Capítulo 02 – Contemplação Obscura
Cena 01 – O Passo Seguinte
Diante da galeria administrada por Thomas Hoyt, a previsão de Kroll, soturna, motiva uma brincadeira de Cutler.
Cutler - O negócio é começar a andar com uma mochila de mantimentos.
O absurdo da situação provoca um riso nervoso.
Cutler - De alguma forma, nós temos que encontrar essa mulher, Krista Crown. O contato mais provável é o tal Hoyt.
Kroll – Nós temos o nome dela.
Kallinger – Não é tão simples. Provavelmente é um pseudônimo. Um nome artístico.
Cutler - É verdade. Artistas costumam não estar na lista. São reclusos. Pode até ser um homem.
Kallinger – Bom, se isso acontecer de novo eu vou me internar em uma clínica psiquiátrica.
Kroll – Seria melhor esperar até nós resolvermos alguma coisa.
Kallinger – Resolver como? Eu nunca li nada sequer parecido com isso.
Cutler - Eu já, mas ficção. E eu me preocuparia se a ficção começasse a saltar dos livros sobre nós.
Cutler sugere que os outros dois peçam dispensa do trabalho. Todo o tempo disponível será essencial diante da contagem regressiva na qual se encontram. Kroll acredita ser capaz de encontrar Krista através de alguns favores. Ligar para Hoyt é uma opção.
Kallinger – Por que nós não compramos aquele quadro? E damos fogo nele!
Kroll – E se nós aparecermos da próxima vez em um quarto em chamas?
Cutler - Fiquem calmos. Nenhum de nós sabe o que está havendo, mas precisamos ficar calmos para chegar a uma solução.
Kallinger – Quer que eu acredite nisso? Que existe solução?
Cutler - Não sei…
Quinta-feira, 29 de Outubro
Cena 02 – Cotidiano
O diretor do departamento na Universidade da Pensilvânia confirma a dispensa solicitada por Charles Kallinger no dia anterior. Ela começará a valer na próxima segunda-feira, quando consultará um neurologista. Clifford Barton parece sinceramente preocupado com o estado de Kallinger, mas é a saúde da instituição que vai em seus pensamentos. Um professor alegando problemas psicológicos não tem lugar em sala de aula.
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John Kroll está confuso e com raiva. Quando isso acontece, ele normalmente derruba a rede de telefonia da empresa em que trabalha como residente, tranca a porta de sua sala e tira o telefone do gancho. Espalhar o descontentamento o faz menos infeliz. Hoje, porém, ele sai para pescar um peixe maior com sua rede.
Kroll – Nada aqui funciona porque vocês não querem que eu trabalhe. Está vendo aquele computador? Eu preciso daquele. Não um como aquele. Eu preciso exatamente daquele! O dono dele logo consegue uma reposição. Eu não posso esperar, ele sim. Dane-se que ele é diretor de não me importa o quê.
Satisfeito, em menos de uma hora Kroll tem a nova máquina instalada sobre sua mesa. Seu propósito nada terá a ver com trabalho.
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Jebediah Stone bate à porta do antiquário de Cutler no final da manhã. Fora convidado na noite anterior para examinar algumas obras. Livros sobre Salem. Com ele, o proprietário esperava atrair o idoso e, dissimuladamente, mostrar-lhe algumas reproduções de obras de Krista Crown. O estratagema, contudo, resulta em coisa alguma. Desinteressado, Stone mal pousa os olhos sobre os traços mórbidos. De útil, apenas a revelação da avidez do homem por livros. Volumes os mais diversos ocupariam todos os cômodos de sua velha casa, fazendo dele um cliente especialmente conveniente mesmo para quem não tem neles sua principal fonte de renda.
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Naquela tarde Kallinger dá uma aula onde, por vezes, sente seu pensamento divagar para longe da biologia, da ciência e de tudo o que pode ser verificado, possível ou remotamente provável. Mais tarde, em um dos laboratórios da Universidade da Pensilvânia, ele confirma que o bolsista a quem pediu um favor cumpriu-o diligentemente. Agora, basta aguardar que seus contatos na polícia possam apontar o responsável pelos resíduos deixados na boneca abandonada na velha casa, em Filadélfia Oeste.
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Kroll recebe ligação de Thomas Hoyt em resposta ao recado deixado na secretária eletrônica. Um encontro na galeria é marcado para aquela noite, quando outros amigos também dispostos a investir em novos artistas o acompanharão. Hoyt fica desconfortável diante do interesse em conhecer Krista, mas acena com a possibilidade. Ao avisar os demais a respeito do encontro, ele recomenda que vistam-se da melhor forma possível, sugestão imediatamente ignorada.
