Capítulo 00 – Prelúdio – Encontro no Vazio

por Hentges em

Prelúdio da crônica Os Espaços Vazios, publicada no blog The Truth's For Sale.

Em um cômodo onde antes havia nada, agora estão três homens. Não há móveis, portas ou janelas. Encaram-se em silêncio sob a luz amarelada.

Kroll – Alguém sabe onde estamos?
Kallinger – Não sei onde estou e nem quem são vocês.
Cutler – O mesmo para mim… Me chamo Lucas. Lucas Cutler .
Kallinger – Kallinger. Charles.
Kroll – John Kroll.
Cutler - A última coisa que lembro é de estar no meu escritório.
Kroll – Eu estava indo até o carro. Estava saindo do trabalho.
Kallinger – Eu estava no banheiro de um bar. Tinha ido encontrar alguns amigos.

Kallinger levanta-se e chuta a parede algumas vezes. Kroll e Cutler arrancam pedaços do papel de parede floral que a recobre. Buscam portas ou janelas. Nada encontram. Os três ficam apreensivos. Verificando os bolsos, percebem que estão com todos os objetos que lembravam carregar.

Kroll verifica o celular. 19h01min. Apesar de estar funcionando, o aparelho não tem sinal.

Uma verificação minuciosa é iniciada. Kallinger rasga um pedaço de papel de parede. Todo o cômodo é de madeira. Tem cerca de seis por quatro metros. O pé direito tem três metros. A forma como as tábuas foram trabalhadas cria um aspecto rústico e antiquado. Os pregos, de cabeça larga e aparência artesanal, reforçam a impressão.

Kroll testa o chão, buscando ecos, mas logo desiste. Cutlerpensa em verificar a lâmpada. Kallinger duvida da eficiência de ambas idéias. Está irritado. Mesmo assim, serve de apoio para que Cutlerconfira a fiação. Não há alçapão ou câmera. Apenas um soquete simples. Kroll percebe que não há interruptor. Enquanto carrega Cutler, Kallinger nota algo de errado com a parede.

Kallinger – Eu já tinha arrancado o papel ali.

Ele se aproxima e rasga a papel, que cede como da primeira vez. Já não tem certeza se foi naquele ponto que puxou o revestimento. Cutler queima um pedaço do papel de parede com ajuda de um isqueiro. Fumaça se espalha pelo cômodo.

Kroll – Isso, gasta todo o ar que nós temos nessa sala.
Cutler - Talvez seja desconfortável, mas isso não vai acabar com nosso ar. E a sala não deve ser hermeticamente fechada.

Após alguns minutos, todos percebem uma estranha familiaridade com o ambiente.

Para Cutler, parece com o cômodo de alguma casa antiga que ele pode ter visitado em busca de peças para seu antiquário. Kroll relaciona a impressão com o local onde, antigamente, eram guardadas centrais telefônicas. Kallinger recorda da garagem que lhe serviu de laboratório no período de escola.

Nesse momento, todos percebem que o papel de parede está quase inteiramente reposto. Não há sinal de cinzas ou de fumaça no ar.

Kallinger grita com raiva.

Kallinger – Qual de vocês está metido nessa porra com o maluco que me colocou aqui?
Kroll – Pegadinha, só pode.
Kallinger – Como é que vocês vieram parar aqui? Eu estava mijando e acordei nessa porra.
Cutler - Que horas foi isso?
Kallinger – Sei lá… Eu estava começando a ficar bêbado.
Kroll – Eram dezenove horas. Eu estava saindo do trabalho.

Kroll percebe que o relógio do celular está congelado. O aparelho é desligado e religado, sem que nada se altere.

Kallinger – Em que cidade vocês moram?
Kroll – Filadélfia.
Cutler - Filadélfia também.
Kallinger – Quer dizer que vocês também são daqui. Ou de lá. Sei lá…
Cutler - Eu tenho um antiquário no centro da cidade.
Kroll – Eu trabalho com telefonia.
Kallinger – Eu sou biólogo. Pesquisador.
Cutler - A última vez que eu vi algo assim foi no Jogos Mortais.
Kallinger – Ainda bem que não tem um amarrado com uma corrente e outro com uma serra na mão…
Kroll – Os pregos foram pregados de dentro para fora. Como é que saíram daqui?
Cutler - Vai ver quem pregou ainda está aqui.
Kallinger – Cadê o martelo, então?

