Capítulo 22 – Discursos que Desfilam

por Hentges em

Vigésimo-segundo capítulo da crônica Os Espaços Vazios, publicada no blog The Truth's For Sale.

Domingo, 21/03/2010

Cena 01 – Coisas Entorpecidas

Phillips – Ele segue estável. Infelizmente, isso também significa sem progressos. Como lhe disse, quanto maior o prolongamento desse estado, mais improvável que venha a despertar.

Kroll murmura algo incompreensível a Tom enquanto ouve o Dr. Phillips.

Kroll – Aquela fruta que deixei?
Phillips – Não pude confirmar suas qualidades medicinais. A análise não foi possível, infelizmente. Ela apodreceu e depois ficou ressecada em uma velocidade assombrosa.
Kroll – É melhor esquecer. Eu não vou conseguir outra daquelas.
Phillips – Quanto a Tom, é preciso decidir o que será feito. Não posso mantê-lo indefinidamente aqui.
Kroll – Custos e tudo o mais.
Phillips – Isso é um detalhe. O mais importante é que ele não tem guardião legal. Entrei em contato com o Lar da Criança. Rose estava levando o processo de adoção por conta própria.
Kroll – Vou pensar em algo. Quem sabe eu mesmo faça isso. Me dê alguns dias.
Phillips – Tudo bem. Fico esperando que entre em contato.
Kroll – Adeus.
Phillips – Sr. Kroll, o senhor é a pessoa mais próxima dele. Fico feliz que esteja aqui.

O que posso fazer por esse garoto? John Kroll não sabe responder.

 Cena 02 – Um Homem com um Plano

Graves – Chegou bem a tempo de ver todo o desagrado do prefeito.

Byron Graves em nada lembra o executivo de terno bem cortado que apadrinhou Cutler na Comissão Barrett. A jaqueta surrada e o jeans o misturam à centena de pessoas amontoadas diante do palanque. Sobre ele, uma dúzia de correligionários, assessores e apaniguados secundam o prefeito Michael Nutter, ofuscado pelo conselheiro municipal Bill Green, que discursa. 

Green – …e bem aqui, veremos de um crime hediondo nascerem os frutos…

Atrás deles estende-se um painel que cobre parcialmente a fachada do As Extremidades. Dá conta de uma reforma que tem início hoje para futuras instalações.

Green – …pois o Centro de Amparo Municipal Rose Fairweather irá…

Junto de alguns jornalistas, Kroll busca sem sucesso mencionar as relações entre Green e Fairweather. Uma moradora de voz especialmente aguda também parece desejar a atenção da imprensa.

- Precisou uma branca morrer em um clube de branco para alguém lembrar da negada daqui.

Graves – A doação para a prefeitura foi feita anonimamente.
Cutler – Não admira, considerando tudo o que aconteceu aqui.
Graves – O doador é o elo entre o clube e o conselheiro. Trabalhe nessa direção.
Cutler – Eu vou perturbar esse Green de um modo que ele não acredita ser possível.
Graves – Não só você. Nutter não vai deixar que essa ambição tome corpo. E aqueles não parecem querer benfeitorias por aqui.

Um grupo com ar insolente observa o final dos discursos daquela tarde. Traficantes, o tipo de erva daninha que cresce nas rachaduras provocadas pela ausência do Estado.

Cena 03 – Confissões Perigosas

Cutler – Era noite quando ouvi o barulho. Amanda não estava cama. Ela costumava dormir como uma pedra depois de transar, mas eu sempre tive sono leve. Achei que ela estava no banheiro ou algo assim. Então ouvi novamente. O ruído que me despertou vinha do antiquário. Desci com a arma na mão. Não quis chamar Amanda para não alertar o invasor. A essa altura já tinha certeza que havia um invasor. No pé das escadas eu o vi golpeando Amanda no rosto. Ela já não se mexia. Atirei até esvaziar o tambor. Quando dei por mim, tinha dois cadáveres no chão. Chamei a polícia. Eles não duvidaram da minha história. Alguém invadiu o antiquário e surpreendeu minha namorada. Eu atirei no invasor, que fugiu. A chuva apagou o rastro de sangue lá fora. Eles nem pensaram em ir até o porão onde eu emparedei o filho da puta. Isso foi há mais de um ano.

Kroll – E por que você simplesmente não o deixou onde estava?
Cutler – Sei lá. Fiquei apavorado. Quantos corpos você precisa ver para saber o que fazer com eles? Aquele foi o meu primeiro.
Kroll – Esclarece o seu modo de lidar com certas coisas.
Cutler – Essas merdas bateram na minha porta antes de baterem na sua.
Kroll – E quem além do Oak, que é um policial, poderia desenterrar isso e resolver fazer algo a respeito?

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No velho armazém próximo ao Rio Schuylkill alguns vídeos são editados para envio aos servidores da Rede Zero. Kroll vem se descobrindo especialmente talentoso para o trabalho, mas ainda não pôde conferir com cuidado o que outros membros vêm fazendo. A impressão inicial foi a de um conjunto de refilmagens menos inspiradas de A Bruxa de Blair. Rivers, diante do laptop, continua tão amargurado quanto nas últimas semanas.

