Capítulo 14 – Something Wicked This Way Comes…

por Hentges em

Décimo-quarto capítulo da crônica Os Espaços Vazios, publicada no blog The Truth's For Sale.

Quarta-feira, 03/02/2010

Cena 01 – Algo para logo mais

Naquela manhã, John Kroll e Lucas Cutler trabalham separados, mas com objetivo comum. O primeiro dá início ao desenvolvimento do ambiente virtual que hospedará o antiquário do segundo, que se dedica à organização dos livros na residência que pertenceu a Jebediah Stone.

Encontram-se por volta do meio-dia para atender ao pedido de Tom. É hora de Kroll cumprir a promessa que fez.

Cena 02 – Início da Jornada

Kroll esteve na Por Trás da Máscara diversas vezes. Ainda assim, não fosse o chamejante cabelo ruivo de Tom, aguardando com uma maleta nas mãos, teria ido adiante sem perceber. Atrás do garoto está um prédio com ares de abandono, onde vidros quebrados permitem vislumbrar cômodos vazios. Nada ali lembra a loja de elegância discreta que o Sr. Claude mantinha até há poucos dias.

Tom – O Sr. Claude partiu.

Tom trata com inocência o que houve. Parece não entender que um homem cego indo embora sem uma valise sequer é incapaz de carregar consigo todo o conteúdo de um prédio, deixando para trás uma estrutura combalida.

 Cutler decide dar uma olhada. Encontra em um dos quartos do segundo andar um porta-retrato com fotografia recente de Tom. Ele está junto de um garoto poucos anos mais velho. Ambos vestem uniformes de baseball. De aparência desgastada, a imagem revela ao fundo as árvores de um bosque.

Enquanto isso, Kroll busca aproximar-se do garoto.

Kroll – O que houve com o Sr. Claude, Tom?
Tom – Ele disse que tinha que ir. Mas que eu ficaria bem. Disse que eu deveria confiar no senhor.
Kroll – Você pode. Mas precisa me contar a verdade.
Tom – Tudo isso é verdade, Sr. Kroll. Eu juro!
Kroll – Mas ele estava doente. Como pôde ir embora?
Tom – Não sei dizer. Ele levantou uma manhã e comeu uma daquelas frutas que guardava na geladeira. Depois ele disse que tinha que ir e tudo o mais. Ele pediu para eu esperar no quarto. Quando eu saí, tinha ido embora. E o prédio estava assim.
Kroll – Vamos fazer uma coisa, então.

Kroll toma a mão de Tom entre as suas. Arranjando algumas palavras de improviso, repete o modo como o Sr. Claude falou enquanto convalescia. Aquilo soa muito sério e algo ameaçador ao garoto.

Tom – O Sr. Claude ensinou o senhor? Ele nunca me ensinou. Ele dizia que era perigoso.
Kroll – Sim, é muito perigoso. E você ouviu o que eu disse. Agora não podemos mentir um para o outro. Está bem?
Tom – Está bem!

Cutler retorna e mostra a fotografia a Tom. Ele fica surpreso por tê-la esquecido.

Tom – É uma foto minha e do meu irmão, Dennis. Papai costumava nos levar até esse campo de baseball nos sábados. Foi lá que vi eles pela última vez.
Cutler - Quando foi isso?
Tom – Acho que tem uns três anos, mais ou menos.
Kroll – Lembre-se de sua promessa, Tom.
Tom – Mas eu não estou mentindo, Sr. Kroll. É tudo verdade.
Kroll – Se fosse verdade hoje você seria maior, mais velho.
Tom – Eu sei. O Sr. Claude dizia que eu devo ter alguma doença, porque eu não cresço como as outras crianças.

Decidem almoçar. E durante cerca de meia hora Tom parece ser uma criança como outra qualquer.

Cena 03 – O Campo de Baseball

Tudo que foi dito por Tom apenas serviu para deixar Kroll ainda mais nervoso diante do compromisso assumido junto ao Sr. Claude. Para ele, a coisa certa a fazer é levar o garoto conforme o prometido. Cutler acredita que o melhor é aguardar, descobrir mais e dar um passo seguro de cada vez. Até porque a promessa assumida dizia apenas o que deveria ser feito, e não quanto tempo havia para sua realização. Mas isso não é o suficiente para tranqüilizar Kroll…

Discutem enquanto observam Tom. O garoto avançou pelo parque coberto por uma película branca de neve até o diamante onde colegiais jogam baseball. Não demora até que se integre e assuma uma das posições.

Entrecortada por gritos empolgados que vem das bases, a conversa de Kroll e Cutler é interrompida pelo som seco de uma rebatida especialmente feliz. A bola sobe e desaparece além das árvores do bosque nas imediações. Entre resmungos, o defensor responsável corre para buscá-la. Tom grita alguma coisa e corre atrás do garoto. Há uma dezena de metros, Kroll observa apreensivo.

Cena 04 – A Árvore Frondosa

Kroll – Tom. Tom!

Não há resposta aos chamados.

Kroll – Tom!

