Lendas dos Caraybaqüera (Vampiros Brasileiros)

por publicano em

Este é um texto que escrevi há algum tempo, publicado originalmente aqui http://vampirorequiem.multiply.com/journal/item/19/19 .

As primeiras noites nas terras brasileiras, em geral, foram repletas de mistério para aqueles vampiros que se viram forçados a fugir para a colônia, aqueles desesperados o suficiente para tentar uma viagem marítima.  Alguns dentre esses degredados esperavam encontrar algum tipo de criatura imunda similar a eles mesmos, escondida entre a população indígena, que logo seria revelada pela Mácula do Predador.  Outros achavam que os nativos eram selvagens demais e não teriam cidades e concentrações de humanos dignas de alimentar um membro da Família, e isso significava que a nova terra não traria esforços quanto à questão de estabelecer território, já que nenhum Amaldiçoado reclamaria quando os degredados estabelecessem seus domínios nas cidades recém-construídas.


A paranóia, contudo, durou por quase um século, sem que houvesse evidência de vampiros entre os indígenas.  Algumas lendas, porém, começaram a infiltrar-se nas conversas dos parcos salões dos Elísios das maiores cidades da colônia, vindas de áreas ermas, espalhadas pelos nômades que começavam a tornarem-se comuns no Brasil.


Na época em que a cidade de Salvador era regida pelo Arcebispo Dom Ignácio, hoje o mártir Ignácio do Espelho Turvo, celebrado na noite de 3 de julho, esse Príncipe dos Santificados e admirador dos jesuítas anotava com paixão as lendas, mitos e casos contados pelos nômades.  Seus textos estavam escritos na língua geral, e foram perdidos durante o período crítico de 1808-1835.  Algumas histórias sobrevivem até as noites de hoje.


Uma lenda contava que um vampiro – às vezes relatado nas histórias como sendo um Ventrue, noutras como Deva – havia se infiltrado numa expedição (ou numa bandeira, a depender do local onde a lenda era repassada) e colocado ghuls e mortais viciados em seu sangue entre os líderes e influentes da expedição.  Esse Amaldiçoado (nunca se conta precisamente seu nome, nem porque estaria arriscando-se numa expedição) viu alguns dos seus companheiros e servidores serem mortos por envenenamento, ao alimentarem-se da vegetação local.  O vampiro estava ansioso, já que havia enxergado alguns vultos no meio da mata que não eram percebidos por seus homens.  Com o passar dos dias e das noites, outros homens foram morrendo, só que agora não só por envenenamento, mas assassinados de maneira furtiva.  Um deles foi encontrado por seus companheiros, enforcado num cipó pendente de uma árvore muito alta; esses companheiros não tiveram a coragem de retirar o cadáver dali, pois contaram, muito assustados, que o cipó se mexia como se estivesse vivo, e que a casca meio apodrecida e cheia de fungos da árvore estava repleta de símbolos estranhos.


Um a um, os homens caíram vítima de estranhas armadilhas, alguns atacados por animais ferozes.  E tudo isso acontecia fora das vistas do vampiro que pensava controlar a expedição.  As únicas mortes que ele presenciara com seus próprios olhos foram os estertores finais de seus servidores, envenenados e cuspindo sangue.
Toda essa emboscada e cerco durou cerca de um ciclo de luas no céu, conta-se.  Quando a lua se ergueu cheia nos céus, o Deva, ou Ventrue que seja, estava sozinho no meio do mato, e sem uma mão humana a quem recorrer.  


Foi nessa noite em que surgiram três ou quatro – ou cinco, a depender de quem narra a história – indígenas, pintados de vermelho, saindo detrás das árvores.  Um deles trazia uma estranha bacia ou cumbuca de cerâmica em suas mãos, e ofereceu-a ao vampiro perdido, como num gesto de apaziguamento, ou uma oferenda a um espírito superior.


Os ouvintes sempre argumentam se aquele Amaldiçoado era um tolo ou se estava desesperado demais, quando o narrador conta que o vampiro aceitou a oferta e bebeu do líquido que continha na vasilha de barro.  Era uma mistura estranha e de cheiro pungente.  Assim que a beberagem desceu pela garganta do morto-vivo, algo estalou dentro de sua mente e ele subitamente percebeu, pela revolta de sua Fera interior, que todos os indígenas à sua frente eram tão Amaldiçoados quanto ele.  


A Fera do pretenso explorador vacilou entre a fúria ao olhar alguns dos acompanhantes do índio que lhe entregara a vasilha, e o medo avassalador que certamente o tomou ao sentir o peso do poder do próprio ofertante.


Nesse ponto, os relatos divergem: existem pelo menos três variações.  


