No País das Anomalias
Vestido azul e avental branco. Cabelos loiros cor de ouro e cacheados. Olhos redondos amendoados. Uma princesa. Uma linda e pequena princesinha no purgatório.
Ela andou devagar pelo túnel rochoso. Um passo depois do outro, sem hesitar. No seu rosto, curiosidade e confusão, mas nada de inocência. Ao sair do corredor de pedra, ela me viu. Ficou me encarando por um tempo com seu olhar sempre esbugalhado e estendeu o dedo, tentando acariciar meu queixo. Eu me afastei. Apesar da curiosidade ser recíproca, eu apenas observava. Ela, por sua vez, não podia apenas observar. Tinha que andar. Tinha que caminhar, ouvir, ver e sentir todas as maravilhas daquele país.
E eu já sabia que a Rainha iria adorar conhecê-la.
Ela andou pelo bosque, olhando por todos os lados, prestando atenção em tudo. Passou pelas árvores de carne rígida e arbustos de gesso em pó, chegou até o pequeno parque, mas não pareceu querer brincar na gangorra de pessoas empaladas, nem no balanço de braços enroscados e nem no escorrega de cabelo crespo e tendões entrelaçados. Ela olhou tudo de perto, chegando a menos de um palmo de distância do seu rosto, viu os brinquedos pulsarem e respirarem, ouviu seus suaves gemidos de agonia, mas não se assustou. Pareceu entender que ninguém estava lá sem propósito. Pareceu entender que tudo ali fazia sentido. Ela prosseguiu pela trilha de cacos de vidro e eu senti um odor de fumaça. O odor doce de um cachimbo.
Enfiei-me entre os arbustos, passei pelas flores de caules de arame farpado com meu corpo esguio e cheguei à minúscula clareira da onde vinha a fumaça. Um cachimbo de madeira estava sendo revirado e consumido por um bolo de vermes. Elas se aglomeravam parecendo ser um único ser disforme, se enroscavam umas nas outras com seus corpos segmentados, se escalavam com suas centenas de patinhas e se lambuzavam com o próprio excremento, lubrificante e imundice. O cachimbo parecia ser tragado pelo bolo, soltando seu odor em pulsos. Uma das larvas rastejou até o meu pé e cochichou algo inaudível. Aproximei-me para ouvir, mas seu corpo diminuto não permitia nenhum som muito alto. Quase me encostei ao chão, cobri a larva com meu ouvido pontiagudo e ela disse:
- Está na hora do chá.
Corri de volta ao bosque, fui pela mesma trilha que a princesa havia seguido e cheguei ao castelo dele. A muralha era feita de livros grossos e empoeirados empilhados uns nos outros, sem cimento, sempre ameaçando desmoronar ao toque. O castelo em si tinha quatro torres, às vezes cinco, às vezes duas, às vezes nove e às vezes nenhuma. Cada uma era feita de um material diferente que também mudava de tempos em tempos. Uma torre era feita de couro reforçado, outra de madeira podre empesteada de fungos e vermes, outra era feita de pedras preciosas raras e cintilantes, outra era feita de unhas, outra de saliva e assim por diante. O portão aberto da muralha acompanhava uma placa que dizia “siga o tapete vermelho”. Tal tapete era, na verdade, um caminho feito por sangue arrastado que levava até o castelo e continuava dentro dele. Obedeci o aviso, entrei no jardim e vi os hóspedes e os servos do lorde.
Um casal de meia idade estava sentado num banco, de mãos dadas, olhando o céu, inexpressivos. Observei um pouco mais e vi que estavam algemados ao banco. Um obeso pendulava numa cadeira de balanço com suas banhas pulando pelas beiradas com os pés acorrentados ao chão. Uma moça de beleza ímpar caminhava pelo jardim, colhendo flores e inalando os seus perfumes. Ela se virou de costas e pude ver a parte de trás do seu crânio aberta e vazia por dentro. Uma serva vestida como uma boneca e com uma máscara sorridente de porcelana regava o jardim com ácido, fazendo a grama chiar e se esburacar. Um servo nu com o corpo cheio de queimaduras, inflamações, pus e flagelos, também com máscara de porcelana, estava sentado ao lado do “tapete”, com um balde e um pincel, reforçando os trechos coagulados.
