Ato I - Flores

por manny em

 É noite.

Uma bela mulher de cabelo negro revoltoso e armado acorda meio assustada. Passa a se sentar na cama, suspira e esfrega os olhos para ver se não encontra o que lhe despertou, parecia ter ouvido um barulho estranho - mas logo imagina que seria alguma moto passando velozmente na rua de sua casa, ou um gato caindo do telhado - pois o silêncio paira no ar – bem, não seria a primeira vez que alguém teria feito de propósito para mostrar que a nova inquilina de nome esquisito era indesejada. Mas Vonda não iria se intimidar por isso.

Na verdade, Vonda estava cansada de ser tratada de maneira tão hostil assim, não só pelo bairro – que fizera questão de mostrar que era uma comunidade fechada e não aceitava novos moradores sem alguns “requisitos mínimos” ou ao menos um “bom nome” - mas também estava cansada das hostilidades da sociedade em que estava inserida ninguém confia em um Perdido recém encontrado. E depois tirou isso da cabeça, pensaria depois em como ganhar a confiança da Corte das Desgraças.

O local continua mortalmente silencioso, ela olha para os lados, não há ninguém, está tudo em seu devido lugar. Vonda se vira e toma um pouco de água que estava no copo em cima de seu criado mudo e então decidi voltar a dormir. Não quer mais se lembrar daquela mulher mal comida de pele branca como porcelana “tomara que tropece e se quebre toda” ela pensa, enquanto vai se ajeitando entre as cobertas novamente.

É quando Vonda vai se deitar novamente que ela sente um leve aroma de hortelã, que vem acompanhada de muitos outros cheiros oriundos de lugares  que só se lembram em sonhos. No meio daquelas sensações que aqueles perfumes lhe trazem, uma lembrança vai até sua mente, caí como um raio: Vonda não havia colocado nenhum copo de água em seu criado mudo antes de dormir.

Ela abre o olho assustada, e as paredes estão cobertas de folhas, de galhos e espinhos, seu quarto esta coberto da Sebe e dos Jardins que deixou para trás em Arcádia. Se senta novamente (ainda deitada na cama mas flexionada para frente) e observando um imenso guarda-roupa, aparentemente muito antigo e mal cuidado, com centenas de borboletas estampadas em sua volta que... parecem se mexer...

As portas do guarda-roupa se abrem impetuosamente. Uma corrente de ar quente sai dele e invade o quarto, deixando tão úmido quanto uma floresta tropical, e com isso as plantas, flores e galhos ao redor do aposento crescem ainda mais, desenfreadamente, quase que tomando todo o quarto (e o colchão).

Mas eles param imediatamente quando alguém, ou melhor, alguma coisa sai do guarda-roupa.

Como um sonhos ela o vê. Um homem alto e esguio, de aparência frágil mas ainda sim reluzente como um girassol, possuí cabelos longos e castanhos como cascas de grandes arvores, olhos perolados como botões de lírios, vestes simples que trazem um pouco e terra em seus sapatos e sua calça, uma baraba por fazer que os olhos de Vonda juram que poderia ser grama! Sua pele parece ser tão macia como uma pétala de rosa, e em sua cabeça pode-se observar claramente uma coroa de flores e espinhos. Ele carrega uma flor tão bela quanto ele, chega a fascinar, uma rosa perfeita. Vonda o reconhece: Ele é o Senhor das Flores Inópias, o Gentil que levou Vonda para aquele lugar, um lugar cheio de belos e terríveis sonhos eternos: Arcádia.

senhor_das_flores_inopias

- Eu não entendo - ele diz, e sua voz é doce e calorosa - Por que ainda não fui presenteado? Será que fui clemente de mais? - neste momento diversas vinhas, de todos os tamanhos, cheias de espinhos começam a a se levantar - Preciso te lembrar do que deixou para trás?