Em uma delas, o vampiro perdido no mato era um membro da estranha, secreta e pouco conhecida doutrina dos Dragões, que somente seria amplamente conhecida pela sociedade vampírica brasileira no século XIX.  Esse vampiro estava pesquisando a existência dos caraybaqüera, os vampiros nativos do Brasil, a partir dos registros de outros de sua coalizão secreta.  Aquele momento então teria sido como uma epifania para o estudioso.  Ele havia sido preparado lentamente para o encontro por aqueles que estava caçando.  Os caraybaqüeras o cercaram e conversaram com ele na língua geral, e ali no meio daquela mata foram trocados segredos místicos e sabedorias ocultas.  Como marca dos segredos compartilhados, o explorador foi arranhado pelas garras dos vampiros indígenas, que desenharam estranhos símbolos e padrões, de modo sangrento, na pele cadavérica do Dragão.  Quando ele voltou à civilização – e esse retorno nunca é detalhado pelos relatos! – trazia verdades bizarras mapeadas em sua pele.


Em outro dos relatos variantes, os vampiros indígenas cercaram o explorador perdido, assumiram formas de diversos animais da fauna local, e quase massacraram o invasor de seu território.  Enquanto a dança ritual de combate era realizada sobre o corpo subjugado do colonizador, somente aquele que ofertou a beberagem observava de modo impassível.  Precisos, os monstros não chegaram a impor a Morte Final ao explorador, mas deixaram-no muito perto disso.  Foi aí que o líder deles colocou na boca do vampiro ferido uma raiz amarga, espremendo gotas de um líquido doce como a Vitae.  Durante três noites foi mantido cativo o desafortunado Deva (as histórias com este final sempre marcam o explorador como sendo um Deva), e a cada noite foi-lhe alimentado somente o sumo da raiz amarga, que dentro do corpo vampírico era mais doce que o mel.  Depois dessas três noites, o colonizador foi libertado perto de uma povoação ribeirinha de mortais desconhecidos.  O Íncubo saciou sua sede com os humanos que ali moravam, restaurando seus ferimentos lentamente, e fazendo várias vítimas fatais.  Porém, o sangue dessas vítimas operava para curar seu corpo maltratado, mas não satisfazia a luxúria de sua alma.  O Deva desejava ardentemente beber do sumo da raiz amarga mais uma vez.  Dizem que ele arrependeu-se depois de tantos assassinatos naquele vilarejo perdido e acabou Abraçando uma de suas vítimas, e essa cria contou a história ao contador de histórias, embora a história em si não mencione o que aconteceu depois ao genitor dela.


A terceira variação da lenda detalha um pouco mais o vampiro capturado pelos estranhos Amaldiçoados da floresta.  Um Ventrue Santificado que estava em viagem para um domínio distante audaciosamente atravessava a mata para difundir a fé negra em Longino.  Alguns dos mais precisos entre os contadores de lendas dizem que o Santificado era um Legado, ao invés de um missionário comum.  Qualquer que tenha sido sua posição na Lancea Sanctum, se era Ungido ou não, seus galardões não o salvaram do que aconteceu naquela noite fatídica na floresta.  O Lorde, logo após a constatação de que aqueles sivícolas eram vampiros como ele, começou a tentar comunicar-se em diversas linguas indígenas locais.  Não obteve respostas verbais, mas aquele que parecia o líder começou a fazer gestos, como que pedindo para seguí-lo.  O Santificado, não vendo outra alternativa, já que os índios estavam armados de estranhas lanças, consentiu.  Andaram quase meia hora por uma trilha no meio do mato, até chegarem numa clareira que abrigava um pequeno lago e uma árvore frondosa, mas de casca decadente, podre e malcheirosa.  Suas folhas forravam o chão da clareira.  Subitamente, um dos indígenas estendeu uma garra até então oculta e atacou o missionário, derramando um pouco de sangue sobre as raízes da árvore.  O Ventrue preparou-se para se defender, mas um cipó surpreendentemente firme destacou-se da árvore e enlaçou o Ventrue, como se animado por magia.  Em pouco tempo, outros cipós tornaram a fuga do Lorde impossível.  Os indígenas então espetaram suas lanças no chão ao redor do missionário, e o líder usou a sua própria para ferir o vampiro e - através de alguma feitiçaria herege - coagiu a Vitae do Santificado a derramar-se no chão, molhando as raízes da árvore.  Aquele solo profano rapidamente absorveu o sangue derramado, e o resto da noite foi passado naquela posição.


Quando veio o sol, o missionário tentou desesperadamente libertar-se, em vão; e então encolheu-se horrorizado.  Foi quando o cipó que o prendia puxou o Lorde para o chão, e algo enterrado no húmus que cercava as raízes da árvore dragou o vampiro para dentro da terra.  Após ter repousado no abraço da terra, o vampiro acordou deitado sob a luz da lua, sujo de pó e lama.  Nenhum de seus perseguidores estava mais lá.  O Ventrue lembrava-se de uma noite passada sob a terra, em que sonhos terríveis de sangue e traição distorceram sua mente, mas revelaram-lhe estranhos sinais, presságios e algo que ele supunha ser uma verdade nova... o Ventrue tornara-se um apóstata.


Dizem que ele tornou a embrenhar-se no mato, e ao sair da floresta começou a pregar uma nova fé, herética aos olhos e ouvidos dos Santificados.  O Ventrue contava fervorosamente sobre os caraybaqüera, anjos caídos guardando as selvas do Brasil.