MEDO, TERROR, SUSPENSE E HORROR:O QUE SÃO E COMO UTILIZÁ-LOS

por Fausto_Veloso em

Indiscutivelmente, quando se joga roleplaying game (RPG) usando o material d’O Mundo das Trevas (MdT), um princípio fundamental é contar histórias interpretativas de terror, suspense, horror, paranoia, pânico, e, por que não, alívio, segurança e coragem. Diferentemente de outros RPG’s, como Dugeons and Dragons, por exemplo, em que as histórias interpretativo-narrativas são mais focadas em aventuras medievais fantásticas, em MdT, o medo é um tema central, é uma característica quase inseparável, que o define. Mas o que é o medo? E, o que é mais importante, como manipulá-lo? Abaixo seguem algumas considerações a respeito das respostas dessas duas perguntas. Meu objetivo neste texto é, baseado nas minhas experiências, no meu conhecimento e considerando minhas limitações, fornecer uma explicação sobre o medo e mostrar algumas técnicas sobre como utilizá-lo nas histórias de MdT.

Dos anos 1990 para cá, cresceram exponencialmente as pesquisas de um grupo de disciplinas hoje conhecidas como neurociências, que envolvem (mas não se limitam à neuroanatomia, neurofisiologia, neurologia, neurobiologia, bioquímica nervosa, psicofarmacologia, psicologia, e informática). Os pesquisadores dessas disciplinas muito descobriram sobre o funcionamento do nosso cérebro e, assim, tentaram explicar não apenas grandes aspectos do comportamento humano, como encontraram bastantes informações sobre nossas emoções, dentre as quais nosso tema aqui, o medo.

Embora hoje em dia seja muito comum se ouvir de um neurocientista a explicação de que o medo envolve este ou aquele neurotransmissor (principalmente noradrenalina, serotonina e acetilcolina) e esta ou aquela região encefálica (principalmente hipófise e amígdala), precisamos continuar críticos a respeito dessas “explicações” neurocientíficas porque elas pouco explicam. Pois, se o medo é causado pela ativação da amígdala, o que ativa amígdala? Ora, isso a neurociência não explica. Outro aspecto que torna a explicação neurocientífica duvidosa é: tudo bem que o medo está relacionado à ativação da amígdala, mas como faço para ativá-la? Venhamos e convenhamos, se você não possuir uma droga que ative essa região do cérebro e se não puder aplicá-la na pessoa, de nada adiantará saber que o medo (ou qualquer outra coisa) está relacionado a esta ou aquela estrutura nervosa. O conhecimento neurocientífico, embora interessantíssimo, é pouco prático para quem não é um neurocientista.

Pronto, depois de toda essa crítica (me desculpem os leitores e leitoras, ela foi necessária), se você continuou lendo até aqui então logo vai encontrar a parte mais interessante; por favor continue.

O grande problema das explicações que responsabilizam uma estrutura cerebral por algum comportamento nosso é que isso nos desvia de procurar as causas desse comportamento. O que ativa o hipotálamo e que nos faz sentir medo? Geralmente um ruído alto e inesperado faz isso, portanto nos servirá de exemplo.  Então, ao invés de dizer que nosso medo foi causado pela ativação do hipotálamo, é mais útil dizer que o medo foi causado pelo ruído alto.

O que vou apresentar a vocês é baseado no que aprendi com uma ciência chamada Análise do Comportamento.

Como deu para perceber no exemplo acima, nosso medo é causado por acontecimentos, na maioria das vezes ao nosso redor, sejam eles feitos por pessoas ou por outras coisas no mundo natural mesmo. Algumas vezes o medo é causado por nós mesmos (ao lembrarmos de coisas ruins, ou ao imaginarmos coisas ruins nos acontecendo, por exemplo). Mas como causar o medo? Como amedrontar alguém? Como introduzir elementos que amedrontem os participantes de um jogo narrativo-interpretativo?

Ainda antes de tudo isso: o que é o medo?

Podemos dizer que o medo é uma sensação relatada pelas pessoas, geralmente acompanhada por outras sensações como a de desconforto, a de perigo, e a sensação de que seria melhor sair dali ou evitar aquilo. O medo também é caracterizado por expressões faciais de susto e/ou tristeza, desgosto, nojo. Por fim, o medo também pode ser caracterizado como a reação das pessoas a acontecimentos que geralmente lhe são ruins, ameaçadores, fatais, etc. Apenas abemos que alguém ficou com medo quando a vemos reagir de maneira semelhante a essas descrições ou quando a própria pessoa nos conta ter agido assim.

