Capítulo 23 – Fazendo o Jogo
Domingo, 28/03/2010
Cena 01 – Funeral sem Corpo
Não há corpo algum no espaço reservado à cremação. Apenas a lembrança de Jebediah arde ali. Cutler recorda o homem que lhe confiou uma casa onde um hóspede invisível devora livros. Agynes Stone também pensa no pai, mas o que vai em sua mente é assunto para logo mais. Agora cabe dizer que está aliviada. Os restos mortais de Jebediah foram encontrados sob os escombros do crematório de Clinton Weiss. A única conclusão possível foi de que Cutler, como tantos outros, havia sido enganado pelo monstruoso violador de cadáveres. Restava, como encerramento do evento terrível, um breve rito religioso para que o espírito de Stone finalmente tivesse paz.
Agynes – Fico feliz que tenha comparecido.
Cutler – Fiquei surpreso quando disse que as cinzas que recebi não eram as de seu pai.
Agynes – Sim… Bem, acho que agora ele vai descansar. Quais são os seus planos para a residência que foi de meu pai?
Cutler – No momento, nenhum. Quais são os seus?
Agynes – A casa é sua agora. Não posso fazer planos para ela. Mas tenho uma sugestão. Venda-a!
Cutler – Por quê?
Agynes – Porque a obsessão do meu pai impediu que as pessoas que viveram lá fossem felizes. Não gostaria que isso fosse adiante.
Cutler – Pensarei no assunto.
Cutler despede-se de Agynes e do homem que a acompanhava. Não pareciam ter relação afetiva. A circunstância o lembra de Katherine Riley, que meses atrás propôs adquirir a residência e tudo o que havia nela.
Negou naquela ocasião, e os sentimentos de Agynes Stone não irão dissuadi-lo.
Segunda-feira, 29/03/2010
Cena 02 – Bisbilhotando
Lawler – O seu interesse na adoção do garoto é admirável. Normalmente, poucas pessoas buscam crianças mais velhas. E enfermas, então, como nesse caso… Acho que vocês estão fazendo algo fantástico. Mas existem empecilhos. O primeiro é a natureza da relação de vocês. Vejam, eu não tenho preconceitos, mas eles podem fazer a balança pender contra vocês. Além disso, certo William Green já deu entrada em papéis para a adoção.
Kroll contém-se com esforço diante da afirmação de que formam um casal homossexual. Cutler se concentra no segundo ponto do advogado: Bill Green tem planos para Tom. Levarão adiante o processo de adoção. Seu único intuito é bloquear o acesso imediato de Green ao garoto.
—-
Há alguns dias Cutler havia entrado em contato com um detetive particular. Finalmente ele tem algo interessante a respeito do conselheiro municipal.
- Green tem irritado muito o prefeito, mas não é só ele. Alguns de seus aliados também. Os rumores sobre drogas ficaram no passado e o suposto escândalo envolvendo uma prostituta nunca pôde ser confirmado, mas parece que o Conselheiro tem curtido um novo tipo de viagem: poder. E para tanto, andou recentemente se aproximando de pessoas que nem todos os seus velhos camaradas aprovam. Ainda não consegui desencavar quem são, mas é certo que foi isso que o afastou da tal Rose Fairweather, a que foi morta. Ao que parece, Green está querendo adotar a tal criança em uma espécie de reconciliação com Fairweather. Algo como finalizar algo importante que ela não conseguiu. Mórbido, hein?
Cutler solicita ao detetive que se aprofunde nas ligações políticas subterrâneas de Bill Green. E que confirme se também são adotadas suas duas filhas.
Terça-feira, 30/03/2010
Cena 03 – Fantasmas no Porão
Cutler e Kroll tem tido muito trabalho desde que seu ramo de negócios mudou para o comércio eletrônico de objetos usados. O antiquário foi fechado e transformado em um depósito de onde expedem mercadorias vendidas e recebem produtos adquiridos.
Por mais que Cutler sinta-se consolado por ter dividido com Kroll seu segredo, ambos formulam incessantemente hipóteses a respeito de como foi retirado do porão o corpo emparedado. As idéias sombrias de ambos recebem um aditivo inesperado naquela tarde, quando descem para inventariar o estoque.
A parede diversas vezes refeita está coberta por marcas que desgastaram tijolo e cimento.