Kroll pára e observa os arredores. A vegetação é mais densa do que esperava. Uma trilha delicada, contudo, encaminha até uma árvore que se destaca pela majestade. Encaminhando-se até lá percebe Tom agachado próximo ao tronco. Sacode com ambas as mãos o garoto que primeiro entrou no bosque. Deitado sobre o chão úmido ele parece ferido, ou pior.

Tom – Sr. Kroll, ele não quer ir embora. Eu disse para irmos embora de uma vez.
Garoto – Já disse que a bola está dentro desse buraco. Estou quase alcançando.

Kroll toma o lugar do menino e não tem dificuldade para alcançá-la. Antes de levantar-se, porém, esbarra em outro objeto. Além da bola, tira do buraco um boné vermelho dos Phillies, o time profissional de baseball da Filadélfia. Está sujo, tomado por fungos e começando a apodrecer. Os olhos de Tom, que debatia alguma regra obscura envolvendo bolas retiradas de buracos com o auxílio de adultos, se iluminam.

Tom – O meu boné!

Com o desembaraço que apenas as crianças têm diante de coisas nojentas, rapidamente o coloca na cabeça. Ajusta-se perfeitamente. Cutler, que finalmente os alcança, é quase atropelado pelo defensor ansioso por retornar à partida.

Kroll – Esse boné é seu?
Tom – Sim! Nossa, achei que nunca mais ia achá-lo. Muito obrigado!
Kroll – Quando você esteve aqui?
Tom – Faz muito tempo. Foi aqui que as coisas ruins começaram a acontecer. Por isso vim atrás do outro garoto. Não queria que pegassem ele.
Cutler – Quem o pegasse?
Tom – A moça do cachorro.
Kroll – O que aconteceu aqui, Tom?
Tom – Eu estava com papai e Dennis no campo. Então apareceu uma moça pedindo ajuda. O cachorro dela tinha sumido no bosque. Achei que seria legal achar o cachorro dela. Mas daí eu me perdi. E então ela me prendeu.
Cutler – Tinha outras crianças?
Tom – Sim. Tinha outras crianças também.
Cutler – Tom, eu quero que você volte até o campo de baseball e nos espere lá.
Tom – Está bem… Vocês vão ficar bem?
Kroll – Sim, nós vamos.

Ambos estão intrigados. Imaginavam que o garoto teria sido recolhido pelo Sr. Claude após ter fugido de casa. Mas agora surge essa história de aprisionamento. Ele não está mentindo, Kroll tem certeza, mas a sinceridade pode ter surgido a partir de uma fantasia construída para lidar com possíveis abusos.

Kroll examina a árvore. Seriam necessários três homens para abraçar o tronco. A copa se perde nas alturas. Ele recorda de um desenho de Tom retratando uma paisagem igualmente colossal. Cutler, por sua vez, examina marcas na neve. Parecem feitas por algum tipo de animal. Cães, talvez.

Cena 05 – Novas Considerações

O sol de inverno já começa a perder a força quando chegam ao antiquário de Cutler. Ele pretende fazer uma rápida pesquisa com base nas informações que Tom passou até o momento.

Em uma base de dados sobre crianças desaparecidas não encontra referências a Thomas Clay. Nem algo que possa remeter ao garoto, mesmo que indiretamente. Rose Fairweather, a quem ele deve ser levado, é uma das responsáveis pelo Lar da Criança da Filadélfia, um abrigo para menores sob responsabilidade conjunta da prefeitura e de uma entidade beneficente.

Por fim, Cutler encontra o endereço de Martin e Susan Clay, de quem Tom afirma ser filho.

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Kroll – Tom, eu preciso perguntar algumas coisas. Se não quiser, você não precisa responder.
Tom – Está bem.
Kroll – O que aconteceu depois que a moça do cachorro levou você?
Tom – Ela me deixava preso quase todo o tempo.
Kroll – Onde era isso?
Tom – Não sei. Acho que era perto do bosque. Se parecia com o bosque, mas de um jeito diferente. Às vezes eu tento desenhar, mas nunca lembro direito.
Kroll – Tinha outras crianças?
Tom – Sim. Eu via elas presas também. Mas eu falava e elas não me entendiam. Eu também não conseguia entender quando elas falavam comigo.
Kroll – E essa mulher, o que ela fazia?
Tom – Eu quase não via ela. Mas quando ela aparecia ela colocava uma coleira no meu pescoço. E então ela saia pelo bosque comigo. Tinha outras crianças presas em coleiras também. Era só nessas horas que a gente comia. Sempre era carne.
Kroll – O Sr. Claude conhecia essa mulher?
Tom – Acho que não. Ele apareceu um dia e me soltou. Foi assim que eu fugi.
Kroll – Mas ele era cego. Como pôde fazer isso?
Tom – Não, ele enxergava. Quando nós fugimos nós tivemos que atravessar uns espinhos. É como se fosse uma barreira de espinhos. Eles furaram os olhos do Sr. Claude.
Kroll – E foi assim que ele machucou as mãos também?
Tom – Ele dizia que quem prendeu ele machucava as mãos dele. Ele não falava muito sobre isso. Mas uma vez ele contou que essa pessoa quebrou as mãos dele uma vez. E sempre que ele estava ficando melhor alguém aparecia e quebrava os dedos novamente. É por isso que as mãos do Sr. Claude são tão feias. E acho que é por isso que ele consegue fazer coisas tão bonitas com elas.
Kroll – E os seus pais, Tom? Você não quis vê-los depois que fugiu.
Tom – Sim. Eu quis muito. Mas o Sr. Claude dizia que não era boa idéia. Que não seria bom para mim. E nem para eles.
Kroll – Tom, eu quero que você saiba que eu nunca vou deixar que isso volte a acontecer a você.
Tom – Sr. Kroll?
Kroll – Sim?
Tom – Eu acho que eu quero ver os meus pais.

