Capítulo 15 – O Garoto Perdido
Quarta-feira, 03/02/2010
Cena 01 – Chamado do Porão
Cutler e Kroll chegam ao antiquário indecisos quanto ao que fazer em relação a Tom. Discutem a possibilidade de levá-lo ao Lar da Criança da Filadélfia ainda naquela noite. Sem admiti-lo em voz alta, sentem-se desconfortáveis diante do imponderável que cerca o garoto.
Kroll – Bem ou mal, eu preferia levá-lo de uma vez. Foi o que eu prometi ao Claude e quero me livrar disso.
Mas Tom desapareceu.
Kroll chama diversas vezes enquanto percorre o labirinto de prateleiras e balcões que entulham o salão principal do antiquário. Cutler sente um dedo gelado percorrer-lhe a espinha ao ver escancarada a porta que leva ao porão.
Lá embaixo, entre peças descartadas e itens esperando reparo e coisas que devem permanecer longe dos olhos dos clientes, Tom observa uma parede.
Kroll – Tom? O que você está fazendo aqui?
Tom – Olá, Sr. Kroll. Eu achei que tinha alguém. Ouvi alguém chamando.
Cutler – Não há ninguém aqui. Vamos andando. Está na hora de ir embora.
Kroll encara inquisitivo o companheiro, que responde com um dar de ombros. Com as luzes já desligadas Cutler lança um último olhar à parede mais distante do velho porão.
Cena 02 – Breves Despedidas
Tom – Eu fiz alguma coisa errada, Sr. Kroll?
Kroll – Não, você não fez nada de errado. Por que está perguntando isso?
Tom – Não sei. Achei que tivesse feito.
Kroll – Nós estamos indo para a sua nova casa, Tom. O lugar que o Sr. Claude escolheu para você. Vai ficar tudo bem.
Tom – Está bem.
Cutler - Tom, você lembra quando me visitou no antiquário?
Tom – Sim, eu fui levar uma coisa que o senhor pediu. Um molde.
Cutler - Como você chegou até lá?
Tom – O senhor me deu o endereço.
Kroll – Tom!
Tom – Na verdade, foi o Sr. Claude quem me disse onde encontrar o senhor.
O Lar da Criança da Filadélfia fica em um antigo prédio de dois andares totalmente reformado. Alguns carros estão parados no estacionamento em frente à recepção, mas as luzes, com exceção de algumas no piso superior, estão desligadas.
São recebidos por Rose Fairweather. Aparentando pouco mais de quarenta anos, tem um ar distinto e a fala segura e gentil que o trato constante com crianças exige. A reunião mencionada mais cedo, ao telefone, estendeu-se além do previsto, mas ela está feliz em interromper o trabalho para recebê-los. O jovem Tom, cujo olhar durante a viagem revelava o distanciamento dos pensamentos, agora parece especialmente vivaz. Ele observa a Sra. Fairweather com especial curiosidade, que retribui a atenção com um sorriso.
Fica acordado entre eles que Kroll e Cutler voltarão na manhã seguinte para assinar alguns papéis de ordem burocrática. Após as despedidas Tom é levado pela mão por sua nova guardiã.
Quinta-feira, 04/02/2010
Cena 03 – Frialdade Noturna
Kroll desperta. Tem os pés frios. Levanta-se para buscar meias, um cobertor ou qualquer outra coisa que o aqueça e permita voltar para cama o quanto antes. O piso está coberto de neve. Neve que cobre todo um bosque de árvores pálidas. O bosque visitado naquela tarde? Surpreende-se por saber que sonha. Normalmente os sonhadores não sabem que o são. Avança sem rumo até que ouve latidos. Uma matilha. Não pode ver além da bruma alva, mas sente sua aproximação. Os primeiros galhos são fáceis de alcançar, mas logo tornam-se distantes e escorregadios. Kroll desiste da escalada. Arma-se de um pedaço de pau e encara os animais. Está cercado pelos latidos e rosnados de uma dúzia de crianças. Sua pele nua é tão branca quanto os dentes que expõem como cães selvagens. Kroll avança com sua arma improvisada. O esforço é respondido com um ataque voraz. Preso em seu braço está um garoto com menos de dez anos. É afastado à custa de um pedaço sangrento de carne. Subitamente, um grito agudo silencia as crianças. Nua, junto da árvore visitada naquela tarde, está a mais bela mulher já vista. Leva na mão direita as correias de seus animais de estimação. Sorri. Kroll desperta. Tem os pés frios.
Cena 04 – No Lar da Criança
Kroll – …e essa foi a merda que eu sonhei nessa noite.
Cutler - Alguma idéia além do óbvio?
Kroll – Nada. Acho que as histórias do Tom me impressionaram.
Cutler - Menina!
Kroll – Não fode. Aliás, o que foi aquilo no porão.
Cutler - O guri é bizarro. Achou ter ouvido algo. Só isso.
Kroll – Humm…
Cutler - Temos preocupações maiores. Organizar todas essas merdas que estamos juntando, por exemplo. Pensar um pouco a respeito. Ver se significam algo.
Da recepção do Lar da Criança é possível ver a agitação provocada pelos internos durante o café-da-manhã. Kroll dá falta de seu telefone celular enquanto ouve Rose Fairweather desculpar-se pela algazarra corriqueira do início do dia. Ela os conduz até uma sala anexa onde copos de café sobre a mesa são a lembrança da reunião na noite anterior. Seu tom é sério, mas tranqüilo.
