O Problema do Horror em Mago: O Despertar. Parte 2: O Medo do Sobrenatural.

por Fausto_Veloso em

A ideia original era escrever um texto que suprisse de alguma forma a falta de medo que senti ao ler o livro básico de Mago: O Despertar (MoD). Sentir esse medo durante a leitura de um livro da linha conhecida como novo Mundo das Trevas (nMdT) é importante porque é justamente nessas situações que você imagina um punhado de ganchos para histórias incríveis e como dar clima, tom, para elas. Só que a primeira parte do tema, o medo vivido por nós, seres humanos, tornou-se um texto longo e tive de continuar num outro. Nesta segunda parte, o problema a ser tratado é: por que o sobrenatural amedronta? Acredito que a resposta dessa pergunta, essa informação, pode nos mostrar como melhor manipular o medo alheio em nossas histórias, a favor da diversão. Vamos a ela.

Você está sentado em sua casa numa noite qualquer quando seu telefone toca, e é sua mãe do outro lado da linha. Ela diz que ficou muito contente com a visita que você fez a ela durante a tarde, mas que você esqueceu sua blusa de frio lá, e que ela ficaria muito feliz se voltasse qualquer dia desses. Mas você não conta a ela que ficou a tarde toda em casa, sozinho...

Assustador não é? E sabe por quê? Porque é algo impossível de acontecer, mas aconteceu. É algo que teoricamente não deveria ter acontecido. Como você visitou sua mãe se não saiu de casa? Será que ela está ficando louca? Ela que sempre foi um exemplo de pessoa equilibrada...

Isso é o sobrenatural. Como o próprio nome já diz, é algo que vai além do natural. Mas o que é o natural? Ora, o natural é o natural. É o... difícil de responder, concordo. Vamos pensar. O natural é o comum, ordinário, aquilo que pertence ao dia a dia. É natural, por exemplo, que você esteja respirando conforme leia este texto. Da mesma forma que foi natural quando o computador ligou quando você apertou o botão de ligar. Praticamente foi natural tudo aquilo que fizemos por nossa vida.

A física pode nos ajudar a compreender o que é natural. Hoje sabemos que é uma estrela é algo natural. A química nos ajuda compreender o que é natural. Sabemos também porque um ácido fere a pele das pessoas. A biologia pode nos ajudar a compreender o que é natural. É naturalíssimo que coelhos tenham olhos avermelhados. Em resumo, nossa ciência nos ajuda a compreender o que é natural.

Mas não só a ciência. A vida diária também nos ensina o que é natural. As coisas e as pessoas com as quais nos relacionamos no dia a dia tornam-se naturais na medida em que se tornam costumeiras. Essa é a regra: o costume, o hábito, faz com que naturalizemos as coisas. É perfeitamente natural eu girar a maçaneta e a porta se abrir, da mesma forma que é natural eu pegar a garrafa de café e sentir o peso (ou a falta dele) para saber se tem café lá dentro.



Cientificamente foi constatado que nosso cérebro funciona de maneira a guardar uma informação apenas nas primeiras vezes que entramos em contato com ela, contudo na medida em que passamos a repetir essa mesma ação, seria um desperdício de espaço continuar gravando-a. Provavelmente você se lembrará da primeira vez que aprendeu a andar de bicicleta, mas não se lembrará de todas as outras em que andou. Duvido que se lembre, por exemplo, do que comeu no almoço da quarta-feira da semana passada, ou do cheiro do sabonete com que tomou banho um mês atrás.

A gente tende a não se lembrar do que é repetitivo, costumeiro, cotidiano, simplesmente por economia neuronal (é assustador pensar que não lembramos de praticamente 90% de tudo que fizemos durante toda a nossa vida). E não lembramos também porque o que é costumeiro, normal, natural, é seguro, pois funciona normalmente. Enquanto o chuveiro da sua casa funcionar normalmente, você nem vai se lembrar dele ao entrar no banho.

Basta apenas que uma coisa nova apareça e nosso cérebro é obrigado a trabalhar. Basta que o que é costumeiro, normal, natural, mude, e nos vemos numa situação em que temos de pensar, de reagir com mais dedicação. São nessas situações que nossos hábitos não são muito úteis, e temos de improvisar para superar o problema, o entrave, aquilo que nos impede de continuar vivendo tranquilamente. O chuveiro quebra e você tem de pensar em um jeito de consertá-lo.