Nesse momento as vinhas avançam sobre Vonda. Elas enrolam em seu corpo, rasgando sua carne, a dor é tão alucinante que não há como manter a mascarilha que protege dos mundanos cada vez mais as vinhas lhe furam, enrolam em seu dorso, deixam escorrer seu sangue. Vonda tenta se desvencilhar mas logo seus braços são amarrados por cipós cheios de espinhos, ela tenta gritar mais um ramo de flores começa a lhe torcer o pescoço. Uma dor que Vonda pensa que nunca sentiu nada igual, os ramos passam a lhe puxar cada vez mais, e ela acaba ficando suspensa no ar, como se estivesse sendo crucificada.

Não havia mais a imagem de Vonda para qualquer um ver, a dor e os cortes fizeram tão mal que não havia mais como sustentar a mascara. Os ramos em seu pescoço apertavam tanto que ela chega a expor suas presas para fora de tão ofegante e sem ar, as vinhas não prendiam mais suas pernas mas sim perfuravam uma grande cauda verde que saia de seu dorso. Havia tanto sangue em suas mãos que elas se confundiam com as grandes unhas cheias de veneno que secretavam, e o cabelo negro revoltado dava lugar a um capuz. Vonda não era completamente humana, era um ser feral, era presavirosa, era alguém perdido em meio a outros dezenas de perdidos naquela cidade perdida.

Vonda chora, nem ao menos conseguiu falar, os ramos machucaram tanto seu pescoço e garganta que nenhum som saía. O Senhor das Flores Inópias começa a se aproximar.

- Por que não me responde? - ele olha no fundo de seus olhos, ela até tenta responder mas não é capaz - Por que esta vazando? - ele leva a mão a face de Wonda, e por um instante, ela sente um êxtase com a doçura e suavidade de sua pele até que ele retira uma lágrima sua e fica na ponta de seu dedo, e sai andando mais adiante - Não preciso lembrá-la de nosso acordo, não é mesmo MEU brinquedo? - ele coloca a lagrima de Vonda naquele copo de água que bebeu assim que despertou- Se não eu posso me divertir muito mais plantando... Quebrando

Assim que ele fala quebrando, as vinhas cipos e ramos puxam, de maneira voraz, muito forte, muito rápido, para direções diferentes, para torcer o corpo de Vonda para direções que ela não pode torcer. O braço direito dobra ao contrário, três dedos da mão esquerda fraturam de forma que nem mesmo leprosos poderiam fazer. Por fim o tronco Vonda vira 180º em direção ao Gentil – e por um singelo momento ela teve certeza que todo o bairro ouviu seu grito de dor e misericórdia

E olhando para o chão, já quase inerte, vendo mais e mais lagrimas tocarem o solo, Vonda relembra que não foi a primeira vez que isso aconteceu. Chora em silencio. Até perceber que Ele se aproxima, ele leva sua mão próximo a sua face, Vonda fecha os olhos com medo ouve um estalo. Ao abrir os olhos de novo pode-se observar Ele colocando uma rosa, as mesmas que estão lhe perfurando o pescoço, naquele copo d'gua.

- Tens - Vonda começa a observar diversas rosas se juntando próximo ao Gentil - até a ultima pétala cair - a quantidade de rosas começa a crescer assustadoramente atrás Dele, formando uma parede de flores - para entregar-me o seu primeiro tributo - a parede de flor fica ainda mais densa, e Vonda consegue ouvir que dela sai um estranho barulho parecido com "nhac-nhac-nhac" - entrega-me com esta rosa, e se falhar... Irá se lembrar porque tenho o titulo de Senhor das Flores Inópias...

Assim que ele termina de falar, aquele paredão de flores cai em cima de Vonda, como se fosse uma onda de rosas. Sente arraiões, queimaduras, mordidas... Das rosas devorando-a. Vonda da um ultimo grito!

Vonda acorda assustada em seu quarto, não ha nada de especial nele, olha para todos os lados, foi tudo mais um sonhos. Se encolhe, tremendo de medo, poderia até tentar voltar a dormir de novo. Mas ao olhar para o lado, em seu criado mudo, há um copo com água, e nele uma rosa vermelha. 

E uma pétala caindo. Lentamente.