O Problema do Horror em Mago: O Despertar. Parte 3: Quem Tem Medo de Bruxa?
Para começar, vamos analisar o medo que o jogador sente ou deveria sentir pela feitiçaria.
Considerando que vivemos todos nós na mesma sociedade, e que compartilhamos características culturais dessa sociedade, o motivo mais básico porque a feitiçaria é assustadora é porque ela é proibida. Bem, foi assim que aprendemos, não foi? Ao menos a maioria de nós. É facilmente perceptível que a cultura judaico/cristã é a principal influência da cultura comum que a sociedade ocidental partilha. Dessa forma, na nossa infância, durante nossa educação, aprendemos várias vezes que fazer magia é algo que Deus condena, e todos os feiticeiros e bruxas vão para o inferno sofrer pela eternidade. Está na Bíblia Sagrada.
Agora, lembra que no primeiro texto eu mostrei por que nossos medos infantis são mais intensos e por que frequentemente eles nos acompanham até nossa vida adulta? Se não se lembra, faça o favor de voltar lá e ler o artigo mais uma vez. Se você é um desses que foi criado rigorosamente pelos preceitos da nossa cultura, então ao menos um pouco de medo já deve ter sentido ao se falar em feitiçaria, quando alguém mencionou que aquela velha sabe uma reza que faz qualquer um cair doente.
E não precisa ter sido religioso para crescer acreditando que feitiçaria é algo ruim. Basta ter assistido aquelas dezenas de filmes infantis mostrando a velha bruxa má fazendo suas macumbas contra a mocinha. Ora, uma criança que assiste a esses filmes, ou ouve essas histórias, facilmente associa a feitiçaria com a maldade, com a feiura (outra coisa que ninguém quer), com a velhice, e com o castigo que a bruxa má sempre recebe no final da história.
Nossa cultura ocidental está repleta de tais exemplos que querem dizer basicamente que feitiçaria é uma coisa ruim, é maligna, e que as práticas religiosas diferentes da predominante são coisas do diabo. A humanidade tem uma vasta história mostrando isso, principalmente com a Inquisição e os Julgamentos em Salem.
O problema é que conforme crescemos e passamos a conhecer mais e melhor o mundo, a sociedade, e a vida, essas coisas perdem o medo que exerciam sobre nós durante nossa infância. Conforme nos tornamos mais tolerantes, a religião alheia não se torna tão assustadora/ameaçadora assim, e isso pode ser um problema para as histórias de MoD. Isso tudo se torna um problema para que os jogadores sintam medo da magia. Ainda mais quando no grupo existem aquelas pessoas que não cresceram aprendendo as coisas que a cultura judaico/cristã nos ensina, e nem assistiram aqueles filmes em que a bruxa má se ferra (ainda mais as crianças desta última década que acompanharam avidamente a história do carismático Harry Potter). Como fazer para essas exceções à nossa regra sentirem medo do misticismo?
Se pensarmos bem, a feitiçaria deveria meter medo por si só, sem precisar de apoio cultural algum, simplesmente pelo fato de ela ser sobrenatural. Quer um exemplo rápido? Abram o livro básico na página 211 (edição brasileira), agora lembrem da cena em que vocês terminaram com uma namorada. Imaginem se ela soubesse um daqueles feitiços dessa página... Tem certeza que ainda não está com medo?
Feitiçaria é algo sobrenatural por si, e isso significa que magia é algo irracional, ilógico, e muito perigoso pois por mais que os magos tentem, uma hora ou outra ela não poderá ser controlada, ela não obedecerá as regras, ela será caótica, e, quando isso acontecer, o primeiro a se ferrar será o mago, ou as pessoas que estão perto dele. Volte ao texto anterior sobre o sobrenatural e o releia. A feitiçaria se encaixa em tudo aquilo ali.
Outra recomendação que faço é que, independentemente de suas escolhas religiosas, leiam alguns textos sobre tradições místicas (a internet está cheia deles). Conhecendo um pouco mais sobre como essas tradições lidam com magia vocês poderão sentir melhor o clima levemente amedrontador que a própria magia tem na realidade, sem falar que encontrarão vários exemplos de acontecimentos sobrenaturais místicos para usar em suas crônicas. Fico me lembrando da primeira vez que li como um mago da tradição hermética faz uma invocação de uma entidade de outro mundo. Foi assustador. E os jogadores para quem descrevi uma cena parecida numa história de MoD confirmaram que o negócio é de arrepiar mesmo.
Abre parêntesis. Só lembrando que não estou tentando induzir ninguém a nada, ainda menos a práticas religiosas ou mágicas, e se lendo este texto você está pensando que tudo isso sobre feitiçaria é proibido e que ninguém deveria lidar com essas coisas devido a qualquer punição divina, bem, é melhor parar de ler e de jogar MoD também, ok? De preferência procure um psicoterapeuta. Ou um psiquiatra... Fecha parêntesis.