Quando uma situação normal muda, somos obrigados a encontrar um jeito de resolvê-la ou contorná-la, e, para isso, contamos com outras situações também muito normais, muito naturais. Simplesmente resolver um problema comum com uma solução apropriada, mas também comum, não é algo sobrenatural. É verdade que essas mudanças inesperadas no cotidiano nos deixam preocupados, em maior ou menor grau, justamente porque elas acabam com o nosso conforto. O que é normal e comum, natural, é confortável.

Agora, citando livremente uma das minhas frases favoritas em Batman – O Cavaleiro das Trevas (filme): tudo o que você precisa é perturbar a ordem estabelecida e todo o sistema irá pro escambau (seja lá onde isso for). Basta apenas que se introduza um pouquinho de caos, de irracionalidade, basta apenas perturbar a ordem natural com que as coisas acontecem, e puxamos o tapete da segurança que fica costumeiramente debaixo dos nossos pés.

O comum, o normal, o natural, baseia-se principalmente naquilo que é racional. Em silogismos básicos:

  • Todo chuveiro jorra água quando é ligado.
  • Se você liga seu chuveiro,
  • Logo jorra água dele.

Chega a ser idiota de tão óbvio que é. Mas tudo o que fazemos está baseado nessa lógica básica. O problema comum acontece quando essa lógica não acontece:

  • Todo chuveiro escorre água quando é ligado;
  • Você liga seu chuveiro,
  • Não sai água dele.

É esse o tipo de situação que nos tira nosso conforto. Só que é o tipo de situação perfeitamente solucionável, e, por mais que nos tire de nossa zona de conforto, será fácil dar um jeito para voltar a ela. Mas se perturbarmos ainda mais essa lógica, aí sim chegamos ao ponto em questão:

  • Todo chuveiro escorre água quando é ligado;
  • Você NÃO ligou seu chuveiro...
  • Mas ele está escorrendo sangue por ele.

Como dar um jeito nessa situação? Ela tende ser perturbadora na medida em que manda pro brejo aquelas coisas que até então julgávamos estarem normais. “Como assim o chuveiro que eu nem liguei está escorrendo sangue?! Como vou fazer para parar com isso? Deus!”. A pessoa em questão não foi apenas tirada de sua zona de conforto, ela foi catapultada de lá e nem imagina como conseguirá retornar. Esse é o medo que o sobrenatural causa. Isso é a chave daquilo que falamos frequentemente: o desconhecido nos amedronta.

 Achei simplesmente fantástico como isso é apresentado no livro básico do nMdT. Aquela história do homem mariposa e todas as outras no livro são exemplos fantásticos de como o sobrenatural funciona numa história. E todos nós sabemos que é justamente o elemento sobrenatural o que mais torna esse jogo interessante. Se tirarmos esse elemento estaríamos jogando histórias de pessoas comuns, e garanto que não teria graça alguma (tal como jogar The Sims). Portanto, saber como lidar com o sobrenatural é algo fundamental para a diversão enquanto estiver jogando Storytelling. E já que estamos falando disso, acredito que outro fator que atrai muito no jogo é que você não está apenas encarando o sobrenatural... você pode, a qualquer momento, ser parte dele.

Como lidar com o sobrenatural na sua história?

O Curinga já nos deu a primeira e principal dica: introduza um pouco de caos na ordem estabelecida. Primeiro deixe que essa ordem seja criada. Narre aos personagens cenas em que eles estão vivendo suas vidas cotidianas, conversando com as pessoas com quem convivem e etc. isso também é importante, como afirmei no artigo anterior, pois possibilita que eles criem laços afetivos com esse ambiente, com essas pessoas. Agora vemos que isso também é importante para que se acostumem como as coisas funcionam. Não pule cenas em que eles fazem compras, passeiam, brigam com um familiar e coisas do tipo. Ao menos não durante o início da crônica.

Então, quando menos esperarem, jogue algum aspecto da situação comum no liquidificador. Pegue algum aspecto da vida cotidiana dele, destrinche seus componentes, reorganize-os de uma forma completamente diferente e jogue fora o que sobrar. Mais um exemplo para ilustrar melhor:

