Ato II - Luta

por manny em

Esticava, remendava, puxava. 

Hoje Carlo queria parecer dar um tom diferente quando fosse sair do atelie que roubou dele mesmo. Geralmente não passaria de mais um mundano qualquer esquecido na multidão, mas dessa vez ele queria um pouco de individualidade, queria fingir que as pessoas pudessem se lembrar daquela mascara, daquelas feições recém-criadas, daquilo que ele deixou de ser, e é por isso que hoje ele teria olhos azuis profundos, intensos, passionais, como naquela noite em que tudo mudou.

Os humanos foram feitos por Deus, a vossimagem... Mas Carlo deixou de ser humano quando aquela coisa o levou para o lugar mais terrível de sua vida, não pela paisagem, que era aterrorizantemente bela, mas pelo seu sequestrador, uma coisa Gentil que proclamava-se Deumludens. Uma gigantesca arvore, que lembrava vagamente um salgueiro, e em seu tronco, havia centenas, não havia milhares de mascaras. E quando Carlo fora ordenado a se aproximar daquilo, viu que não era o que se parecia... eram rostos... Mas isso era passado.

Não possuir reflexo é algo inquietante. Os mundanos se veem no espelho, os Perdidos se veem também, mas como realmente são – e isso é triste, mas eles se lembram por que vivem escondidos. É muito mais inquietante ter reflexo, e ao mesmo tempo nada para refletir. E foi quando recebeu um convite de um simplório homem ruivo, magro como um palito, e de comportamento arisco, que Carlo podia ver que havia ainda bondade entre outros que se julgavam semelhantes a algum sem face.

O homem, de nome incomum – como tantos os outros que compartilhavam de memórias tristes como as dele – falava sobre ganhar confiança, sobre ser aceito em um grupo que queria mudar aquela sociedade Perdida entre tantas desconfianças justamente devido a uma qualidade tão ilustre entre os mundanos: Lealdade. E agora estava sendo convidado para ir a uma boate, de tantas outras que frequentava, para tratar de negócios, e claramente de esperança, algo que já tinha decidido e jurado não acreditar mais – mas ao menos, seria uma desculpa para farrear.

Babilon é uma das casas noturnas bem conhecidas no Feudo Franco de Gimmie, a fila poderia dar voltas e mais voltas nas quadras no bairro Encantado – uma infeliz coincidência. Mas as habilidades de Carlo e suas escapadas pela noite não o impediriam de entrar na frente dos mundanos que estavam ali.

A boate de decoração estilosa cheirava à desejo, ele via tudo aquele sentimento transbordando, mas ele não podia pega-lo – era contra os princípios da Corte, mas não havia nada contra gerar ainda mais? Era um casa lotada, cheia de lindas mulheres, era dia de carnavalizar. Puxa, remenda, estica, pronto. Olhares e mais olhares no belo Carlo com uma grande saliência marcada na calça jeans e curtia com as garotas ali num tom muito mais lascivo que os outros, nem mesmo percebera uma briga no final da noite, e foi quando fora ao bar pedir mais um drink que viu o homem de nome incomum, e com ele mais três pessoas igualmente Perdidas.

- Temos que sair daqui, parar de atrair olhares indevidos, até por que ouvi rumores que Shamian está por aqui, por favor me sigam - Ele saiu andando apressadamente e Carlo, assim como os outros, o seguiu até uma parte mais isolada da balada, que só era possível com o fim da madrugada, assim que abre uma porta escrita “Apenas Autorizados” ele olha para trás e fala – Por favor, não se desvirtuem do caminho, seguiremos aqui até a clareira, de lá terminarei de explicar para vocês.