“…vazio, a escuridão, o silêncio…”
“…entorpecida inquietação. Vaga sensação de dor. Nenhuma preocupação. Nem esperança. Nem esforço. Nada. Como se nascendo. Renascendo…”
“…terror mais extremo que já se abateu…”
“…os ataques se sucedem…”
Diferente da outra vez, não há sinais de arrombamento ou invasão. Apenas a evidência de que algo permanece ali.
Quarta-feira, 31/03/2010
Cena 04 – Jogo das Ruas
Durante os últimos cinco ou seis dias Kroll tem recorrido freqüentemente aos seus aliados nas calçadas. Gente que joga o jogo duro das ruas. Pessoas de quem foi próximo em outra vida, quando a coisa mais complicada que poderia lhe ocorrer seria uma acusação por receptação de mercadoria roubada.
Essa gente sem rosto vive atenta ao que se dá nos recantos menos convidativos da cidade. E o que ouvem e passam adiante é que Leroy Brown está com produto encalhado. Os sagazes cochicham que se deve à presença do poder público no bairro desde a morte de Rose Fairweather no As Extremidades. Os perspicazes concluem que era Tailor, outro cadáver, o responsável por esvaziar o estoque mais valioso do traficante. Que falta faz aquele pervertido…
Disso tudo importa a disposição de Brown para negociar. Mais do que isso, a necessidade. Do contrário, não correria o risco de enviar um tenente para escutar a proposta de dois aventureiros desconhecidos que foram recomendados através de canais tortuosos.
Robinson – Então, o que vocês têm pra oferecer?
Cutler – Precisamos de ajuda.
Robinson – Ajuda? Que merda é essa? Disseram que vocês tavam aqui pra resolver a minha vida.
Kroll – Certo. Mas antes precisamos de informação. E temos algo que pode interessar também.
Robinson – O que interessa é o teu dinheiro. Cadê ele?
Kroll – Nós sabemos dos problemas de vocês. Estão com o produto, mas não conseguem transformar em dinheiro desde que a polícia chegou. E tem também o pessoal da Prefeitura no As Extremidades.
Robinson – A polícia é ruim para os negócios. Boa! Tu é bem esperto prum branquelo. Desse clube não sei nada. E estou cagando.
Cutler – Nós temos dinheiro. Uns dois mil.
Robinson – Dois mil? Tu tem dois mil aí? Tá de sacanagem. Eu tenho dois mil aqui!
Robinson olha ao redor fazendo graça. As figuras sob a luz débil que penetra o estaleiro às margens do Schuylkill agitam-se. O tom do negociador se eleva. Sob pressão, desperta a memória de Kroll.
Kroll – Porykov.
Robinson – Quem?
Kroll – Porykov. O russo. Ele pode dar um jeito no que vocês têm.
Robinson – Vocês vieram aqui em nome do russo?
Kroll – É isso aí. Estamos com Porykov.
Robinson – Então diz pra ele que, se ele tiver jeito pro nosso problema, nós vemos o que dá pra fazer sobre o que vocês querem saber.
Cientes de que têm outra negociação difícil pela frente, deixam o estaleiro.
Quinta-feira, 01/04/2010
Cena 05 – O Tubarão
Porykov – Sente-se, Sr. Kroll. É curioso conhecer pessoalmente alguém que antes era apenas um relatório e algumas fotografias.
O russo sorri como um tubarão. Kroll, sem sucesso, tenta fazer o mesmo.
É Cutler quem inicia a conversa. Demora um instante até que Porykov repita uma de suas frases favoritas.
Porykov – Direto ao ponto. À moda dos russos.
A situação é descortinada: a relação entre as atividades de Tailor no As Extremidades e Leroy Brown; as suspeitas sobre Bill Green; a negociação na qual seu nome fez parte. Porykov ouve com atenção, questionando pontualmente. Quando esclarece as próprias idéias, volta a sorrir.
Porykov – Propõem, então, que eu tome o lugar de Tailor nos negócios que este tinha com Brown. Há uma bela dose de ironia nisso. Bem, é momento de saldar uma dívida.
Pouco importa quais serão os canais de que Porykov fará uso, desde que se confirme a resolução do negócio para dali a alguns dias. Formas de contato são combinadas. As perguntas que esperam ser Brown capaz de responder são transmitidas ao proprietário do Priceless.
Antes de partirem, Cutler toca na relação de Bill Green com Tailor.
