Capítulo 07 – O Topo do Abismo
Domingo, 24 de janeiro
Cena 01 – Preparativos
A falta de informações conclusivas irrita Cutler. Mesmo o seu espírito de historiador estremece diante da quantidade de lacunas. O desconforto é ampliado pelas palavras de Kroll, que não mede esforços na tentativa de garantir alguma companhia logo mais, no As Extremidades.
Kroll – Eu não sei quanto a vocês, mas eu vou ter que ir até lá. Eu me sinto ameaçado e acho que isso vale também para quem assistiu aos vídeos.
Atrás de uma pilha de livros, o antiquário busca informações a respeito dos símbolos que discretamente decoram a residência de Jebediah Stone. Imagina que possam ser úteis, ainda que não saiba ao certo de que forma. Kroll o observa e pensa o quão supersticioso ele próprio se tornou, ansioso por qualquer vislumbre de luz na estrada escura em que se meteram. Kallinger, que já foi o mais empedernido dos céticos, sequer se envergonha por não impedir que Cutler mergulhe na pesquisa a respeito de ocultismo e bruxaria.
No início da noite, tão sem respostas quanto antes, resolvem dar uso ao molde que Tom lhes deixou mais cedo. Através dele revela-se uma face masculina de traços delicados. Alguém que não tardariam a conhecer.
Cena 02 – Os Arredores e o Primeiro Andar
A noite nos arredores do As Extremidades é rude. Cercado por prostituição e comércio aberto de drogas, o clube fica em Filadélfia Norte, região responsável pelas estatísticas que construíram a péssima reputação da cidade.
Diante do pequeno prédio, com três andares e fachada pouco mais larga que a porta que lhe serve de entrada, Kroll verifica que o estrago causado naquela manhã não foi consertado. Os tapumes arranjados para bloquear a entrada são facilmente removidos.
Do outro lado da calçada, atento à movimentação, está um adolescente. Assim que é visto, foge em disparada, sumindo em uma viela.
No primeiro andar tudo parece intocado. A única exceção é um pedaço de papel, sobre um móvel junto às escadas, escrito com a mesma letra do bilhete deixado a Kroll.
Nós gastamos nosso tempo
Encharcados em opulento esplendor
E quando das badaladas noite adentro,
Irão as almas iluminadas se opor?
Vamos beber à beira extremosa
De piscinas de excrementos
Todos os tipos de glamour
Que Mefistófeles emprestou.
Foi da escada de prata através da escuridão
Que naquela noite veio o culto e seu açoite.
Ele era um predador, o frio credor
A alma havia fiado no pergaminho amarelado.
Agora, é hora de vestir a pele
Sentir o toque que ao prazer compele
Abrir-se ao inferno de cada um
Espaço vazio não haverá nenhum.
Cena 03 – O Segundo Andar
O chão gruda como em um final de festa. Kroll, o último a subir a escada em caracol, é o primeiro a perceber os retalhos de couro negro que cercam a máquina de costura ao centro do salão, iluminada pela tênue luz indireta vinda das paredes. A peça tem mais de cem anos, e seu carretel de linha branca respingada de sangue também serviu para costurar páginas de jornais de décadas atrás. Da gaveta ao bolso do pesado casaco de Kallinger elas passam sem receber maior atenção. Cutler, usando lanterna como os demais, vasculha na direção de uma peça anexa.
Ali, se depara com equipamento de iluminação disposto em uma peça azulejada que em apenas isso se assemelha a um banheiro. Uma câmera ainda guarda o registro do que se deu poucas horas antes. Melinda Barton, sinuosa e insinuante, mira a câmera e a testemunha oculta de sua volúpia. Veste parte do traje negro que Kroll já aprendeu a temer.
Kallinger, com a ajuda de Cutler e uma das hastes da iluminação, arromba a única outra peça relevante da mobília naquele andar: um antigo e sólido armário de madeira. Nele, guarnecidas como obras de artes, estão oito das máscaras que o estilo do Sr. Claude assina.
Cutler sugere que nada seja tocado. Kallinger imagina que o fogo seria um destino razoável para tudo aquilo. E Kroll decide experimentar as máscaras. Assim que a primeira delas lhe toca o rosto, sente uma leve dor de cabeça. Quando chega à última, já nauseado e distante de seus companheiros, que dirigem-se ao andar superior, experimenta a impressão de ver através dos olhos de outra pessoa. E nesse breve instante a única coisa que vê é alguém diante de um computador, acariciando as teclas enquanto digita, com a respiração pesada por trás de uma máscara.
Cena 04 – O Terceiro Andar
Não há luz alguma ali. Odor de sangue e esperma impregna o ar. Três fachos de luz esquadrinham o andar. Revelam, ao fundo, uma movimentação débil acompanhada de sussurros e lamentos.
