Natal na Barca (Reconto)
Não quero lembrar aqui porque me encontrava naquela barca, mas devo. Só sei que ao redor, tudo era silêncio e treva - e eu me sentia bem naquela solidão. Tudo como de costume. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros – eu não conto. Uma lanterna os iluminava com sua luz vacilante, um velho, uma mulher com uma criança de colo e uma moça com ar de esnobe. E eu tinha um serviço a fazer.
O velho se encontrava embriagado, conversando com o vento, em estado deplorável. Vestia um casaco velho e encardido, tinha uma barba mal cuidada e parecia ser cego de um olho. No centro, a mulher apertava a criança embrulhada num pano cinzento. Aparentava menos de trinta anos, talvez vinte e cinco, pálida como um anjo, olhos verdes e brilhantes, como pérolas, porém, sombria, graças ao longo manto negro que lhe cobria a cabeça. O filho ainda estava para completar um ano e começava a criar feições mais elaboradas. Os cabelos ralos e negros, boca miúda e pele branca, como a mãe. Os olhos castanhos e as sobrancelhas constantemente franzidas lembravam, cada vez mais, ao pai. A moça esnobe era quem parecia melhor de vida daquele grupo, entretanto, também parecia a mais insatisfeita consigo mesma. Vestia um blazer vermelho, usava cabelos acima dos ombros, loiros, e parecia se esforçar para ignorar o restante da barca.
Sentei ao lado da mulher com a criança e fiquei a observá-la. Ela estava aflita. Não tinha como não estar, pois seu filho estava doente. Mal havia chegado a esse mundo. Tão pequeno e tão frágil. A mãe mantinha-se firme, apesar de tudo. Realmente, uma pessoa forte. Via seu filho definhar e mantinha a serenidade. Sei que ela chorou na noite anterior, mães sempre choram – é quase um anúncio. O filho me olhou. Às vezes, crianças e idosos nos enxergam, pois estão próximos da passagem. Não sei se o filho sabe por que estou aqui, mas ele não pareceu se incomodar. Ao invés disso, se aconchegou no colo da mãe e cochilou. Todos acham que dormindo é melhor. Talvez seja.
As duas mulheres começaram a conversar. Eu observei. Devo confessar que os mortais me fascinam. Não é nenhum sadismo de estudar as sensações de pessoas que estão prestes a perder um filho, de forma alguma. É realmente curiosidade. Elas começaram com uma conversa vazia, sobre o rio o qual a barca atravessava, sua temperatura e cor e, logo em seguida, falaram da criança. A mãe conta sobre a febre, a moça pergunta se é o caçula e a outra conta que é o único, pois o primogênito já havia partido.
Lembro-me dele. Fiquei feliz de não tê-lo conduzido, mas soube do caso. Levar primogênitos é o pior tipo de serviço. Os pais criam muitas expectativas em torno do primeiro filho, os imaginam quando adultos, imaginam a faculdade, cobram mais deles, exigem mais, responsabilizam mais. A criança brincava de mágico, a mãe e o pai assistiam, até que ela anunciou vôo e se jogou do muro. Logo quando aterrissou, um condutor já o aguardava. Conversou e o guiou. Os pais se desesperaram, mas não havia nada a ser feito. Acredito que o meu colega de trabalho – se é que posso chamá-lo assim - apenas levou a criança e não olhou para trás. Ninguém que leva uma criança consegue olhar para trás.
Acariciei o pouco cabelo do menino no colo da mãe, ele choramingou e ela o ninou. Eles sempre se incomodam um pouco ao primeiro contato. Apesar de sermos feitos de luz, nós, condutores, somos gelados. Por onde passamos, pessoas se encolhem tremendo ou abraçam os próprios casacos tentando se aquecer. O bêbado culpou o seu interlocutor inexistente pelo frio.
Olhei para as duas novamente. Elas conversavam sobre o ex-marido da mãe da criança. Um homem simplório. Reencontrou uma antiga namorada e ficou fazendo piadas, dizendo que ela havia ficado feia, mas só para tentar convencer a si mesmo de que não tinha interesse. Como o previsível, na primeira oportunidade, esqueceu sua esposa, seu bebê e nem sequer teve consideração pelo filho falecido e fugiu, sem nenhuma dignidade. A mulher não desejava nenhum mal a ele, ao invés disso, se focou em seu menino - o que foi bom para ela, evitou que entrasse em crise. Mas esse homem não é assunto meu e nem será por muito tempo. Ouvi dizer que viverá muito ainda. Pena que não posso dizer o mesmo pela sua nova esposa.
Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Identifiquei-me um pouco com a mãe da criança. Presenciou tantas desgraças e se manteve firme. Eu conduzo almas e também me mantenho firme. Não é apatia e nem indiferença. Talvez seja praticidade. Não podemos mudar as desgraças, somos obrigados a fazer parte delas, então, por que se desesperar? Por que se entregar à depressão? Seria ainda pior. A diferença é que ela tem a opção, eu não.
E então, elas começaram a falar sobre fé. A mãe contou que teve um sonho. Sonhou com Deus e viu seu filho falecido brincando com o Menino Jesus, no paraíso. Depois de tal sonho, sua fé ficou mais forte do que nunca. De fato, foi só um sonho. Ela não teve nenhum contato com nada divino ou superior, apenas sonhou. Se isso foi bom para ela, melhor assim. Mortais precisam de algo para se manterem focados e ela tem sua fé. Não devo recriminá-la ou desprezá-la. Na verdade, ela deveria ser um exemplo para os outros mortais. Um exemplo trágico, mas um bom exemplo.
Enfim, chegou a hora. Preciso levá-lo. Peguei-o no colo com cuidado, acomodei-o, falei algumas palavras de reconforto e fiquei de pé. A mulher esnobe olhou para o corpo do menino no colo da mãe e se inquietou. Eu sentiria pena, se compreendesse esse sentimento. Um serviço é um serviço, existe um motivo para tudo e não cabe nem a nós, seres celestes, compreender o plano Dele, quanto menos aos mortais. Caminhei para o fundo da barca levando a criança comigo. Queria entregá-la à luz logo e terminar o meu trabalho pelo dia.
- Você vai levar a criança, não vai, seu porco? Vocês são uns malditos... Todos são! ... Dizem que cuidam de nós... Não cuidam nada! Não dão a mínima! ... É só um bebê! Por que vai levar um bebê? Leva a mim, seu maldito... Por que o bebê?
O bêbado falava comigo. O tempo todo, o bêbado estava falando comigo. Ele gaguejava, mal estava consciente, às vezes roncava e voltava a resmungar. Fiquei ouvindo o que ele dizia. Perdia muito tempo com impropérios, mas ele tinha alguma razão. Nunca questionei o meu trabalho, quase nenhum condutor questiona, mas o idoso me fez refletir. Olhei para ele, olhei para a criança, olhei para a mãe. Eu não compreendo os planos Dele. E por um instante, também não me importei com plano nenhum. O velho caiu no sono, a moça esnobe já estava de pé, pronta para sair correndo da barca. A mãe começava a notar o filho em seu colo.
Devolvi a criança.
O bebê acordou no colo da mãe e ela sorriu. A moça esnobe suspirou em alívio. Mãe e filho foram embora da barca, parecendo mais vivos do que nunca. O velho teve que ser acordado pelo bilheteiro. A esnobe foi por ultimo. Eu observei. Pude perceber algo em comum nos quatro tripulantes daquela barca: todos valorizam a vida, cada um da sua forma. Fascinante.
Mortais são mesmo fascinantes.