Capítulo 12 – Irmãos nas Trevas

por Hentges em

Décimo-segundo capítulo da crônica Os Espaços Vazios, publicada no blog The Truth's For Sale.

- Segunda-feira, 01/02/2010

Contas! Acumuladas ao longo de uma semana na caixa de correspondência, parecem ainda piores quando espalhadas sobre a mesa da sala. Como cuidar delas sem um emprego? A preocupação torna-se secundária após John Kroll deparar-se com a carta enviada pelo Sr. Claude. A máscara está pronta. O carro fica na garagem hoje. Prefere tomar um trolley. Não tem idéia de como pagará os US$ 8 mil pela peça.

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Cutler – E você vai até lá sozinho?
Kroll – Sim. O que tem isso? É só um velho cego e uma criança.
Cutler – Um velho cego que pode estar metido naquelas perversões no As Extremidades e uma criança que achou minha loja sem ter nenhuma informação a respeito.
Kroll – É verdade… Mas acho que não vai acontecer nada. Vamos ver.
Cutler - Que barulho é esse?
Kroll – É do trânsito. Estou indo até a loja em um trolley.
Cutler - Porra! Desempregado há menos de uma semana e já vivendo como um pobre.
Kroll – Vai se foder!
Cutler - Está ouvindo esse barulho?
Kroll – Sim, o que é?
Cutler - O V8 do meu carro novo.
Kroll – Vai se foder!

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Cutler fecha o antiquário e se dirige até a casa que pertenceu a Jebediah Stone. Pretende encontrar o restante da correspondência trocada por Luc Chanfort e William Haverhill. O incomoda o paradoxo entre o aviso de Jebediah – “nunca tire fontes de informação da casa” – e o fato de ele ter deixado uma das cartas em sua posse.

Ao estacionar percebe uma mulher, pouco mais de trinta anos, aguardando na varanda. Algo distraída, ela se apruma assim que Cutler atravessa o portão. Vem até ele.

- Olá! Eu sou Agynes Stone. Procuro por meu pai, Jebediah.

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As luzes estão desligadas e a porta trancada. Demora cerca de cinco minutos para que a figura esguia de Tom atravesse a escuridão. O garoto está abatido. Parece ter chorado não faz muito. Segundo ele, a Por Trás da Máscara permanece fechada há alguns dias. “Desde que o Sr. Claude passou a sentir-se mal”.

Levado até o segundo andar, Kroll depara-se com um ambiente aparentemente decorado por Tom. Certamente o Sr. Claude teria uma coisa ou duas a dizer a respeito da generosa combinação de cores da mobília e paredes. Se pudesse ver, é claro. Não se parece, de qualquer modo, com o ambiente em que viveria alguém que cobra milhares de dólares por cada trabalho. Antes de ser chamado ao quarto, Kroll ainda tem a oportunidade de ver alguns desenhos assinados por Tom. São traços simples retratando paisagens impossíveis. Talvez uma última manifestação infantil antes da entrada na adolescência.

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Os olhos de Agynes Stone lembram os do pai, Jebediah. Jebediah, cujo corpo foi destroçado pela explosão no crematório de Clinton Weiss, uma semana antes.

Cutler - Jebediah faleceu.

Agynes devia o olhar. Quando volta a encarar Cutler, não é surpresa que ele transmite, mas um misto de consternação e arrependimento.

Agynes – Ele me ligou diversas vezes ao longo das últimas semanas. Só ouvi os recados quando voltei de viagem.
Cutler - Jebediah nunca falou de você.
Agynes – Imagino que não. Não tínhamos relações há quase dez anos.
Cutler - A doença foi fulminante. Lamento que não tenha sabido antes.
Agynes – Assim que ouvi as mensagens, as coisas que falou, imaginei que isso poderia acontecer. Queria ter chegado antes. Você é Lucas Cutler, não? Ele falou de você e do que pretendia fazer com a casa.
Cutler - Sim, sou eu. Há diversos objetos pessoais aqui. Gostaria de entrar e dar uma olhada?
Agynes – Não. Eu vou ficar na cidade alguns dias. Se possível, você poderia separá-los? Eu volto para pegar tudo mais tarde.
Cutler - Sem problemas.

Agynes Stone entrega um cartão que a identifica como escritora.