O homem de nome estranho toma a frente e segue depressa pelo corredor, ele parece mais à vontade andando por ali. À medida que Carlo e os demais iam seguindo pelo corredor, tudo começava a ficar mais úmido e coberto de plantas. Um bolor que reveste o chão e as paredes dava lugar a um musgo e depois a espinhos, Carlo – e certamente os demais – só percebeu onde estava quando pode observar que suas mãos careciam de cor ou digitais, a mulher que estava atrás dele dava lugar a uma “meio-cobra” de longas unhas vermelhas, um dos homens era belo e ao mesmo tempo seu corpo pareca profundo como a noite um outro mudara drasticamente de homem para maquina aos moldes vitorianos. Já...Aribaldo! Esse é o nome de quem o guiava! Ele estava com as pernas e os braços ainda mais finos, sua cor mudara para um verde vivo, podia jurar que daquela pequenina cabeça dotada de grandes e negros olhos poderia sair duas antenas. Aquilo era os muros que os separavam de seus raptores, estava na Sebe.

Andaram um pouco mais, até uma clareira de inúmeros caminhos, Calor podia observar que aquela clareira era ponte, sobre um lago, turvo e esmeralda. Aribaldo parou de andar, virou-se para todos e começou a falar.

- Pronto, eu estou aqui para convidá-los – seus imensos olhos negros voltavam-se para vários lados, sempre alerta – Sei que muitos de vocês devem ter presenciado atos de repúdio ou ainda discriminação entre outros membros de nossa sociedade. E não só vocês sofrem isso até hoje, muitos sofrem - Carlo juraja que em algum momeno podia ouvir um bater de asas das costas dele - Por isso, um mero mensageiro, estou convidando vocês para um grupo, um grupo que tem o sonho de mudar nossa sociedade. Muitos poderiam considerar rebeldia, traição, mas muitos nós só queremos paz, igualdade - os olhos de Aribaldo ficavam cada vez mais tremulos - Como são novos, um dos lideres me pediu para convidá-los como uma célula da Revolução que irá acontecer em Gimmie nos próximos dias

Houve muita discussão, aquele belo como a noite pesava que era uma armadilha de seus respectivos Reis, aquela mulher cobra achava que se pudesse ganhar algo por que não? O homem de lata parecia ser o único que se importava com a causa. Carlo não se pronunciava, até ouvir a ultima suplica. 

- Por favor,  o que lhe peço é o dom da dúvida! Vocês não conhecem outros lugares! Eu fui já a outras cidades, e tudo aqui esta muito errado! Há outros Feudos, há outras Cortes! Não só de Aurora e Anoitecer vive este mundo, também há o Desejo, a Raiva, o Medo e a Tristeza do que aconteceu com todos nós, eu só peço por uma semana! - Ele juntos seus frágeis braços como uma súplica, Carlo poderia jurar que viu uma pena cair pelas pontes onde estavam - Jurar por aquele que te roubou e lhe fez sofrer, jurar por aquele que lhe Protegeu de sua vida! Por uma semana apenas, não contar sobre quem esta por trás daqueles que trazem mais esperança a vários de nós, por uma semana jurar a não contar a ninguém sobre aquilo que lutamos, é uma dádiva te convidarem! Ou ainda não percebeu que ninguém confia em vocês?

Carlo fora o primeiro a dizer sim, aquilo era esperança, algo que já não acreditava mais e enquanto muitos outros juravam por aqueles que os roubaram ele lembrava do que deixou de lutar...

. . .