Cutlerdá pequenos pulos para tentar ouvir ecos no chão. Kallinger e Kroll escutam sussurros. São vozes de crianças. Cochichos em tom conciliador. A menina parece tentar tranqüilizar um menino mais jovem e assustado. Kallinger se assusta e encosta-se em um canto do cômodo, xingando. Kroll tenta buscar a origem das vozes. Cutler se aproxima do canto de onde elas parecem vir. Todos compreendem apenas uma frase:

- Não se preocupe, Mason. Ninguém pode nos achar aqui.

Cutler - Mason?
Kallinger – Deve ser a criança.
Cutler - Eu achei vocês!

Silêncio completo.

Kroll – Tá, chega de palhaçada. Hora de abrir a porta.

Kroll chuta a parede de madeira, que não cede, como se revestida de concreto ou outro material igualmente resistente.

Kroll – Esse vai ser o processo mais caro da história.
Kallinger – Sim, se a gente sair daqui vivos. Eu já estou vendo o fim disso…

Nenhum dos três sente o abafamento que seria natural em um ambiente fechado. A temperatura é amena e estável.

Ainda pregado em um dos cantos do cômodo, Kallinger percebe que uma folha de caderno escolar, de caligrafia, cai lentamente, solta de lugar nenhum.

Kallinger – Que desgraça de lugar é esse?

O desenho, feito com lápis ou carvão, é assinado apenas com uma letra: “K”.

Cutler - Isso caiu do teto?
Kallinger – Sei lá, apareceu aqui, “boiando” no ar.

Os três juntam-se ao redor do desenho. Todos percebem que a casa desenhada não é completamente estranha.

Kallinger lembra de um pesadelo recorrente da infância, com uma igreja. Cutler acredita ser um local em que já esteve, ainda que não seja capaz de dizer onde. A perspectiva e o traço a mão livre dificultam o reconhecimento. Para Kroll, lembra a imagem que viu durante uma pesquisa por imóveis.

Kallinger – Nada disso faz sentido.

Kroll fuma.

Cutler busca algum tipo de marca no desenho ou no papel. Parece-lhe que a folha pertencia a um caderno recente, diferente de tudo o mais no cômodo.

Kallinger bate a cabeça na parede com violência. Ele quer alguma marca para saber se isso é sonho ou não. Na terceira pancada, sangue começa a escorrer pelo couro cabeludo.

Kroll tenta acalmá-lo, mas é Cutler que o segura e domina depois de muita resistência. Kallinger está histérico.

Cutler - Fica frio, seu idiota.

Kroll ouve o ruído de objetos caindo no chão atrás dele. Ao se chocarem, produzem o tilintar típico de metal. São lâminas de barbear. Quatro delas.

Kroll – Isso está cada vez mais perigoso.

Ele recolhe as lâminas e as coloca no bolso da camisa. A essa altura, Kallinger parou de se debater. Cutler percebe que há sangue na roupa de Kroll. É possível que tenha respingado da cabeça de Kallinger, bastante ferida.

Cutler - Como é que você conseguiu fazer isso?

Kroll percebe que as lâminas estão cobertas de sangue. Elas as atira no chão. Abre a camisa buscando ferimento, mas não encontrando nada. Quando tocam o assoalho, o sangue já está seco.

Kallinger – Vai, cara. Faz piada agora! Isso parece uma pegadinha, otário?
Cutler - Olha a tua cabeça, idiota. Estava batendo a cabeça na parede e quer falar de juízo? Parece que sempre que nos agitamos acontece alguma coisa, aparece alguma coisa.

Kallinger se abaixa para pegar uma das lâminas.

Nenhum deles está mais no quarto.

Kroll ouve o som da trava eletrônica do carro.

Cutler percebe-se em sua sala, rodeado por livros.

Kallinger está de volta ao banheiro, em frente ao espelho. O reflexo mostra sangue escorrendo pela testa.