Fairweather – Tom desapareceu durante a noite. Ele dirigiu-se até a casa de um dos senhores?
Kroll – Não.
Cutler - Quando vocês perceberam?
Fairweather – Logo cedo, pela manhã. A polícia esteve aqui.
Cutler - E o que eles disseram?
Fairweather – Nada ainda. Mas já iniciaram as buscas. Estou aguardando por qualquer notícia.
Kroll – Tom parecia tranqüilo quando o deixamos aqui. Ele disse ou fez alguma coisa estranha?
Fairweather – Não. Ele comportou-se bastante bem o tempo todo. Despedi-me dele cerca de meia-hora após a partida de vocês.
Ao longo de parte da manhã descobrem que Doug Johnson, responsável pela segurança – “na maior parte do tempo o meu trabalho é andar pelo prédio e, eventualmente, separar garotos brigões” -, cochilou. “Mas isso nunca tinha acontecido antes”. É a mesma frase que Rose Fairweather usa quando questionada a respeito de fugas anteriores.
Johnson, arrastando seu corpanzil de ex-policial aposentado, acompanha Cutler até o pátio – um local de fácil acesso para qualquer um disposto a entrar ou sair – e depois até o centro de monitoramento. A rápida olhada nos vídeos das câmeras de segurança nada revela de extraordinário além de um grupo de vira-latas uivando em frente ao prédio por volta das três da manhã. Cutler discretamente transfere os dados para um pendrive visando análise posterior.
Kroll, enquanto isso, visita o quarto em que Tom passou a noite. A cama já está feita. A janela de parapeito estreito e escorregadio não é uma rota de fuga. A maleta vermelha permanece ali, mas Kroll não a toca.
Fairweather – Eu estive aqui por alguns minutos antes de sair. Surpreendeu-me a tranqüilidade dele.
Kroll – É normal ficar em quarto separado?
Fairweather – Só nas primeiras noites. Isso acontece para facilitar a ambientação. Em menos de uma semana, normalmente, os recém-chegados são integrados aos demais internos.
Kroll – Eu acho que conheci os pais de Tom.
Fairweather – Pais? Mas ele foi legalmente adotado por Phineas Claude há dois anos.
Kroll – Chamam-se Clay.
Fairweather – O senhor tem certeza disso? Um garoto que passou pelas coisas que Tom passou costuma inventar histórias como forma de compensação.
Kroll – Tenho motivos para acreditar que ele não mentiria.
Kroll assina os papéis referentes a Tom. A responsabilidade pelo seu desaparecimento, portanto, é exclusivamente do Lar da Criança da Filadélfia.
Cena 05 – Tom, o Outro
Desta vez é Kroll quem permanece no carro enquanto Cutler circula na tranqüila rua do subúrbio onde vivem os Clay. Passada uma hora, desistem da idéia de continuar aguardando por uma possível vinda de Tom até aqui. Cutler decide tocar a campainha.
Susan Clay – Pois não?
Cutler – Olá. Me chamo Ox. Vi que uma casa logo adiante tem uma placa de “vende-se”. A senhora conhece o proprietário?
Susan Clay – Apenas de vista. O senhor deveria ligar para a imobiliária responsável.
Cutler – É, pois é. Mas sabe como são vendedores… Imaginei que falando com alguém da vizinhança antes poderia ser mais útil.
Susan Clay – Tudo bem… Estou em uma pausa do trabalho.
Cutler – Trabalha em casa?
Susan Clay – Sim. Tenho meu escritório aqui. É tranqüilo. Ótimo para trabalhar e para os filhos crescerem.
A conversa é interrompida por um adolescente de cabelos ruivos que sai apressado. Leva uma mochila nas costas.
Susan Clay – Corra, Tom. Você já está atrasado para a escola.
Cutler – Obrigado por seu tempo. Adeus.
Susan Clay – Adeus.
De carro, Cutler e Kroll seguem os passos de Tom. Fuma com ares de quem está fazendo algo errado e deixa passar o ônibus que o levaria ao colégio mais próximo. Toma outro e desce na região central da cidade.
Suas duas sombras até conseguem entrar no mesmo prédio residencial que ele, mas resolvem encerrar por ali a perseguição.
Cena 06 – Epílogo
No Parque Fairmount um grupo de policiais tenta permanecer aquecido. São responsáveis por encontrar os cães que atacaram um mendigo durante a madrugada. O homem foi levado ao hospital mais próximo em estado grave.
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Ao longo do restante da tarde Kroll trabalha no sistema de vendas virtuais para o antiquário. Recebe de um entregador os recortes de jornais que encontraram no As Extremidades e haviam ficado em posse de Kallinger.
São páginas antigas e recentes costuradas por linha branca. Formam um painel com quatro metros quadrados. Tratam dos assassinatos de crianças que ocorreram no prédio onde hoje existe o As Extremidades. Os crimes datam do final dos anos de 1970 e início dos 1980. As vítimas eram meninos jovens. O assassino jamais foi pego. Existem também páginas tratando das mortes de Hector Soto e Dwight Dickson. Entre eles, um espaço não preenchido.
Enquanto contempla o espaço vazio reservado à notícia de sua morte, Kroll se pergunta se esses garotos têm a ver com Tom. E se os cães com os quais sonhou tem relação com a coisa que Rivers afirma ter visto em sua passagem pelo clube.
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Do buraco na parede do porão se desprende um odor fétido. Com cimento, Cutler ocupa-se de cobrir cuidadosamente o segredo que jaz ali dentro.