Mas e se os jogadores ainda assim não temem o que é místico? Ora, lembra-se de que grande parte do que tememos é aprendido? Ensine-os a ter medo da magia! Faça como indicado no primeiro artigo. Escolha aleatoriamente um momento em que eles conjuram algo e pimba! Adicione ali algo que eles temem (nem que seja um barulho bem alto). O próprio sistema tem uma forma de fazer isso, que é o tal do Paradoxo, mas nada te impede de perturbar a segurança deles mesmo quando não acontecer Paradoxo. Basta apenas acrescentar um pouquinho de caos quando eles estão se sentindo confortáveis e, com algumas poucas repetições, eles começarão a ver que magia é algo muito perigoso e deve ser temido. E você nem precisará dizer isso a eles. Não diga, mostre.
Um exemplo. Vamos pegar um feitiço qualquer do livro básico de MoD. Vejam o Transformar Energias (p. 170). É um feitiço vulgar, mas suponhamos que o teste de paradoxo falhou. Como fazer esse feitiço ficar mais assustador? Presumindo que o personagem conseguiu passar no teste de feitiçaria, e que ele descreveu a imago como algo do tipo “as correntes elétricas dos cabos de alta tensão começam a vibrar e de repente se transformam em uma explosão sonora potente...”. Capriche na descrição, colocando alguns aspectos estéticos que ele não esperava (talvez algo ligado à Senda dele, só para deixar ainda mais simbólico). Descreva algo como “quando a imago é liberada, e seu feitiço toma forma, você ouve chiados vindos dos cabos de energia logo acima... um som agudo angustiante, que vai aumentando e aumentando, mas, por outro lado, você ouve outra coisa, algo que te lembra crianças rindo e brincando (a senda dele é acanthus), contudo, é algo tão distante e tão tênue que você não sabe dizer se está realmente ouvindo ou imaginando aquilo. E então um estouro ensurdecedor te traz de volta à realidade, te deixando desorientado e com a cabeça doendo”.
Por outro lado, mesmo ocorrendo uma falha no teste de paradoxo, você ainda poderia fazer com que o feitiço fugisse do controle, só para colocar aquela sensação de insegurança, de descontrole, que acompanha o sobrenatural, e a magia em si. Quem sabe ao invés de uma explosão, as ondas sonoras tomam forma de risadas, milhares de risadas que vão aumentando e aumentando de volume até se tornarem insuportáveis. Só não repita isso com muita frequência, ou os jogadores ficarão decepcionados por sua própria incapacidade de fazer magia, de controla-la.
Não tem como falar desse assunto, o medo em MoD, sem citar o suplemento Night Horrors: The Unbidden. Embora seja um livro cuja proposta prática é trazer alguns desafios para os jogadores, a introdução dele é uma obra perfeita de como a magia é algo a ser temido. Recomendo muito que todos leiam aquela introdução ao menos. Lá fala muito sobre como tornar a magia ainda mais sobrenatural, tal como escrevo aqui, e como também usar o bizarro nas histórias de MoD.
O bizarro é assustador justamente por ser, ou parecer, sobrenatural. E por que? Porque ele foge com o normal, porque é loucura pura e encarnada, porque ele pega a segurança dos jogadores, o conforto que eles sentem com o costumeiro, e manda ela pro escambau. O conto introdutório do The Unbidden tem um exemplo perfeito de bizarrice, um tal de Gnomon (aliás, recomendo a leitura desse conto também, pois ele é um exemplo perfeito de uma história pra lá de assustadora). Segue minha tradução da cena em que o protagonista encontra o bicho feio (na página 5):
A criatura apareceu do nada na minha frente. Eu gritei, primeiro em choque, e depois em horror, enquanto o monstro feito de remendos de carne humana cruelmente amarrada e contorcida pairava bem no ar diante de mim. Um par de pernas de bebê disformes e gordas balançavam debaixo de um abdômen obscenamente largo. A coisa tinha duas cabeças presas no torso, uma delas de uma velha, a outra de um bebê. A cabeça da velha me olhou com olhos antigos e cansados, enquanto a cabeça do garotinho pendeu pra trás, grotescamente, com os olhos fechados.
Olhei para aquela monstruosidade sem conseguir acreditar no que via, dúzias de braços impossivelmente longos e incompatíveis, dobrando e se estendendo nas costas da criatura. Algum metal brilhou, refletindo a luz do por do sol, e eu pisquei meio cego. O que ele estava segurando? Seriam facas?
Meu amigo, te conto uma coisa: se eu encontro com esse bicho numa noite dessas por aí, morro de ataque cardíaco na hora. E olha que eu nem descrevi o que o bicho faz. Conseguem perceber por que ele é bizarro? Conseguem perceber que quanto mais improvável, pior será (num bom sentido)?
Outra dica muito válida aqui é conhecer os jogadores. Conheça os medos que eles já têm e use-os (respeitando o limite de cada um, ou seja, quando a história ficar desconfortável demais para o dito cujo, melhor mudar o foco do medo). Mas não os use de uma forma qualquer: envolva-os com a magia. Misture o medo deles com coisas bizarras, com ciosas sobrenaturais, tire-os do conforto do que esperam, da normalidade.