Dessa forma, causar medo, amedrontar, envolve basicamente apresentar eventos que façam as pessoas reagirem assim. Chamamos esses eventos de estímulos aversivos. Quando apresentados a alguém, essa pessoa reage muito semelhante à descrição do medo apresentada acima: ela faz cara de susto, seu corpo se encolhe, ela tenta fugir, etc. Alguns exemplos de possíveis estímulos aversivos: um barulho alto, um chute na canela, uma faca deslizando pela garganta, garras rasgando sua barriga. De fato alguns desses estímulos assustam mais alguns dos que os outros, contudo, o que define se algo é aversivo ou não para alguém é apenas como vemos aquela pessoa reagir àquilo. Se um barulho alto e repentino não assusta seu colega, então um barulho alto e repentino não é um estímulo aversivo para ele.

Como descobrir o que é ou não um estímulo aversivo? Por um lado, conhecer a pessoa ajuda: se você já a tiver visto reagindo com medo a alguma coisa, é bem provável que aquilo seja ume estímulo aversivo para ela. Dá para chamar a galera para assistir um filme de terror/suspense, por exemplo, e reparar o que deixa seus colegas mais assustados ou o que não os assusta. Mas na falta dessa observação direta, saber a história de vida deles também pode ajudar: experimente perguntar, numa conversa, do que a pessoa tem medo (claro, de uma maneira menos direta...). Outro meio de descobrir possíveis estímulos aversivos é se basear na sua própria experiência: aquilo que te assusta tem alguma chance de assustar outras pessoas também (e não estamos falando de um tipo de inseto ou animal, apenas, mas de situações, como o sequestro de um ente querido, ou uma amputação). Por fim, como participamos de uma cultura comum, existe uma gama de coisas que todos nós aprendemos a temer, mais ou menos. A maioria dos religiosos aprende a temer uma ou várias divindades; grande parte das mulheres aprende a temer algum inseto ou animal pequeno; quase todos nós tememos a morte. No entanto, como aviso final, só dá para saber se uma pessoa teme ou não algo se a vemos reagir com medo na presença daquilo.

Agora, adequando isso para a situação. Ninguém aqui vai ser louco de usar estímulos aversivos diretos numa sessão de RPG. Nada de levar facas, ficar gritando ou machucar ninguém. A graça de todo RPG é usar a narrativa e a interpretação para guiar a imaginação, e não se meter com as coisas nuas e cruas. Um jogador narrando uma história apresenta estímulos aversivos aos jogadores quando descreve uma cena, quando a descreve de maneira tão intensa e envolvente que faz com que os outros jogadores se sintam quase como se aquilo fosse real. Por isso a insistência de quem é especialista no assunto de se usar descrições completas, imaginativas, que usem os vários sentidos. Por isso a insistência na regra “não mostre, descreva!”.

Da mesma forma que o medo é um tema essencial a qualquer história no MdT, acho interessante notar que a proposta desse jogo geralmente circula por dois tópicos comuns na literatura e no cinema: suspense e horror. Pessoalmente, considero que o gênero terror (tudo aquilo que causa medo) é dividido em duas categorias principais: suspense e horror.

De maneira rápida, podemos definir suspense como a situação amedrontadora causada por algo que ainda não vemos, que ainda não nos atingiu, mas que está prestes fazê-lo. Agora, vamos usar novamente a Análise do Comportamento para entender o que é o suspense e como causá-lo. Antes de tudo, um fato básico: aprendemos que quando duas coisas acontecem juntas, próximas, quando uma acontecer a outra também acontecerá. Por exemplo: um cachorro que ouve uma sineta antes de receber comida, depois de algum tempo começa a salivar quando já ouve a sineta, antes mesmo de ganhar comida. Outro exemplo: uma criança que vê o pai de cara fechada antes de tomar um tapa, pode até mesmo já sentir o tapa quando vir novamente o pai de cara fechada. Isso importa para nós no sentido que outros estímulos que acontecem pouco antes do estímulo aversivo, depois de algumas vezes, também se tornam aversivos. Chamamos esses estímulos de estímulos aversivos condicionados.