Fui ao castelo. Os corredores eram feitos de pedra cinzenta, iluminados por lustres feitos de cinzas e o piso era um rouxinol de palavras que dizia algo a cada passo. Enquanto passeava pelo labirinto, o piso rangia coisas como “alívio”, “cardeal”, “manteiga”, “coturno”, “lepra”, “genocídio”, “desjejum”, “tremedeira”, “assobio”, “agouro”, “ermo”, “dente”, “motivação” e “pus”. Entre um corredor e outro, vi uma porta com um cabideira ao lado, recheada de chapéus, gorros e cartolas. Ao que tudo indicava, a favorita dele, que sempre ficava no topo, estava em uso. Ouvi uma gargalhada e entrei para a sala de chá.
O interior era de metal enferrujado e imundo, todo cinza com borrões e manchas negras salpicadas. Enfeitando os arredores, corpos humanos presos de ponta-cabeça em estruturas de ferro. A pele dos moribundos era incolor e repleta de sangue seco que escorria pelas pernas, passando pelo tórax, indo pingar pelos ouvidos. Em seus braços, barrigas, pernas e costas, barbantes grossos mostravam cicatrizes costuradas de forma insalubre. Os rostos eram irrelevantes, pois não possuíam boca, nariz e nem olhos – todos arrancados e com a pele costurada por cima. E o Chapeleiro gargalhava. Servia óleo de baleia nas xícaras e as empurrava para a princesa enquanto limpava as lagrimas dos risos, ajeitava sua cartola vermelha e pomposa em sua cabeça e exibia seu sorriso amarelo e acavalado. Rodeei a sala, tentando ver a mesa. A louça era impecável: branca e delicada, parecia ser polida com esmero todos os dias. Para o banquete, pão com sujeira de nariz, biscoito feito de poeira e urina e dedos humanos. A princesinha observava a mesa com asco, mas seu olhar se desviou para o anfitrião quando, repentinamente, ele jogou metade da mesa para longe com um safanão, espatifando sua louça perfeita nos corpos e nas paredes enquanto berrava e se esgoelava. Seu pescoço ficara vermelho e suas veias estufaram. No meio dos gritos, ele cuspia e babava, apontando o dedo esquelético e torto para o rosto de sua hóspede que olhava sem alterar sua expressão, como quem lida com um louco. Retirei-me da sala ao som de berros e de louça estourando. Dei alguns passos pelo corredor, olhei para trás uma ultima vez e vi o Chapeleiro de joelhos no chão, com o corpo jogado no colo da princesa, chorando aos prantos. Seu rosto lavado em lágrimas e as mãos agarrando o vestido azul, com a mesma histeria de sempre. Enquanto ele se lamentava, a princesa acariciava o seu cabelo da nuca.
Dobrei o corredor, o rouxinol rangeu “atrasado” e eu vi uma pequena figura correndo como uma flecha. Sem pensar, disparei em sua direção. De longe, só pude ver uma forma aparentemente branca salteando de forma extraordinária para alguma direção. Saímos pelos fundos do castelo em uma perseguição espontânea de pressa e curiosidade. Enquanto corríamos, ela entrou em uma selva fechada de árvores de sentimentos. Pulei pelas raízes e me esgueirei entre os troncos, seguindo seja lá o que fosse. No caminho, uma árvore de covardia saiu da minha direção, se sentindo julgada e culpada, tentando entrar na terra e se unir à própria raiz de tanto medo. Uma árvore de inveja enroscava seus galhos nas suas irmãs e as puxava para baixo, tentando se erguer acima de todas, mas sem nunca deixar de ser pequena, apenas atrapalhando as outras ao seu redor. Uma árvore de arrogância morria, pois acreditava não precisar de suas raízes para crescer e começava a adoecer, recusando a ajuda da terra ou da chuva e até do sol para se reerguer. Uma árvore de sadismo enfiava as suas raízes por dentro das outras, crescendo e causando incômodo e agonia, apontando suas extremidades para fora das suas vítimas, exibindo sua crueldade. Depois de tanta correria, enfim, minha perseguida chegou à sua toca. Ofegante, me aproximei e pude vê-la: uma pequena lebre de olhos vermelhos tremia por inteiro. Senti um fedor de excremento, pensei que fosse a selva ao nosso redor, mas não, o fedor vinha dela. Suas patas traseiras estavam lambuzadas de fezes e urina. A lebre parecia doente de tão agitado que estava. Olhei nos seus olhos e descobri o nome de sua doença: pavor. Ela estava acuada dentro da própria casa, rezando para si mesma, implorando por clemência. Aflição, terror e desespero eram a essência daquele pobre e ridículo ser. Enquanto rezava, ela gaguejou para mim:
- A... A... A,a,a,a,a,a,a Rainha a encontrou! A Rainha está com ela!