Usando novamente o exemplo daquele meu grande amigo que tem medo de aranhas. Suponhamos que seu personagem Desperto está conjurando um feitiço, em seu oratório, para descobrir o futuro. Ok, até então tudo muito confortável, feitiços para perscrutar o que vai acontecer são até comuns e seguros, sem falar que um mago em seu oratório se sente como um rei em seu castelo. Ele joga os dados, alguns sucessos, faz suas perguntas obtém suas respostas. Até então tudo normal, não houve medo algum. No entanto, quando ele vai fechar a porta, ele ouve os búzios que ele lançou para descobrir seu futuro se movendo sozinhos, e, quando se aproxima para observá-los, eles assumem uma posição que diz que algo ruim acontecerá, então, os búzios começam a se mover lentamente, e algo ainda mais estranho acontece... eles começam a ficar negros, começam a criar pequenos pelos, e Deus!, aquilo seriam patas... de repente os búzios começam a andar como se fossem, como se fossem aranhas vindo na sua direção, cada um te olhando com 8 olhos brilhantes feito fogo. O que você faz?
Nesse ponto eu acho que ele já estaria apavorado. Sem falar que da próxima vez que fosse usar magia ainda sentiria o calafrio ao se lembrar daquela noite.
Recentemente eu estava lendo o livro Vampiro: O Réquiem e encontrei dicas muito interessantes no capítulo sobre narrativa. Uma delas é muito pertinente ao nosso tema: por mais que os jogos da linha nMdT sejam de horror, é impossível para o narrador manter uma sensação de medo constante, até porque se ele conseguisse, seria exaustivo e monótono. Portanto, escolha bem os momentos em que irá inserir elementos realmente terríveis e capriche nessas cenas, mas deixe espaço para outros momentos mais normais e tranquilos. Balanceie a história de maneira a haver bastante momentos de normalidade, alguns em que o medo vai aumentando, e instantes em que o pavor é imenso.
A minha teoria para explicar porque a magia apresentada no MoD não é assustadora é porque ela foi apresentada, e magia é algo misterioso. Quando se resolve um mistério ele deixa de ser fascinante. Então, como os autores tiveram de descrever detalhadamente o sistema do jogo, acabaram com o mistério existente nas ciências ocultas. Nosso grande trabalho, enquanto narradores, será trazer esse mistério de volta, do jeito que conseguimos. A primeira parte de como fazer esse trabalho está neste texto: torne a feitiçaria algo sobrenatural, nos moldes do texto anterior.
Mas não apenas isso: acrescente em cada feitiço lançado por qualquer personagem o simbolismo, o drama, e o mistério das artes ocultas. Jogadores que não conhecem muito sobre misticismo real, podem ter mais dificuldades com essa parte. Indique a eles leituras que possam ajuda-los. Há uma série de textos e tradições do nosso mundo que se aproximam dos arquétipos das sendas de MoD, e, quem sabe conhecer um pouco mais sobre essas tradições vá ajudar. A lista abaixo revela as influências básicas que eu conheço dessas tradições nas sendas:
- Obrimus: teurgia, hermetismo, renovação carismática cristã.
- Mastigos: um pouco de hermetismo também, mas principalmente goécia, e quem sabe até hipnotismo.
- Acanthus: neo-paganismos em geral, como wicca, stregheria, e aquelas tradições que se baseiam nos celtas.
- Moros: alquimia medieval ou não, necromancia, e um pouco de espiritismo também, além de alguns aspectos das tradições afrodescendentes (aqueles mais voltados para os mortos)
- Thyrsus: xamanismo em geral, alguns aspectos do espiritismo e das tradições afrodescendentes (aqueles mais voltados para os espíritos).
Um exemplo de como tornar um simples enfeitiçamento algo mais dramático, interessante, e apto a amedrontar. Um mago conjura a Visão Sinistra, o sentidos de mago do Arcano da Morte: “concentrando-me nos meus olhos, eu inspiro o cheiro da morte e, mentalmente, rasgo as mortalhas que camufla o rastro da magia no mundo, então, depois de um simples piscar de olhos, o mundo revela sua face tumular para mim”. Expressões como o cheiro da morte, rasgar as mortalhas e face tumular são apelativas e dramáticas, recorrendo ao simbolismo da morte presente na magia.
Acredito que toda feitiçaria, da mais simples até a mais complexa, deveria vir acompanhada desse tipo de descrição, pois, se esses elementos estéticos e dramáticos não contribuírem para o horror do jogo, ao menos o deixaram com um aspecto mais místico e mais apropriado à narrativa, a partir do qual o medo poderá ser construído.
E mais uma vez não consegui terminar os textos. Acabei me estendendo demais, e ainda falta muito para escrever. Acredito que no próximo artigo conseguirei terminar o medo da feitiçaria ao analisar os mecanismos e ferramentas que o próprio jogo nos dispõe para isso. Contudo, vou parar de prometer terminar logo porque acabei de ter mais uma ideia legal. Num texto posterior ao próximo, pretendo pegar os exemplos de histórias do livro básico de MoD e torná-las um pouco mais assustadoras, para mostrar na prática as coisas que estou escrevendo aqui.
Até lá.