Um ótimo exemplo disso é o filme Terror em Silent Hill. Quem assistiu a esse fantástico filme se lembrará que sempre antes de coisas MUITO ruins acontecerem à protagonista, uma sirene industrial tocava à distância e tudo ia ficando escuro. Chega um ponto em que só de ouvir a sirene já dava medo (eu até hoje arrepio quando ouço uma sirene parecida). A sirene, a princípio, não causava medo algum, não era estímulo aversivo. O estímulo aversivo era o que acontecia depois da sirene (quem assistiu o filme sabe do que estou falando). Depois de se repetir algumas vezes, a sirene e o escuro por si só já davam um medo desgraçado.

E isso é fácil de fazer numa narrativa. O jeito mais simples é introduzir elementos descritivos anteriores ao estímulo aversivo que se repetirão quando aquele estímulo aversivo se repetir. Talvez essa frase tenha ficado um pouco complicada, mas experimente reler e tentar entendê-la bem, pois é uma técnica importante. Alguns exemplos: o maldito violino que toca antes do ataque do assassino, nos filmes (o ataque do assassino é o estímulo aversivo, e o violino passa a ser o estímulo aversivo condicionado); a sensação de algo pegajoso, escamoso e frio subindo pela espinha que sempre precede um Paradoxo (em Mago: O Despertar) [o Paradoxo, enquanto um acontecimento, tende a ser um estímulo aversivo, e a sensação que o precede é o estímulo aversivo condicionado]; o latido dos cães e o barulho dos cascos de cavalo que sempre precedem uma Caçada Selvagem (em Changeling: Os Perdidos); o cheiro de cadáveres, ovos podres e sexo sempre que um espírito demoníaco está para se manifestar (em Lobisomem: Os Destituídos); e por aí vai.

Três dicas aqui são: 1) os sentidos de longa distância (visão, audição e olfato) são os mais adequados para se usar numa cena de suspense; 2) apesar disso, qualquer coisa que preceda o estímulo aversivo se torna um estímulo condicionado, portanto, use vários de uma vez (afinal de contas, quando você entra numa casa mal-assombrada não é apenas o escuro que te deixa com medo, mas quase tudo ali); e 3) nem sempre é preciso condicionar o estímulo, ou seja, nem sempre é preciso apresentar estímulos antes do aversivo de fato, pois você já pose usar da experiência própria e comum dos jogadores e pressupor que eles já passaram por experiências assustadoras. Por exemplo: é bem provável que uma casa abandonada cheia de teias de aranhas (estímulo aversivo condicionado) vá ter aranhas (estímulo aversivo); da mesma forma que é bem provável que uivos (estímulo aversivo condicionado) anunciam a presença de lobos (estímulo aversivo), mesmo que os personagens ainda não tenham encontrado nem as aranhas e nem os lobos.

Eu sei que o texto está longo e pode ser cansativo, mas agora só falta explicar o que é o horror e como causá-lo numa narrativa.

Da mesma forma que há uma diferença entre um som baixo e um ruído alto, entre tomar um choque por estática ao tocar a porta do carro e ser eletrocutado por um raio, os estímulos aversivos (e os estímulos aversivos condicionados) possuem diferentes intensidades. Como já podem imaginar, quanto maior sua intensidade, maior é a reação de medo por parte de quem os enfrenta. O que chamamos de horror, pode ser definido então, como a reação causada por muitos estímulos aversivos apresentados ao mesmo tempo e/ou estímulos muito fortes, muito intensos.

Por exemplo. Uma coisa é você ouvir um grito agudo (que tende a ser estímulo aversivo condicionado), de uma mulher, no meio da noite, sozinho numa floresta [alguém aí lembrou de a Bruxa de Blair? É um ótimo filme de suspense... você fica o tempo todo com medo de algo que não vê]. Outra coisa é o fantasma da mulher aparecer para você. Uma terceira coisa, diferente, é o fantasma da tal mulher te arrastar mata adentro impiedosamente enquanto você grita, se desespera e pede por socorro enquanto é levado para a morte. Isso é horror.

O livro básico de Lobisomem: Os Destituídos tem uma descrição de horror que acho fascinante. Na página 226, lê-se:

“Mas o horror é muito mais que o medo. O horror tem a ver com asco, trauma e impotência. No fim das contas, os inimigos podem ser combatidos e superados. Com o tempo, o medo que se tem deles vai desaparecendo. O horror é mais duradouro, porque se aloja, em parte, na consciência da pessoa, não a deixando esquecer o momento em que sentiu essa emoção pela primeira vez. Contudo, o horror é uma resposta difícil de evocar. Raramente consegue-se manter o tom de horror durante toda a crônica em vez disso, tente evocar momentos específicos de horror em suas histórias: momentos que espantam a complacência de jogadores e personagens e fazem-nos recordar como o Mundo das Trevas pode ser maligno, perigoso e desagradável.”