Cena 03 – Câmara Escura
Krista Crown, dizem alguns jornais de arte de circulação restrita, é uma jovem e promissora artista da Filadélfia. Seus quadros têm despertado atenção e, graças à condução de Thomas Hoyt, atingido valores cada vez mais elevados. Seu talento porém, é escamoteado pela fixação nos temas mórbidos. Nem todos os colecionadores e organizadores de exposições têm estômago por tal obsessão monotemática.
É nas páginas policias, e não nos cadernos de arte, porém, que Krista Crown tem recebido mais publicidade recentemente. Seu sobrenome, aliás, é King. Ele foi alterado para Crown há mais de dez anos, e é com ele que assina suas obras. Krista foi, seis meses atrás, considerada a principal suspeita do assassinato do irmão, Mason King.
A suspeita foi descartada pela polícia assim que constatou-se que outras três pessoas, todas próximas de Mason King, também foram assassinadas. Os corpos estavam em diferentes endereços da cidade, mas a hora e causas idênticas das mortes – perda de sangue causada por diversos cortes no pescoço – deixaram a polícia sem pistas.
A ausência de uma acusação permitiu que Krista Crown herdasse os bens do irmão, entre eles uma ampla mas dilapidada residência na Pentridge Street, 5282, em Filadélfia Oeste.
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As descobertas deixam Kroll trêmulo. O nervosismo não diminui depois que ele as divide com Cutler e Kallinger. Este último complementa com um dado resgatado da memória.
Kallinger – Mason era a criança cujo nome foi sussurrado naquele cômodo vazio.
Cena 04 – A Galeria
Todos os três, em diferentes intensidades, hesitam diante da galeria. Tiveram uma experiência ali que esperam não repetir, ainda que, como se verá, o controle sobre seus destinos lhes foi tomado.
Lá dentro, a conversa com Thomas Hoyt começa em tom amistoso. O marchand espera vender pelos menos um dos quadros de Krista Crown naquela noite. Porém, a insistência dos três interessados em conhecer a artista o deixa desconfortável. Kallinger observa quase todo o andamento do diálogo em silêncio. Ele, que tem condições de pagar por aquela estranha tela cujo formato lembra uma porta, propôs que a obra fosse adquirida e queimada em seguida. Não são suas, porém, as propostas que encerram a discussão.
Kroll – Por que você não nos fala um pouco a respeito de Krista King, senhor Hoyt?
A menção ao verdadeiro nome da artista, ou melhor, do seu nome antes mesmo de tornar-se uma artista, perturba Hoyt.
Hoyt – Não sei quem vocês são ou o que querem, mas o motivo alegado para estarem aqui certamente é falso. Não querem um quadro, querem informações sobre a autora. E quanto a isso eu não estou disposto a ajudá-los.
Incapaz de dissuadir o marchand, Cutler desiste da conversa. Retira-se em companhia de Kallinger, o mais aliviado por deixar a galeria. Kroll, antes de ser levado à saída pelo segurança, no entanto, ainda tem algo a dizer.
Hoyt – Conduza esse homem para fora. Ele e seus amigos nada têm a fazer aqui.
Kroll – Eu gostaria que a senhorita Krista recebesse um recado. Diga a ela que nós todos estamos lá. Todos os dias. Naquele quarto, daquele quadro.
Ditas pausadamente, as frases surtem o efeito de marteladas. Pela primeira vez naquela noite a empáfia que Thomas Hoyt sustenta no rosto dá lugar a uma emoção verdadeira. Receio, talvez.
Cena 05 – Discórdia
Quando Kroll deixa o prédio, Cutler já voltou de sua breve inspeção aos fundos da galeria. Está decidido fazer todas as perguntas de que Hoyt gentilmente se esquivou. Seus companheiros não sabem, mas o que leva na mochila deixada no banco do carro é um persuasivo machado.
Cutler - Nós temos que seguir esse cara.
Kroll – Eu já sei onde ele mora.
Kallinger – Foda-se! Eu não vou seguir ninguém.
Cutler - Não vai acontecer nada contigo. Calma!
Kallinger – Como é que você pode me garantir isso?
Cutler - Não posso. Esquece. Fica aqui.
Kroll – Eu acho que todo mundo aqui está no mesmo barco. Se alguém se ferrar, se ferra todo mundo junto.
Kallinger – Não mesmo! Se esse cara ligar para a polícia e vocês estiverem em um carro na frente da casa dele, vocês se ferram, não eu.
