Esquecidos por Deus - Prólogo
O padre Amadio se preparava para mais uma noite de “sopão” no Centro de Vitória. O cheiro de carne assada lhe animou quando encontrou a turma no saguão do prédio. Sexta-Feira à noite os moradores de rua já sabiam, ao lado do Teatro Carlos Gomes sempre havia o sopão do pessoal da Igreja.
Enquanto enchia os vasilhames com a mistura doada por vários restaurantes, João Paulo Amadio reconheceu de relance um dos passantes. Interrompeu o serviço e gritou um nome que não ouvia a anos, Ludvik!
O pobre Ludvik era um garoto que tinha estudado com ele e seu pai sempre citava como exemplo enquanto repreendia o mau comportamento. “Você viu no que dá contar mentira?” ou “Não vá caçar briga, senão vai terminar como Ludvik, na cadeia!”.
João Paulo mal pode reconhecer o homem magro passando pelo Centro como mais um mendigo, sentiu um profundo desejo de ajudá-lo. Ludvik parou, virou desconfiado e sentiu um misto de alegria e vergonha ao encontrar o amigo de infância. Os vinte e três anos que cada um tinha vivido, tinha um efeito muito diferente para um e para outro. João Paulo estava corado, sadio era mais alto e cheirava bem, com aquele ar de limpeza de quem saiu do banho. Ludvik por outro lado, tinha cabelos desgrenhados, barba comprida e um rosto queimado de sol. Os dois conversaram bastante, enquanto João mostrava interesse em ajudar, mantinha a discrição de não fazer perguntas sobre assuntos incômodos. No fim da noite, dirigiram-se para a casa de João, onde o bom amigo Ludvik passaria a noite.
O apartamento era modesto mas aconchegante, Ludvik tomou um banho demorado e antes de sair certificou-se de que o banheiro não estaria sujo. Vestiu uma roupa de João e jantou. Era quase dez horas quando o telefone tocou, a irmã Rita convidou o padre para um passeio na baía de Vitória em virtude do encerramento de um encontro sobre ecologia. Por isso Ludvik foi mais cedo para o quarto de hospedes, mas deitou-se no chão, já não sabia dormir em cama. Quando acordou o aroma de café já sinalizava que o amigo estava de pé. Apressou-se, dobrou a roupa de cama e foi encontrá-lo na cozinha.
Os dois saíram e caminharam um pouco até o Porto, onde encontraram um grupo grande vestindo camisas brancas e se preparando para entrar na embarcação. A irmã Rita, uma senhora negra com óculos de hastes douradas acenou. Foi muito calorosa na recepção dos dois, arrumou um bom lugar para eles a seu lado. O passeio começou alegre pela linda baía de Vitória, os tripulantes conversavam animados, a irmã Rita oferecia café com leite e biscoitos caseiros, só Ludvik previu a desgraça.
Conrado não pôde dormir, há poucos dias não o fazia por ter pesadelos – agora era incapaz por não ter conseguido interpretá-los. O apartamento sem ela era grande, vazio, uma solidão que ele não podia suportar. Será que amanhecer era tão difícil assim?
As horas se arrastaram e ele também, quando os pássaros começaram a cantar e o céu ficou acinzentado, ele trocou de roupa e desceu. Seu apartamento fica em Jardim da Penha, um bairro de classe média alta na capital do Espírito Santo. Caminhou poucos metros até chegar a padaria que já estava abrindo. As meninas limpavam o chão, um senhor de meia-idade no balcão o cumprimentou com um aceno de cabeça, ele caminhou pelo piso úmido até o fundo, onde pediu um café e um pão com manteiga. O cheiro bom de pão fresco invadiu suas narinas e o revigorou. Sentou e deu um trago no café preto, sentindo-se um pouco menos miserável.
A notícia no jornal dizia em manchete: “Máquinas da empreiteira dinamarquesa chegam a Vitória para dragagem da baía, obras marcam a primeira etapa da ampliação do Porto que movimenta mais de 25 bilhões de dólares por anos...”
Quando terminou o café, deixou o jornal de lado e apressou-se para chegar à praia. Lá o céu estava deslumbrante, tingido de matizes violetas. Sentou na areia, cruzou as pernas e fez sua meditação matinal, mentalizando seu corpo como uma ligação mística entre a Terra e o Cosmos. Isto feito foi caminhando pela praia enquanto o dia começava, esqueceu-se de si enquanto admirava a beleza do lugar.
Raul não teve um início de dia tão agradável, estava a uma maldita semana tentando encontrar o corretor que desde o início lhe pareceu um cara enrolador e trambiqueiro. Ele odiava sair de casa, quanto mais no final de semana, quem diria naquela hora da manhã! Engoliu um café preto, arrumou a gravata e saiu.
O encontro estava marcado no píer de Iemanjá, na Praia de Camburi. O lugar estava cheio de famílias de turistas - velhas gordas e crianças com coriza – e o desgraçado não chegava. Já estava desistindo quando viu um carro parar, um Escort preto e mal cuidado. O homem saiu, era calvo, com um cavanhaque e óculos escuros, vestia uma camisa de botões abertos que deixava à amostra um cordão de ouro. Pelo modo como olhava para os lados Raul deduziu que ele o estava procurando. Aproximou-se e se apresentou o homem não parou de olhar para os lados, mas confirmou que era mesmo o corretor da casa herdada por sua cliente, Cecília, e disse que lhe pagaria um passeio na barca, pois não era seguro conversar ali.
Nesse momento, Conrado passava no local e reconheceu Raul de longe. Foi até ele, agora com um humor bem sereno e lhe cumprimentou. A serenidade lhe deixou quando viu a companhia em que o colega estava, tudo bem que ele era paranoico, mas aquele homem era realmente estranho.Se ofereceu para ajudar em qualquer coisa, mas não pode fazer muito, o estranho era um cliente do amigo que teria uma reunião com ele durante o passeio de barca pela baía.
Para falar a verdade, Raul ainda não se lembra direito do que aconteceu nos próximos minutos, sentou-se com o estranho e tiveram uma conversa que agora descreveria como peculiar. De repente desfaleceu e sentiu uma pancada na cabeça, tinha se envolvido num acidente.
Ludvik teve uma visão mais completa da cena. Distraiu-se do que acontecia no barco em que estava quando a Terceira Ponte vista debaixo formou uma paisagem de cartão postal, mas não pode deixar de perceber um navio enorme à direita. Ainda que Ludvik não soubesse a diferença, a embarcação colossal era uma draga, navio com mais de cem metros de comprimento e um enorme “braço” com várias pás numa esteira para escavação. O navio chocou-se violentamente com uma escuna que passava pelo local e fez um movimento inesperado em direção ao pequeno barco em que o Ludvik e o padre se divertiam. O timoneiro tocou a buzina, mas era tarde. A batida foi violenta, o estrondo foi seguido pelo som de madeira se rachando e gritos. Quando foram a pique, os dois não imaginaram que sobreviveriam, quanto mais que seu destino seria transformado tão radicalmente.