“Você está dirigindo, retornando para casa com sua família depois de um longo final de semana na praia. Está cansado, pois foi uma baita de uma farra, regada a cerveja e muito futebol de areia. Até as crianças estão dormindo de tão cansadas. Também pudera, o tanto que elas brincaram no mar durante esses 2 dias... sua esposa também está dormindo, igualmente cansada. Ela deve ter se divertido tanto quanto você, e, a julgar pelo que você fez com ela debaixo d’água enquanto as crianças não olhavam... bem, ela deve ter se divertido muito também. Está escuro nesta noite, nublado. Que bom que não choveu em momento algum durante o final de semana, e São Pedro deixou tudo para a volta pra casa. Logo começa a chover. Um baita de um temporal. Você reduz a velocidade para evitar acidentes. Chuvas assim acabam com a visibilidade, e te deixam um pouco mais nervoso. Todos aqueles acidentes que você já viu acontecer quando chove tanto assim. Mas indo devagar não tem tanto problema. De repente você gira o volante com força para o lado, o carro derrapa, capota, tudo gira, inclusive sua esposa e seus dois filhos. Você ainda estava acordado quando o carro parou, todo destruído do outro lado da pista, no meio do mato. Foi tudo muito rápido, e você sente o sangue quente escorrendo pela sua cabeça. Que porra foi aquela que você viu atravessando a pista? Você ouve barulhos abafados lá fora. Que porra é essa que está vindo na direção do carro?”


No exemplo acima é fácil perceber a situação comum, o personagem se apegando a ela, através das lembranças de seu feriado, então o comum é levemente perturbado com a chuva. A situação fica menos segura. E, no fim, a segurança é mandada pro brejo com a coisa que o fez desviar e causou o acidente.

É claro que existem vários meios de adicionar eventos sobrenaturais a uma história, e caberá a cada narrador e jogador fazerem isso, limitando-se apenas à suas próprias imaginações. Seria normal que a coisa que causou o acidente fosse um cervo; não seria normal se fosse um urso polar (quem lembra de Lost?); e seria sobrenatural se a coisa fosse um lobisomem, por exemplo.

Aquilo que é sobrenatural já amedronta por si, na medida em que tira nossa segurança e até dificulta nossos meios de obtê-la novamente. Mas será que tem um jeito de tornar o sobrenatural ainda mais amedrontador? Claro! Como escrevi no texto precedente, o terror pode ser dividido em horror (medo do que vemos) e suspense (medo do que não vemos). Basta misturar esses dois conceitos com eventos sobrenaturais e pronto, fica ainda melhor.

O exemplo do acidente do carro acima serve como exemplo de suspense sobrenatural na medida em que relata uma situação em que se sente medo de algo que não se viu. O que segue exemplifica o horror sobrenatural:

“O som da coisa caminhando rumo ao carro parou há alguns minutos. Seu corpo está todo doendo, e você nem faz ideia de quantos ossos deve ter quebrado, mas o que mais te preocupa sãs as crianças e sua esposa. Você não ouviu nenhum som deles até agora. Não ouviu nenhum movimento. Talvez seja a chuva. Reze para que estejam apenas desmaiados. Reze para que seja apenas a chuva. Com muito esforço você consegue se arrastar para fora do carro. Está tudo escuro lá fora, e tudo o que consegue ouvir é o som da água caindo. Está mais fácil respirar agora que se livrou do cinto de segurança e dos destroços. Você sente seu celular no bolso, e o pega. Ele possui uma luz fraca mas é a única que você tem. Através da porta do motorista, aberta e de cabeça para baixo, você ilumina o interior do carro e sente o vômito subindo pela sua garganta quando vê a cena: o airbag não abriu e a cabeça de sua esposa foi arremessada contra o que sobrou do para-brisa, cortando-a no meio, espirrando sangue por todo lado, junto com pedaços do cérebro dela. Você vomita com desespero e tristeza. Mas e as crianças? Não consegue vê-las. Teriam fugido? Contornando o carro, lentamente, e tentando iluminar a escuridão com o celular, você as encontra. Mas era melhor não ter encontrado: metade do seu filho está inteira, enquanto a outra metade está sendo mastigada pelos milhares de dentes que a coisa tem em seu peito, enquanto as línguas que brotam das patas da criatura sugam o sangue, fazendo um som obsceno de sucção, sem deixar que escorra nenhuma gota, deixando aquela baba visguenta por todo o corpo do menino. Você vomita de novo.”

Percebam que o horror comum está na cena da esposa, enquanto o horror sobrenatural está na cena com a criatura. Talvez eu não tenha descrito bem a situação, mas o exemplo já dá uma ideia de como é que se faz. Quanto mais nojento, quanto mais bizarro, desconfortante e ameaçador, quanto mais a cena nos deixar com uma sensação de impotência, de que somos muito fracos diante do que vemos, que não teremos salvação nenhuma, mais forte será o sentimento de horror.

 

Bem, mais uma vez acabei me estendendo demais. Espero conseguir, no próximo texto, falar sobre como a feitiçaria se relaciona com o sobrenatural e como isso nos causa medo, bem como fornecer algumas dicas de como aplicar esse em Mago: O Despertar. Pelo que estou vendo, talvez estes textos sejam úteis não apenas para os jogadores de MoD, mas para qualquer um. Ou não.