Porykov - No inverno da Rússia o frio penetra nos ossos e tira toda a sensibilidade do corpo. É como estar morto. As pessoas que Tailor trouxe aqui, parecia que o inverno russo tinha soprado dentro delas. Frias e insensíveis como nenhuma vodka poderia curar. Foi por isso que mandei todos embora. Foi por isso que nossa parceria acabou. Não estou dizendo que Green era uma delas. Não estou afirmado sequer que o conheço. O que estou fazendo é repetir o alerta de quando nos encontramos pela primeira vez. Tomem cuidado!
Domingo, 04/04/2010
Cena 06 – Uma Moça Frágil
Agynes – Tomou alguma decisão, Sr. Cutler?
Cutler – Disse que pensaria a respeito. Não lembro ter mencionado quanto tempo levaria.
Agynes – Eu não quero parecer…
Cutler – Mas está. Eu não admito essa pressão.
Agynes – Sr. Cutler, eu não sei que tipo de relação o senhor e meu pai tiveram, mas sei que foi breve. E tenho certeza de que poderia questionar judicialmente a transferência de posse realizada por um homem debilitado poucos dias antes da própria morte.
Cutler – Se quer tanto assim essa casa, pode vir até aqui agora e pegar as chaves.
Agynes – Eu…
Cutler – É isso que você ouviu. Você pode vir até aqui para resolvermos isso. Ou podemos tratar através de advogados, se é o que prefere. Mas ao telefone eu não vou mais discutir essa questão.
Agynes – Eu vou… Partirei da cidade dentro de alguns dias. Antes disso, farei uma visita.
Cutler – E então chegaremos a um acordo.
Cutler pondera a respeito da casa, o trabalho na sua organização, o benefício de sua vasta biblioteca. Recorda de quando se deparou com o hóspede faminto. A única ocasião em que o viu. Teria sido uma ilusão? Ainda que Kroll acredite nisso, e estimule a quebra das regras impostas por Stone, Cutler opta pela prudência e pela paciência. Sente que está pronto para despedir-se daquele cemitério de livros.
Cena 07 – Lista de Pessoas Mortas
No início da tarde, em cumprimento ao acordo, Porykov envia um e-mail.
O texto breve contém as placas de alguns automóveis, bem como a descrição dos veículos correspondentes. A seguir, seis pessoas, homens e mulheres, são mencionados com concisão: branco ou negro, idade estimada, cor do cabelo, particularidades.
Kroll – Essas pessoas. Elas são familiares. Quando sonhei que estava na Por Trás da Máscara vi uma dúzia de rostos pendurados na parede. Tenho certeza que eram essas pessoas.
Cutler – Absoluta?
Kroll – Sim, eles eram parte daquela, sei lá, coleção.
Cutler – Ok. O primeiro vídeo, aquele do Fitzgerald, mostrava uma dúzia de pessoas.
Kroll – Sim. Acho que esse grupo era o mesmo da loja no sonho.
Cutler – E a mulher aquela do As Extremidades que você comeu, Melinda Barton. Ela não estava na parede?
Kroll – Não. Acho que quem se envolve com esse grupo acaba descartado. Sendo morto. Eu vi minha própria cara lá e olha a merda em que estamos enfiados. Como é que não me dei conta disso? Sabe quem mais estava com o rosto pendurado?
Cutler – Bill Green.
Ambos se debruçam sobre a lista enviada por Porykov. Os caminhos todos apontam até a página de obituários. Dos seis nomes a que chegaram, cinco morreram entre a segunda semana de fevereiro e cinco dias atrás. Abigail Boyd foi a primeira vítima.
Não é possível estabelecer relações diretas entre elas. Em comum, o fato de viverem vidas confortáveis e terem sofrido mortes acidentais: ataques de animais peçonhentos, quedas inexplicáveis e inalação de gás.
De todos os nomes, Evangeline Allen é a única cuja morte não pode ser confirmada.
Segunda-feira, 05/04/2010
Cena 08 – Campana
Do carro, Kroll e Cutler observam o resultado de uma velha tática. Atraída por uma chamada anônima, a viatura policial bate na casa dos Allen. Ao telefone afirmaram que Evangeline Allen estaria desaparecida. Quem recebe os oficiais é o marido, Victor. Responde algumas perguntas e é deixado em paz. Mesmo à distância, Kroll reconhece as feições. A barba e o aspecto negligente não escondem a descrição feita por Joey. Evangeline e Victor foram os protagonistas do showzinho descrito pelo barman.
Passam as horas seguintes observando a total ausência de movimentação na confortável residência.
Quando a noite cair, irão invadi-la.