a cabeça do Jimmy sendo usada para abrir caminho. Por reflexo e medo, voltei a disparar minha arma, sem saber onde mirar e sem acreditar que o monstro ainda estava vivo.

 

Era minha vez de ser abatido. Parei de disparar minha arma e me lembrei de mirar na cabeça. Não me sobrava muita munição, então, eu não podia errar. O olhar do psicopata parecia me desafiar. Seu punho se fechou e uma voz gritou:

 

- Parado! – Não sei se Matheus pensou em não atirar, mas quando deu de olhos no pandemônio que havia se tornado aquela sala, apertou o gatilho sem pensar duas vezes.

 

Para o nosso azar, o assassino havia se cansado da brincadeira e investiu para cima de Matheus com um soco. Meu colega se jogou para o lado, deixando a parede para ser aberta pelo punho do psicopata. Ele se levantou do meu lado:

 

- O que é isso?

 

- Eu não sei, mas ele não cai.

 

Lentamente, começamos a andar cada um para um lado, para nos afastar e cercar o inimigo. Ele olhou para cada um de nós, escolhendo a vítima, pensou por um instante e veio para cima de mim.

 

Matheus voltou a apertar o gatilho impiedosamente. Disparei uma vez, mirando a testa do maldito, errei, disparei mais uma vez, quase acertei, apertei o gatilho pela terceira vez e ouvi o clic seco da arma sem munição.

 

Um soco cruzado veio na direção da minha cabeça, me esquivei, outro veio na mesma direção e pulei pro lado, pensei em procurar algo para me defender, mas a enorme mão do assassino segurou meu rosto e me levantou do chão. Comigo nas mãos, o psicopata me pôs entre ele e o Matheus, me usando de escudo. Um tiro pegou no meu ombro, antes que meu colega tivesse o reflexo de parar de atirar. Era evidente o porquê que aquele monstro agia como se fosse invencível: ele era. Senti a pressão no meu crânio se agravar e uma dor estonteante assolar meu cérebro, até que ouvimos:

 

- Filho da puta! – O sargento não estava morto.

 

Atirou incontáveis vezes nas costas do psicopata, o incomodando e fazendo-o me soltar. Ele se debateu em meio aos tiros, grunhiu, segurou a cabeça como quem sente dor e urrou em fúria. A boa notícia era que ele sentia dor.

 

Em meio aos gritos, o monstro foi na direção do sargento e calou seus disparos com o pé afundando o chão com o tórax da vitima, fazendo-o esbugalhar os olhos e vomitar sangue em uma golfada densa. Matheus voltou a atirar, andando para o lado, tentando se afastar do monstro. Corri na direção do corpo de Jimmy, peguei sua pistola e mirei. Não sabia quanta munição ainda tinha naquela arma, então, não podia desperdiçar. O braço de Matheus tremia, seus disparos não eram mais tão precisos, muitos pegavam nas paredes e com um único murro no peito, meu ultimo aliado vivo capotou escada a baixo. A expressão séria e fria do monstro agora era pura raiva e rugidos.

 

Ele me olhou, eu mirei, disparei e acertei em cheio, no meio da testa do desgraçado.

 

Ele não caiu.

 

Em um passo, o assassino já estava em cima de mim, com os dois braços juntos sobre a cabeça, descendo um murro. Pulei pela direita, e o armário que ficou no caminho se desfez com o golpe. Tentei disparar de novo e descobri que estava sem munição. Ele girou o braço em um soco na minha mão, me desarmando, seguido por outro soco. No susto, tropecei no chão, me jogando para trás, tentando desviar. O maldito levantou o pé, eu girei e ele afundou o chão. Tentei me levantar, mas a mão dele me pegou pelo colete, me erguendo no ar e me socando contra o solo com uma força grotesca. Ele me socou contra o chão mais uma vez e me pegou pelo pescoço, enquanto olhava bem nos meus olhos. O psicopata havia conhecido um desafio e queria olhar bem nos olhos da sua última vítima da noite. Meu pescoço começou a ser esmagado, enquanto eu chutava seu abdômen e dava joelhadas em seu braço, mas ele era duro feito uma pedra. Olhei ao meu redor, procurando algo e vi a pistola do sargento não muito longe. Me estiquei, mas só as pontas dos meus dedos alcançaram a arma. O maldito apertou mais forte e eu senti a circulação na minha cabeça se dificultando. Puxei a arma com os dedos, até conseguir apanhá-la com a mão. Peguei a pistola, mirei no pescoço do assassino e disparei.

 

E ele caiu.

 

Um último grunhido rouco, de quem tenta puxar o ar pelos pulmões com dificuldade, os olhos mirando o vazio e a queda de um corpo inanimado no chão. Respirei. Respirei fundo. Olhei para o teto, enquanto respirava, sem acreditar que estava vivo

 

Na verdade, eu não mirei no pescoço, eu só atirei no primeiro lugar que a minha mão foi. O que importava era que, finalmente, o monstro caiu.

 

E eu estava vivo.