A aproximação intensifica os miasmas repugnantes e faz com que a viscosidade do piso torne-se asquerosa. Responsáveis por aquilo, um homem e uma mulher, presos à parede, gemem em uma compulsão hedionda. Presos que estão a paredes opostas, buscam tocar-se. E quando suas mãos finalmente fecham-se uma na outra, não é de alívio o som, mas o da pele costurada à parede que se rompe conforme os amantes unem-se finalmente para um orgasmo arrebatador e fatal.
O horror daquela cena ainda guarda uma última surpresa. O que mantinha o casal sem tocar-se, costurados à parede e agora unidos e mortos, era apenas uma fina linha branca.
Cena 05 – O Terraço e os Níveis Inferiores
É prateada a escada que conduz ao terraço. Logo que abre a porta, Cutler se depara com uma criança. Nua, ela brinca com os pequenos montes de neve formados pela tempestade. Ao ver que tem companhia, o garoto levanta-se e corre. Busca esconder-se. Não deve ter mais do que dez anos. Cutler contorna um exaustor e o encara. Ele está agora coberto por sangue e marcas de espancamento. Grita ao ser visto. E desaparece em pleno ar.
No segundo andar, Kallinger e Kroll retiram o carretel preso à velha máquina de costura. As peças metálicas rangem com o movimento. O som agudo é como o de uma criança gritando.
Farto de tudo aquilo, Kallinger dirige-se ao carro. Pretende voltar com gasolina, fogo e expiação. Kroll junta-se a Cutler no terraço. O antiquário chama atenção para a escuridão anormal da noite. E também nota que apenas os prédios mais antigos das imediações têm a aparência correta. Os demais parecem baços, sendo impossível divisar neles qualquer característica singular. Debruçando-se sobre o beiral, Kroll busca avistar Kallinger. Não vê o companheiro e nem o próprio carro. Não vê nenhum outro carro, e nenhuma outra pessoa.
Lá embaixo, Kallinger percebe que esqueceu de levar as chaves consigo. Decide esperar. Não faz idéia de que nesse momento seus companheiros encaram alguém vestindo o traje negro.
Cutler saca a antiga .45. Dispara no pé. O sangue forma um rastro na neve quando o usuário do traje avança sem hesitação. O cassetete escuro quem tem na mão direita afunda o estômago do atirador. Ele tosse enquanto tenta recuperar o fôlego. Kroll percebe um chumaço de cabelo solto entre as tiras e correias. É Melinda quem usa a roupa. Ao tentar agarrá-la, sente o efeito escorregadio da neve sobre o couro.
Com a arma ainda em punho, Cutler não pode atirar sem colocar Kroll em risco. A coronhada é ineficaz. Melinda movimenta-se e esquiva com uma graça sobrenatural que é acompanhada pelo som de ossos estalando e tendões rompendo. Um disparo no estômago, depois que Kroll afasta-se, coloca fim àquilo tudo.
Kroll aproxima-se da mulher caída na neve. Remove parte da roupa. Na agonia da morte, ela move os lábios mudos. É de mais além que uma voz se faz ouvir.
Tailor – Kroll, você tem potencial. Exercite-o em nossa amiga, sim?
Os traços delicados de Tailor, é assim que ele se apresenta, logo são reconhecidos por Kroll e Cutler. Esse último aponta a .45 em sua direção, ao que ele reage com empáfia. Dirige-se apenas a Kroll, cujos olhos fitam o capuz negro com avidez.
Tailor – Meu caro, é óbvio que a veste o escolheu. Faça a sua vontade.
Cutler – Não está vendo a porcaria da arma apontada para a sua cabeça, seu pervertido de merda?
Tailor – Onde estamos, certas coisas não funcionam como deveriam.
Cutler atira. A zombaria desaparece dos lábios de Tailor. Dobrando-se sobre o próprio ventre, parece não acreditar no sangue que espalha-se pela mão. Kallinger, finalmente no terraço, depara-se com a cena. Conclui que a veste negra dominou seu companheiro e parte para cima de Kroll.
Em pânico, Tailor abre o alçapão que leva ao terceiro andar. Cutler choca-se contra ele e os dois rolam pelas escadas. A pistola é tragada pela escuridão. No terraço, Kallinger e Kroll percebem que suas forças estão mal dirigidas. Ao descerem as escadas, juntam-se à luta de Cutler, que acaba por apunhalar Tailor entre as costelas.
Tailor – Animais estúpidos. Eu oferecia um novo mundo para que explorassem. Um local onde os limites ainda não foram criados.
Os movimentos seguintes são apressados. Temem quem possa ter ouvido os disparos. Ou ainda quem o garoto que os observou entrar tenha alertado.
Tailor e o traje negro são unidos aos corpos do terceiro andar. Gasolina é espalhada. A velha máquina de costura fica encharcada de combustível. Mas algo sai errado. Kroll, Kallinger e Cutler desistem de esperar pelas chamas. É arriscado demais entrar para descobrir o que houve. Partem considerando se deverão voltar.