Quarto Tomo - Lembranças

por Alanuska em

- Devo admitir que tenho gostos excêntricos, mas quem não os tem nestes tempos decadentes? Ficaria impressionado com as coisas que vi numa última "Reunião Social" para a qual fui convidado. Este é o nome que usam agora. Parece bastante conveniente para ocultar a série de depravações e perversões ali cometidas. Não se preocupe, porém, nada fiz além de observar seus comportamentos febris e esforçar-me por memorizar cada rosto presente. E, meu caro amigo, não acreditaria se eu lhe dissesse seus nomes...

Centralia, Pensilvânia, 01 de maio de 1981.

 

- Devo pular as saudações costumeiras? Apesar de ser um homem amante da cortesia e dos bons modos, creio que aqui eles não se façam tão essenciais. Pelo menos não agora que nos conhecemos bem e sendo esta nossa quarta correspondência. Não perguntarei sobre sua família, sei que não tem uma. Também não pergunte sobre a minha. É engraçado que até nisso sejamos parecidos. Eu teria imenso prazer em recebê-lo aqui, mas temo que não seja o momento certo. Não enquanto minhas acomodações estiverem tão precárias. Você que não acreditaria em mim se lhe dissesse o que encontrei entre meus pertences ainda ontem...

Sim, infelizmente ainda sofro com esses infortúnios, o que só piora toda a situação. Li tudo que publicaram ultimamente nos jornais, e começo a achar os adjetivos que usam sobre mim até engraçados. "Maníaco", "depravado", "sádico". Se eles soubessem, não é verdade? Ou como se fossem tão diferentes. Conhece aquela jornalista? Ruth Johnson. Fiz questão de memorizar este nome, e tenho lido absolutamente cada palavra do que ela publica. O sensacionalismo é quase como colírio aos meus olhos. Algum dia, se eu encontrá-la, poderei fazer os devidos esclarecimentos e mostrá-la minha verdadeira índole pessoalmente! Mas isso agora não vem ao caso.

Acho que tinha me pedido mais detalhes de como tudo aconteceu em Auschwitz, não foi mesmo? Bem, eu poderia fazer descrições de todas as maneiras, sobre os prédios, os enfermeiros, os outros internos, o ambiente... Poderia dizer como me sentia, mas suponho que isso você já saiba. Então quero compartilhar contigo, meu caro e fiel amigo, os momentos em que tomei definitivo conhecimento sobre Eles.

Começou no quarto mês. Naquela época eu já era um interno razoavelmente familiarizado com o ambiente. Não que estivesse conformado com minha situação, mas já conhecia as regras e os horários de circulação. Passava a maior parte do tempo na cela, sedado, e minhas únicas lembranças sobre esses momentos são vagas e imprecisas. Havia um horário, porém, em que os internos "adaptados" podiam sair da cela e circular dentro de um espaço determinado nos jardins de Lauren Parker.

Tive autorização para a primeira saída exatamente no dia em que lhe enviei minha primeira carta, em 13 de março. Sei disso porque um dos enfermeiros comentava ao meu lado ser seu aniversário de casamento. Lhe desejei um dia feliz, mesmo sabendo que ele falava com o outro companheiro, e não comigo. Eles riram daquela atitude como se ri das primeiras percepções de uma criança inocente, e eu guardei aquele riso. 

Naquele instante, porém, estava mais preocupado em ver o sol, em senti-lo e absorver todo o calor que até então me fora negado. Fechei os olhos e caminhei com passos lentos rumo ao jardim. Havia algo em mim querendo gritar, mas eu contive o grito e me concentrei em sentir. Não foi como eu esperava, porém. Naquele instante, lembrei-me de Gwen. Não tinha notícias dela ou de mais pais, estava completamente alheio sobre eles. Imaginei o que fariam enquanto eu permanecia interno. O que pensavam em minha ausência. Se olhavam para o sol como eu, naquele instante. Então parei de senti-lo.

Não havia calor, nem brilho ou luz alguma, apenas a presença inevitável de uma estrela totalmente alheia a mim e ao que eu passava. Olhei em volta, como reação. Outros internos espalhavam-se pelos arredores, todos distantes uns dos outros, acompanhados pelos olhares sempre vigilantes dos enfermeiros. Alguns deles brincavam com plantas hostis, outros sentavam-se nos poucos bancos dispostos ao longo de uma área onde também havia árvores e trilhas entre a grama. 

Comecei a sentir náuseas. Consegue imaginar quão deprimentes éramos nós, internos, agarrados ao brilho de algo tão alheio a nós? Contentes naquele pequeno momento onde não havia paredes? Decidi jamais participar daquela cena horrível. Afastei-me deles. Andei com passos rápidos até uma das trilhas que se embrenhavam através das árvores, e onde poucos, ou nenhum deles, ia. Fui seguido por dois enfermeiros, mas pouco me importei.

Ordenaram para que eu diminuísse o passo, mas a fúria que me acometera era mais forte. Me impelia a seguir, a continuar, contrariando os chamados de todos eles. Não percebi que estava correndo até sentir o frio vento sobre meu rosto e deparar-me no local exato onde as trilhas acabavam, assim como as árvores. Desconhecia quantos metros havia percorrido, tampouco se desobedecera alguma lei importante, mas estava diante de um pequeno campo onde várias lápides de pedra preenchiam o espaço em fileiras sucessivas. Uma, três, seis, oito... Perdi a conta de quantas eram no mesmo instante em que senti o impacto agressivo das mãos de um dos enfermeiros, agarrando-me pelos braços e me puxando para trás. 


Eles bradavam contra mim e seguravam-me de um jeito que me feria, mas eu nem mesmo conseguia ouvi-los. O enjôo voltara com toda a força, e eu só divisava o som de meu próprio coração palpitando freneticamente, além dos passos deles quase mutilando o solo onde a trilha recomeçava. O primeiro puxão no estômago e eu respirei fundo, mas devo ter dito algo incômodo porque o aperto em meu braço aumentou. Um segundo puxão e tentei me curvar, algo que provavelmente foi interpretado como tentativa de fuga. No terceiro puxão não havia mais como controlar a torrente de bílis se avultando na garganta, então lancei o vômito sobre eu mesmo enquanto sentia meu corpo desfalecer aos poucos.


A queda não foi dolorosa, não houve a sensação de náusea, e, num último lance quase instintivo, virei meus olhos para o campo das lápides, já bem atrás de onde estávamos, e então pude divisar um vulto esquálido e luminoso entre elas, escondendo-se enquanto meus olhos se fechavam e eu nada mais via.