Renascido

por Aramil em

Curinga. [Do quimbundo 'kuringa', 'matar']. S. m. 1. Bras. Carta de baralho que, em certos jogos, muda de valor segundo a combinação que o jogador tem na mão. 2. Fig. Pessoa esperta, sem escrúpulos, que tira partido de qualquer situação.

Eu deveria estar morto, jogado em alguma sepultura. Eu não deveria estar aqui nessa pizzaria, comendo uma massa fria que mal posso sentir o gosto. Preciso sair daqui, preciso encontrar meus amigos.

Será que estou reclamando demais? Afinal, quantos de nós realmente temos uma segunda chance? Quantos podem dizer que estiveram mortos e voltaram? Quantas pessoas eu conheço que foram metralhadas no centro da cidade durante um assalto a banco e agora estão aqui, nessa lanchonete terrível, comendo uma pizza ridiculamente velha? Nenhuma.

Argh, eu não deveria ter me lembrado disso. Eu quase posso sentir o gosto do meu próprio sangue invadindo meus pulmões, me sufocando. Aquela bota velha pressionando o meu rosto contra o piso frio do banco, enquanto um grupo de assaltantes ria e atirava a esma em todo mundo. Crianças, velhinhas, mães e pais de família, todos morreram naquele lugar. Não houve piedade, não houve distinção.

Será que é assim que todos se sentem? Será que isso é a morte? Quer dizer... é assim que alguém se sente quando vê um OVNI, né? Aquela sensação de que nada mais faz sentido, nada mais é real. Quer dizer, como você deita de noite pra dormir sabendo que um OVNI esteve no seu jardim na noite passada? Não, você não consegue. E como eu posso viver a minha vida normalmente sabendo que era para eu estar morto? Parece que alguém lá em cima esqueceu-se de ler o obituário de ontem.

Pra piorar, minha cabeça está uma zona. Tirando as cenas do assalto, não consigo me lembrar de mais nada. Só sei que acordei em um quarto de hotel vagabundo, cheirando a vômito, com a roupa toda ensanguentada. O atendente disse que cheguei ontem, bêbado, e paguei por uma semana sem que ninguém me incomodasse. Deus, será que estou ficando maluco? Eu acho, não, eu SEI que morri. Posso lembrar muito bem da sensação de vazio, do corredor escuro, das vozes e luzes a minha volta, enquanto minha alma se precipitava no abismo.

Malditos assaltantes! Será que nenhum deles, em momento nenhum, pensou em nós? Eu ainda me lembro do rosto da maioria deles. O líder foi o primeiro a atirar e eu fui o primeiro a cair. Talvez isso tenha criado alguma espécie de ligação entre nós, pois consigo me lembrar dele com mais clareza. Tinha o rosto de um menino ainda. Se me perguntassem, diria que não tem mais que vinte anos. Deus, era quase uma criança! Eu poderia ter um filho dessa mesma idade. Mas não, eu estou morto agora. Mas se estou morto, como estou aqui, sentado, olhando pra minha pizza esfriar e tentando entender essa confusão na minha cabeça?

Pra completar, tem uma criança aqui que não para de chorar. Como eu odeio crianças! Quase posso sentir a dor que aquela voz aguda causa nos meus ouvidos, enquanto a mãe fala algumas palavras de conforto inúteis, na vã esperança de fazer o moleque parar de berrar. E o pai é um idiota, aposto. Fica lá, olhando para fora, pensando na vida. Se fosse meu filho já tinha levado uma porrada pra aprender a ser homem e dar atenção ao moleque.

Começo a analisar o casal. Ela, preocupada, tentando acalmar a criança. Ele, quieto, olhando para fora com cara de mau, como se não sentisse a menor compaixão pelo próprio filho chorando. Aposto que é esse tipo de pessoa que se torna um monstro, como aqueles caras que invadiram o banco ontem. Maldito, espero que apodreça no inferno.

E a polícia não faz absolutamente nada! Lembro dos carros de polícia parados do lado de fora, enquanto eu agonizava com a bota do cara pressionando a minha garganta contra o chão. Se fosse eu no lugar deles, já teria metido uma bala na cabeça daqueles idiotas na primeira chance... Mas não, ficaram lá, olhando, com medo de disparar e acertar algum inocente. Bom, eles vão ter sorte se ainda restou algum inocente vivo agora.

Mas pensando bem, qual é a diferença? A polícia não fez nada, e eu duvido que algum dos bandidos foi morto no final da história. Aqui, quem se fode é a gente. Eu lembro do rosto daquela senhora que estava na minha frente, quando eu fui atingido. Ela abaixou e começou a rezar, implorando a Deus para que tivesse piedade da alma dos assaltantes, pois eram apenas garotos que não sabiam o que faziam. Bom, eu espero que ela esteja certa.

É bom mesmo que Deus tenha piedade deles, pois eu estou de volta. De volta, para mostrar a eles onde realmente fica o inferno.