Esse trecho é interessante não apenas porque fornece algumas características dos episódios de horror (asco, trauma e impotência) como também já dá aquela dica de dosar bem a história, sabendo distinguir os momentos mais apropriados de usar o horror (e o medo, e o suspense...) para não desgastar esse recurso.

Vejamos outro exemplo: uma situação de suspense envolveria você, uma criança, estar escondido dentro do guarda-roupa, no escuro, enquanto ouve os passos do assassino (estímulo aversivo condicionado) passando pelo seu quarto, te procurando. Uma situação comum de medo seria quando o assassino de repente abre a porta do guarda-roupa e te pega. Uma situação de horror seria quando você acorda amarrado numa cadeira e vê o assassino abrir o estômago da sua irmã lentamente (asco) enquanto ela força a mordaça para gritar, tentando se libertar da cadeira (impotência) e, quando ela morre (trauma) ele caminha lentamente na sua direção independentemente do seu desespero, das suas tentativas de fugir (impotência).

Portanto, o horror envolve o contato com estímulos aversivos muito intensos a respeito dos quais pouco se pode fazer (são quase impossíveis de fugir ou evitar, ao menos num primeiro momento).

Se, por exemplo, você coloca um ratinho branco numa caixa experimental e, quando ele encostar o focinho na parede, aplica-lhe um choque muito intenso (estímulo aversivo) pela grade do chão, provavelmente observará ele se paralisando por completo (impotência), demonstrando várias expressões de medo, como urinar, guinchar, fazer caretas (que tem a ver com o asco), e depois que o choque passar, também observará que ele vai evitar energicamente tocar a parede da caixa (trauma). Em Análise do Comportamento, quando um comportamento de um organismo é seguido pela apresentação de um estímulo aversivo, chamamos esse acontecimento de punição. E, como se pode ver pelo exemplo, a punição que envolve a apresentação de um estímulo aversivo muito intenso é muito semelhante aos casos de horror.

Imagino que ficou claro como utilizar do horror nas histórias de MdT, de uma maneira básica. Contudo, uma forma menos óbvia de se utilizar o medo e os estímulos aversivos tem a ver não com a apresentação de um estímulo aversivo, mas com a retirada de alguma coisa que achamos boa, prazerosa, alguma coisa da qual gostamos. Fazer isso produz um efeito bastante semelhante à apresentação de um estímulo aversivo. Por exemplo: quando criança, tomar um beliscão por ter quebrado um quadro pode ser tão aversivo quanto ficar de castigo, situação na qual ficamos impossibilitados de fazer coisas que gostamos, como ver televisão ou brincar. Outro exemplo: quando alguém que amamos apresenta indícios que vai partir, a partida dessa pessoa funciona de maneira semelhante a um estímulo aversivo, e os indícios que ela nos apresenta (talvez falando em nos deixar, brigando ou ficando triste constantemente) funcionam como estímulos aversivos condicionados. Um último exemplo: se caracterizei aqui o  horror como a reação produzida em nós pela apresentação um estímulo aversivo muito intenso, é provável que uma morte grotesca de alguém próximo a nós funcione semelhante a um estímulo aversivo muito intenso na medida em que nos causará horror por retirar de nós algo (ou alguém) que nos era muito querido.

Nos outros textos que escrevi, algumas pessoas comentaram que leram e releram eles várias vezes para aprender e fixar algumas técnicas que aprendi. Acredito que este seja mais um texto assim. Acima de tudo, espero que as técnicas que tentei apresentar aqui possam ser úteis aos meus colegas rpgistas e por ventura outras pessoas que venham a ler este texto. Confesso que não fui estreitamente rigoroso na utilização dos termos científicos da Análise do Comportamento, por motivos óbvios, já que este não é um texto com propósitos científicos. Por fim, quem quiser conhecer mais sobre essa ciência (uma grande recomendação da minha parte, tendo em vista o quanto ela pode ser útil não apenas para as sessões de RPG mas para a vida como um todo), sugiro a leitura do livro Princípios Básicos em Análise do Comportamento, do Márcio Borges Moreira e Carlos Augusto de Medeiros, dois grandes psicólogos brasileiros. É um livro introdutório escrito numa linguagem simples, para aqueles que estão iniciando na psicologia, cheio de exemplos claros do cotidiano e extremamente prático.