Kroll – Eu sei onde mora o Hoyt, e logo vou saber onde mora a tal Krista…
Kallinger – Como assim?
Kroll – Contatos… Todo mundo tem os seus.
Kallinger – Então, por que se colocar nessa situação desnecessária? Para que fazer uma tocaia na frente da casa do Hoyt se logo vamos ter o endereço da Krista? Não é ela que importa?
Cutler - Vamos apenas tentar descobrir já se ele não vai à casa de Krista ou coisa assim. Vamos seguir ele e amanhã a gente resolve o caso.
Kallinger – Eu não estou disposto a arriscar minha carreira por causa disso. Ainda não. Desculpem-me.
Cutler - Covarde!
Kallinger – É para preservar a minha carreira.
Cutler - Vamos largar esse aí em casa. Agora!
Kallinger – Não precisam se preocupar.
Kallinger parte em um táxi. Kroll e Cutler aproveitam-se das ruas movimentas naquela noite para seguir Hoyt até sua casa.
Cena 06 – Desavença
Diante de um condomínio luxuoso e exclusivo, Kroll e Cutler observam a chegada de Thomas Hoyt e sua entrada pela garagem. Câmeras e um porteiro são toda a segurança aparente.
Cutler - Nós vamos ter que pegar ele.
Kroll – Quanto a isso, concordo com o Kallinger. Eu não sou dono de uma biblioteca, ou livraria, ou que quer que seja.
Cutler - Já pensou que em uma semana você pode não ter uma carreira ou coisa alguma? Daqui a algumas horas vai acontecer novamente tudo aquilo que nós já passamos. E aí?
Kroll – Acredito que até amanhã as informações estarão na minha mesa.
Cutler - OK. Se essas informações não estiverem disponíveis, posso assumir o controle?
Kroll – Cada um é responsável pelo que faz.
Cutler - Não foi essa a pergunta. Posso?
Kroll – …
Cutler - Nós vamos ter que tirar informação desse Hoyt de algum jeito, você sabe.
Kroll – Existem vários modos.
Cutler esmurra o painel do carro.
Cutler - Nós vamos ter que fazer isso rápido. Do contrário…
Subitamente, Kroll, Cutler e Kallinger estão novamente juntos no cômodo vazio.
Cutler - E agora?
Kroll – Eu mesmo vou pegar esse Hoyt e arrancar o couro dele.
Cutler - E agora? O que você me diz? Nós dois mais uma vez aqui com a merda desse covarde.
Depois do estupor inicial, Kroll emudece. Cutler, que agarrava Kroll pelo colarinho, mal percebe o soco de Kallinger. Sangue enche sua boca, deixando os dentes alaranjados.
Cutler - Pelo menos você tem bolas para fazer alguma coisa.
Kallinger – O teu cu, filho da puta! Eu não sou a merda do dono da porra de uma livraria do caralho.
Cutler - Foda-se!
Kallinger – Eu estudei vinte anos para chegar onde estou. Não sou um bosta de um sozinho no mundo.
Cutler - Estudou vinte anos para cair na mesma merda que eu.
Kallinger – Não interessa. Não vai ser um bosta que vai me dizer o que eu devo e o que eu não devo fazer.
Cutler - E daqui a uma semana você vai estar morto.
Kallinger – Você não sabe. Você não pode ter certeza!
Kroll – Que tal se as duas bonecas calassem a boca?
Cutler - Eu não tenho certeza, mas é a tendência.
Kroll – Onde é que você estava?
Kallinger – O quê?
Kroll – Onde é que você estava antes de aparecer aqui?
Kallinger – Cumprimentando o meu porteiro do caralho…
Cutler - Fica calmo!
Kallinger – Todo mundo aqui deveria…
Kroll – Que nada. Vamos sair no soco… Quero só ver o que vai ser quando aparecerem aquelas lâminas aqui.
Cutler percebe agora que a mochila que trazia consigo não veio junto. Kallinger se recosta em um canto. A mão lateja. Sente culpa pelo que fez, mas não admitirá em voz alta. Cutler teve o que mereceu.
Kroll – Daqui a duas horas, já nem sei quanto tempo vou ficar nessa porra, eu vou sair do carro, vou subir naquele apartamento e vou dar naquele Hoyt a maior surra que ele já recebeu. Então, eu vou colocar ele no porta-malas do meu carro e levá-lo até a casa da vagabunda dessa Krista…
Kallinger ouve e se pergunta até onde eles terão de ir, ele terá de ir, para chegar ao fim daquilo.