Agynes – Eu gostaria de visitá-lo. Onde ele foi enterrado?
Cutler - Ele foi cremado.
Agynes – E aposto que misturado às cinzas de algum livro…
Cutler - Não, nada disso.

Lucas Cutler cita um entre os inúmeros sítios históricos que existem na Filadélfia. Um desses locais que muitas pessoas consideram como destino natural e poético para um punhado de restos mortais.

Despedem-se.

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À meia-luz do abajur a expressão do Sr. Claude é sombria. Reclinado sobre travesseiros, responde com serenidade evasiva às perguntas de Kroll a respeito de sua saúde. Ouve com paciência quando o convidado menciona não ter condições para pagar o valor da máscara. O que deveria desagradá-lo, no entanto, produz um contentamento palpável.

Claude – A máscara está sobre aquela cômoda. Pegue-a. É sua. Acredito que tenha sido um excelente último trabalho. Antes de voltar a sentar-se ao meu lado, apenas veja se Tom não está escutando atrás da porta.

Kroll segue as instruções do Sr. Claude. Ocupando um sofá da sala, tomado pela ansiedade que o leva a bater sem parar os pés contra o assoalho, o garoto vira-se assim que a porta é aberta. Olha curioso, mas nada pergunta.

Kroll – Último trabalho, o senhor disse?
Claude – Sim, espero que goste. Não tinha isso em mente quando o comecei, mas não havia dúvidas ao final.
Kroll – Eu não posso pagar por ele.
Claude – Sr. Kroll, na minha condição atual, confiança é um bem mais valioso do que dinheiro. E, por algum motivo, desde nossa primeira conversa, confio no senhor.
Kroll – Eu pretendo retribuir isso de algum modo.
Claude – Apenas gostaria que se encarregasse de Tom por algumas horas. É óbvio que tenho pouco tempo. Preciso prepará-lo. Ele ficará sob os cuidados de uma pessoa de confiança. Por motivos que não vem ao caso, ela não pode vir até aqui. Por isso, preciso que o senhor leve-o até ela.
Kroll – Eu posso fazer isso.
Claude – Ótimo. Permite que eu dê um caráter mais solene a isso tudo? Dê-me sua mão e não se constranja. É um velho hábito. Coisa de família.

O Sr. Claude toma as mãos de John Kroll junto as suas. A debilidade some de sua voz quando as palavras são ditas.

Claude – Dívidas são perdoadas para que novas dívidas sejam contraídas. Esqueço o valor que me deve para que tome conta da coisa mais preciosa da minha vida. Levará ela pela mão e a entregará a quem cabe acudi-la daqui por diante. Juramos os dois, cada um em seu próprio nome, que nossos desígnios serão cumpridos. Pelo prazo de um ciclo lunar não saberemos o que é a paz de espírito se a confiança que mutuamente aqui depositamos for traída.

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Kroll – E então o velho me rogou essa praga…

Cutler mal conseguiu falar a respeito de Agynes Stone, tamanha a aflição de Kroll quando se encontraram. Narrou em detalhes tudo o que se deu e, por fim, mencionou a estranha conversa com Tom, quando já de saída, na qual o garoto falou com indiferença a respeito de mentiras, desde que elas não resultem na quebra de promessas.

Ânimos arrefecidos, discutem se devem tomar algumas providência em relação à filha de Jebediah Stone e como a demissão de Kroll pode ser a oportunidade para que o acervo do antiquário de Cutler passe a ser oferecido on-line.

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- Os senhores esqueceram um traje de gala no clube. Foi difícil tirar as manchas, mas a lavanderia faz entregas 24h. Entre em contato.
- Eu posso te ver daqui.
- Boa piada. Você foi esperto. Pessoas assim sobrevivem mais.
- E agora também sei o seu endereço!

As mensagens trocadas entre Kroll e seu interlocutor misterioso, quando analisadas em retrospecto, parecem levar o humor e a ameaça velada que são próprios de alguém buscando disfarçar a própria insegurança.

Por conta disso, decidem aceitar o convite que a última delas traz.

- Que tal vir até aqui esta noite, então?

Alguns preparativos são realizados e a cautela soa mais sedutora depois dos eventos na fazenda de Clinton Weiss. É perto das 22h quando percorrem a rua pouco movimentada na direção do velho armazém, não muito longe do Rio Schuylkill.