E tudo fez sentido. Ela havia corrido como se fosse tirar a mãe da forca. Mas não havia mãe, e sim a princesinha. E também não havia forca.
Havia a guilhotina.
Corri para a capital. Atravessei meio país de distância, passei por bosques de ossos, vilarejos de aflições, fazendas de réquiens e cheguei à cidade. Para a sorte da minha curiosidade, o espetáculo estava acontecendo em praça pública. O país inteiro estava reunido para ver. Uma multidão! O palco era uma imensa língua de carne cavernosa cheia de poros ásperos. Em seu centro, uma guilhotina. Presa ao instrumento de execução, a pequena princesa.
E então, veio a Rainha.
Com o seu mais belo vestido quase rasgando de tanta banha que segurava, uma mão gorducha com unhas sujas e compridas abanando um leque feito de pele de elfo e a outra brincando com dois olhos como bolinhas de massagem. Seu rosto se esparramava em direção aos ombros, escondendo o seu pescoço. Seu nariz se contorcia, disforme, em uma direção indefinida. Seus lábios rachados eram maquiados com um vermelho que só uma déspota podia ter e seus olhos eram pura maldade. Ela acariciou as costas da princesinha e começou o seu discurso.
Enquanto a rainha falava, eu senti um pequeno tremelique no canto da minha boca. Ela falou e todos ouviam. Ela gritou e todos saudaram.
A princesa teria o castigo que merecia.
A monarca largou suas bolinhas de massagem no chão, pisou em cima, abriu suas garras e as encravou nas costas da princesa. Minha boca se contraiu involuntariamente, num espasmo. Entre os berros da jovem, o antebraço da Rainha pulsou, como se extraísse algo, fazendo-a gemer em êxtase. Enquanto tinha seu corpo violado, os cabelos da princesa mudaram de dourado para um grisalho sem vida e esburacado. Seu rosto de pura dor e lagrimas murchou e seus dentes despencaram. Sua pele secou e sua carne se retraiu até parecer sobrar apenas ossos e seu vestido ficar largo em seu corpo. A princesinha definhou. Tudo o que ela tinha fora usurpado. Sua beleza, sua juventude, suas virtudes.
E a Rainha estava mais altiva do que nunca. Possuía um novo corpo: esbelto, cheio de curvas e voluptuoso. Meio século de vida mais jovem, pelo menos. Seu antigo vestido não lhe servia mais e ela não se intimidou em exibir seu novo corpo escultural para seu povo. Despiu-se, estalou um par de dedos com firmeza e cartas apareceram correndo, trazendo um novo vestido, feito sob medida previamente, apenas esperando por aquela ocasião e o vestiu. Suas cores favoritas: negro e vermelho. Cintura e quadril estreitos, para ressaltar sua beleza pessoal, aberto na lateral para exibir suas curvas, com manga e gola alta. No decote, uma irônica borda em formato de coração.
A déspota só não havia roubado a doçura da princesa. Esta qualidade, ela deixou escorrer junto das lágrimas, do sangue, dos dentes e dos cabelos que sujavam a língua-palco. A rainha era, mais do que nunca, uma deusa viva: bela, amada e cruel ao extremo. E a princesinha era uma megera que merecia a execução, de tão amarga que havia se tornado. Todos os sentimentos negativos que um humano poderia sentir, ela sentia naquele momento e todos focados na Rainha. O menor deles era o ódio.
Minha boca enrijeceu e meus dentes pareciam implorar para se exibirem.
Com um sorriso debochado, a belíssima Rainha deu a sua ordem tão esperada:
- Cortem a cabeça dela!
E foi obedecida.
A lâmina desceu no pescoço da princesa, mas estava cega. Eu engasguei contendo a gargalhada. A guilhotina teve que ser erguida e solta mais duas vezes até que a cabeça, que um dia havia sido loira, despencasse. Meus dentes se debateram dentro de mim, clamando para serem enormes e espalhafatosos.
O povo aclamou e eu não pude me conter. Meus lábios se abriram, exibindo todas as minhas presas, imensas e frenéticas.
A princesa morreu, a rainha prevaleceu e eu sorri.