Antes de partirem, Kroll manda uma mensagem para Rivers. Pergunta o que ele sabe a respeito de crianças desaparecidas no Parque Fairmount, se já se deparou com algo envolvendo Phineas Claude e a loja Por Trás da Máscara e, por fim, se o Lar da Criança da Filadélfia e Rose Fairweather lhe dizem algo.

Cena 06 – O Lar dos Clay

O carro trafega devagar pela rua deserta. Já anoiteceu e o frio faz latejar o ombro ferido de Kroll. Salas de jantar bem iluminadas revelam a reunião de famílias felizes. Na residência dos Clay uma mulher na faixa dos quarenta anos, Susan, recepciona três adolescentes.

Tom – Deixa eu ir até lá, Sr. Kroll. Prometo que não vou demorar e que não deixo ninguém me ver.

Cutler não acha que seja uma boa idéia, mas Kroll cede ao pedido do garoto. Conduzindo-o pela mão, pára em frente à residência. Tom é alçado aos ombros. Parecem pai e filho brincando na calçada.

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Enquanto observa do carro, Cutler faz uma ligação para o Lar da Criança da Filadélfia.

Cutler - Rose Fairweather?
Fairweather – Pois não?
Cutler - Aqui é John Kroll. Devo encontrá-la hoje. Gostaria de saber se não é muito tarde para isso.
Fairweather – Olá, Sr. Kroll. O Sr. Claude falou a seu respeito. Não, não é tarde. Tenho uma reunião e devo permanecer aqui por mais algumas horas.
Cutler - Ótimo. Seria ruim se Tom chegasse apenas amanhã?
Fairweather - Bem, a documentação foi preparada para a chegada dele hoje. O senhor tem como acomodar a criança adequadamente?
Cutler - Sim, certamente.
Fairweather - Então não vejo problema algum. Até amanhã, Sr. Kroll.
Cutler - Até amanhã.

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Em volta da mesa estão dois adultos e quatro adolescentes. Susan e Martin Clay e os três jovens que Kroll viu entrar. O quarto deles senta à cabeceira. Tem diante de si um bolo cujas velas – formam o número “14” – assopra com uma careta constrangida. Um cartaz colado na parede o celebra – “Feliz Aniversário, Tom”.

Tom – Quem é aquele garoto, Sr. Kroll?
Kroll – Nós temos que ir embora.

Kroll caminha apressado na direção do carro puxando Tom pela mão. O garoto olha para trás quando a porta da casa se abre. Martin Clay caminha da varanda até a calçada. Chama as pessoas que viu através da janela.

Tom – Aquele é o meu pai, Sr. Kroll.

Kroll coloca Tom no banco de trás do carro e entra. Agarra o volante. Respira fundo por alguns segundos. Decide sair.

Kroll – Você me chamou?
Clay – Sim. Vi o senhor diante da janela. Com uma criança.

Martin Clay olha na direção do carro, quarenta metros adiante. Tom está inclinado contra o banco traseiro, acompanhando a conversa. Não atende às solicitações de Cutler para que se sente.

Kroll – Algum problema?
Clay – Não, apenas fiquei curioso.
Kroll – É o meu filho. Seu nome é… John.

Da casa sai um garoto. O cabelo chamejante prende a atenção. Quase não tem sardas sobre a pele clara marcada por algumas espinhas. Um adolescente típico. Não fosse a diferença de idade, seria idêntico a Tom.

Thomas – Você prometeu que nos levaria ao boliche depois do jantar.
Martin – Sim. Tudo bem. Vamos indo. Esse é o meu filho, Thomas. Está de aniversário hoje.
Kroll – Parabéns.
Thomas – Obrigado. Vamos?
Martin – Sim. Tomara que o John cresça e se torne um garoto tão bom quanto esse. Eu tive sorte. Até logo senhor…
Kroll – Kroll. Adeus.

De volta ao carro, apenas com muito custo Kroll e Cutler conseguem fazer com que Tom se acalme. Pergunta dos seus pais e do garoto com eles.

Tom – Aquele não era Dennis. Com certeza não era, Sr. Kroll. O que vamos fazer?

Rumo ao  antiquário, Kroll e Cutler têm uma noite inteira para pensar na resposta.