Acabou por agora ...
- Mas você não quer mais tentar ?
- Já tentamos, não conseguimos... um dia quem sabe... nos encontramos.
Após essas ultimas palavras Carlo a beijou pegou seu casaco e antes de fechar a porta deu uma ultima olhada para a moça loira sentada no sofá ao prantos, virou-se e fechou a porta.
Três anos... se conheceram na graduação, nos primeiros dias namoraram-se com os olhos, após uma aproximação, sorrisos, risos marotos e três encontros estavam juntos. Vindo do interior, Carlo que havia sido criado entre irmãs, tias e primas, pouco conhecia sobre mulheres de verdade, ele era o troféu do mulheril de sua família, suas vontades pouco eram correspondidas, ele era muito apreciado mas pouco visto, como um boneco que buscava no olhos do criador a fagulha de desejo que lhe explicaria sua vinda ao mundo, mas essa parecia não existir. Descobriu tudo com Débora, o primeiro beijo, o primeiro amasso no banco traseiro, o sexo... o olhar.
Após dois anos vivendo juntos, a aparente lua de mel começou a ganhar um tom mais cinza. Brigas...
– Porque você fala ainda com ele !?!? Você sabe que ele ainda gosta de você... Ele é melhor que eu é isso !?!?
- Ele é um namoro de adolescência! Um amigo! Não vou cortar uma amizade porque você não confia em mim!
Carlo deixava pra lá... Não queria perdê-la. Mas a cada dia via mais e mais nos olhos dela um distanciamento, parecia estar longe perdendo dele. A graduação em artes servia-lhe de pretexto para pintá-la em nu e como ele adorava isso. Ele fitava seu corpo, passava os olhos pelas curvas e pelo seio nu até desaguar naqueles olhos verdes amendoados, cada vez mais distantes...
Notou que ela mal olhava para ele durante o sexo , o olhar que antes era fixo, profundo e envolvente lhe parecia estar em outro lugar...
Talvez em outro homem...
A duvida corroía seu ser, já não conseguia pintá-la sem imaginar que mais havia apreciado aquela visão. Quem haveria deitado sua cabeça naquele colo além dele. Para quem aquele olhos verdes teriam olhado no momento de amor dos dois. Onde eles estavam que não ali que não nele. Ele se sentia cada vez mais confuso e cada vez mais não visto... mysterious-tree-face
Como quem ao pressentir a derrota e teme ver a glória do oponente, ele entrega a batalha.
Era o fim...
Naquela garoa fina que caia ao deixar a casa, a cada passo ele pensava se aquela teria sido a melhor decisão, e se ele ao invés de fugir ficasse e lutasse para agarrar aquilo que era seu ... Aqueles olhos
amendoados com o frescor verdejante de um bosque, contra tudo e contra todos ele deveria lutar.
Já ia anoitecendo e os últimos raios de sol escapavam por entre o prédios, após horas andando sem rumo e com um maremoto dentro de si ele parou.
Ficou parado no meio da calçada e finalmente decidiu - Ele lutaria e ganharia a guerra!
Deu meia volta e quando ia dar o primeiro passo rumo a amada ele ouviu uma voz, como um sussurro… Assustado ele olhou para todos os cantos buscando a voz que lhe chamava. Seu medo era agora o de que estivesse finalmente surtado de ciúmes... E se a voz fosse de dentro dele? E se sua paranoia houvesse chegado ao ápice?
Mas aos poucos distinguiu da onde vinha aquela voz que mais parecia um ruído, como o som que as copas das arvores fazem ao receber os golpes das ventanias... Ela vinha de um beco próximo a ele ... Decidido a saber se aquilo era real ou parte de sua própria loucura ele aproximou se e entrou no beco.
A cada passo que dava ouvia a voz que inicialmente era baixa e quase imperceptível aumentar sua frequência e próximo ao fim do beco ela já tomava forma de um coro em uníssono, como se uma floresta inteira recebesse o golpes violentos de um vendaval e no meu disso surgia cada vez mais perceptível o clamor de seu nome.
Ao distinguiu dentre a escuridão um olhar... Dois olhos a fitar-lhe da forma mais invasiva imaginável como se o consumissem. Estremeceu, parou e quis fugir...
Mas era o fim…

. . .

E depois de uma longa caminhada em meio a a roseiras, espinhos e corredores que lhe traziam cada vez mais terríveis lembranças ele se viu diante de uma grande e linda porta. Ali estava um líder da Revolução, seu nome: Ravena