Quinto Tomo - Dickens

por Alanuska em

- Como amigo, devo alertá-lo que me procuraram antes de ontem para saber a seu respeito. Eram do governo. Da próxima vez, virão com um mandado de busca, parecem querer investigar a casa e suspeitam que troquemos correspondências. Decidiram ficar espertos, agora. Não me escreva pelos próximos dias, até eu entrar em contato.

Centralia, Pensilvânia, 09 de maio de 1981.


Acordei dois dias depois com a consciência de que estava morto. Não literalmente, é claro. Privaram-me de todo tipo de benefícios, cujo quase exclusivamente único era justamente sair à luz do dia, por um período de tempo indeterminado. O preço da revolta, meu caro, tinha seu valor, e eles me cobrariam. Passei as semanas seguintes indo e vindo entre os corredores, acompanhado sempre dos enfermeiros que me guiavam até as salas de tratamento. Por três vezes questionei quanto tempo levaria até que me permitissem sair novamente, mas só três vezes.

Quando recusaram, decidi dedicar-me a tarefas menos trabalhosas. Nesta época conheci Jeremy Dickens, o interno de número 29. Vivera por muito tempo na cela que agora eu ocupava, mas encontrava-se então internado em uma cela vizinha de onde, astuciosamente, conseguia se comunicar comigo.

Sempre à noite, sempre depois de todos os enfermeiros terem se retirado, ele me chamava. Era um chamado suave, convidativo, quase como um pedido para que eu o ouvisse. Conhecia meu nome, não sei como, e jamais usava os números que eram nossa identificação. Posso até ouvi-lo agora, se fechar os olhos e me concentrar, sussurrando, sussurrando, enquanto sua voz lânguida chegava até mim por um buraco num canto da cela.

A voz era frágil, trêmula, como se vacilasse ao pronunciar cada palavra. Dickens fora internado por ter confundido a namorada com a personagem de um romance, e isso lhe custara muito. Em nossas primeiras conversas ele parecia preocupado apenas em contar-me sobre as injustiças que o levaram a estar ali, mas depois de um tempo o discurso dele mudou.

Dickens falou-me das lápides.

     - Você viu elas, ... ?

     - Vi.

     - Contou elas?

     - Não, eram muitas.

     - Leu algum nome nelas?

     - Não, não, eu só vi bem de longe...

     - E eles puxaro você, num foi?

     - Sim, eles puxaram.

O silêncio completo. Naqueles momentos, sentia-me fortemente capaz de escutar qualquer coisa deste mundo, além do palpitar intenso de meu coração e da fala arrastada de Dickens. Ao longe, bem distante, mas, mesmo assim, quase nítido, eu ouvia o som de passos se arrastando, lentamente, lentamente, em todo aquele silêncio.

     - Sabe quem ta lá, ... ?

     - Internos sem família, eu suponho.

     - Hum... Até que sim, você até que pensa.

O ambiente era frio e úmido, porque as pedras nas paredes não deixavam calor algum passar. Ao longe, muito ao longe, os passos arrastados alternavam-se entre tossidos e grunhidos que eu não conseguia identificar. Quanto mais frio ficava, mais fácil era ouvir.

     - Você viu um deles, ... ?

     - Deles? Quem?

     - Os que tão enterrado?

     - Quem?

     - Os que tão enterrado lá no meio... as luzinha, brilhando de noite... A gente quase nem dorme de tanto que elas brilha.

Os passos cessaram. De novo um silêncio engolindo mesmo minha respiração. Um, dois, três. Eles voltaram, agora com mais ímpeto, como se fossem impulsionados por alguma força. Os passos caminhados no silêncio de Lauren Parker, quando a noite era mais escura.


 

    - De onde você vê a luz, Dickens?

     - Da janela.

     - Que janela? Eu não tenho janela aqui...

     - Você não precisa ter pra ver, ... Você precisa só querer ver, e vai ta tudo lá, as luzinha correno no meio da mata, correndo, correndo, quase conseguino sair... Procurano, procurano uma brechinha pra sair...

     - Quando você viu?

     - Foi naquela noite.

     - Que noite, Dickens? Que noite?

Ele não fala mais nada. Eu estaria sozinho, não fosse o som dos passos, agora no corredor. Fingi que dormia, tentei acalmar minha respiração, mas fui traído. O vulto de alguém parado à porta da cela surgiu, alguém que me espiava com olhos misteriosos enquanto eu “dormia”. Não havia um rosto, não na escuridão completa. Não havia luz, eu nem mesmo poderia ter divisado o formato daquela cabeça, mas mesmo assim vi. E quando a porta da cela foi arranhada, quando eu ouvi o baixo choro feminino e lamentoso, não gritei, meu amigo, mas mantive os olhos abertos e não dormi.

 

<A carta está rasgada nessa parte, não encontramos a outra metade>