Kroll – Nosso foco tem sido levantar algo que prove a relação entre Green, Fairweather, o As Extremidades e o Parque Fairmount.
Rivers – Provas, é?
Kroll – O quê?
Rivers – Provas, você disse. Provas são importantes. Desde quando?
Kroll – Desde sempre. Que conversa é essa?
Rivers – Nenhum de nós parecia muito preocupado com elas quando fez aquilo.
Kroll – Olha, eu sei que foi difícil. Eu ainda tenho pesadelos, ok? Mas nós sabíamos…
Rivers – O quê? Sinceramente, o que nós sabíamos? Ou melhor, daquilo que nós sabíamos, o que tinha relação com Fairweather? E eu nem estou falando daquele infeliz que arrastamos e acabou morrendo também.
Kroll – Discutir isso vai levar para onde?
Rivers – Para o lugar onde não fazemos mais isso, é o que eu espero. Eu sinto que talvez tenhamos cometido um erro que matou duas pessoas. Sim, ninguém conseguia dormir nem pensar direito; nunca dá para ter certeza em relação às coisas com que estamos lidando; mas isso não justifica. Não justifica de jeito nenhum.
Kroll – Você não lembra tudo o que passamos? O que vimos?
Rivers – Lembro! Mas uma coisa é senso crítico e outra é negação. Você e Cutler, especialmente Cutler, estão em negação. E esse interesse por Green é apenas uma forma de justificar o que fizeram com Fairweather.
Kroll – Nós fizemos, não esqueça disso. E Mogli tinha as digitais de Green… Vou falar com Cutler. As coisas vão andar mais devagar.
Rivers – Pesquisar e checar. Pesquisar e checar. Depois se decide o que fazer. Para que nós não nos tornemos o que nós caçamos.

Segunda-feira, 22/03/2010

Cena 04 – Pesquisar e Checar

Ainda que anônima, a doação do prédio do As Extremidades para a Cidade da Filadélfia é relativamente simples de rastrear. Pertencia a Abigail Boyd, uma viúva octogenária. A transferência se deu cerca de uma semana após a morte de Rose Fairweather e o local ficou à disposição de uma comissão pública formada, entre outros, por Bill Green. A leitura das atas de reunião demonstra a agilidade na tramitação do processo que resultará no Centro de Amparo Municipal Rose Fairweather.

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Abigail Boyd faleceu depois de ser picada em seu jardim por um animal peçonhento. Seu funeral, realizado há 20 dias, reuniu amigos e familiares em uma bela cerimônia.

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Bill Green é um homem divorciado, com duas filhas. Isso não fica bem para um concorrente ao cargo de prefeito. Família desperta a confiança do eleitor, mesmo entre os Democratas. Dizem que Green andava próximo de Rose Fairweather, um caso dos tempos de faculdade e com excelente perfil para primeira-dama da Filadélfia.

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As lendas a respeito de crianças trocadas pelas fadas são verdadeiras. Elas deixam no lugar de quem levam uma cópia boa o bastante para que todas as pessoas próximas jamais percebam o que houve. Mas algumas percebem.

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As ambições de Bill Green nunca foram modestas. Ele vem de uma família de políticos, afinal de contas. Eleito para o Conselho Municipal como o mais votado entre os Democratas, já afirmou o desejo de ser prefeito. Mas nos últimos meses parece que finalmente encontrou os patrocinadores capazes de concretizar essa aventura.

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Simulacro, Duplo, Cópia ou Aparição, é assim que eles são denominados, não são humanos. Eles até podem pensar que o são devido ao tempo que vivem entre humanos, mas estão errados. Existe algo faltando neles. Pode chamar isso de alma, se quiser. Alguns tornam-se monstros por conta disso. Outros tentam provar para si e para os demais que podem ser muito melhores do que os humanos que fingem ser.

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Bill vinha apresentando alguns sinais preocupantes; certo descuido com a própria reputação. Prostitutas chegaram a ser mencionadas. Pensou-se em drogas até. Felizmente ele conseguiu superar essa fase que poucos comentam e canalizar sua energia em uma direção mais produtiva.

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Essas criaturas artificiais detêm capacidades que foram ensinadas pelas Fadas. Alguns às descobrem quando confrontados com sua contraparte roubada. Outros às dominam desde muito cedo. Esses costumam ser os mais perigosos, pois prematuramente compreendem que estão à parte da humanidade.

Cena 05 – Joey e a Lorota

Rivers é um rosto conhecido o suficiente nos arredores do As Extremidades para que alguns moradores sintam-se encorajados em fazer-lhe pequenas confissões. De terceiros ele ouviu a respeito de um casal de convidados do clube que protagonizou uma história curiosa. Um certo Joey seria a fonte em primeira mão. A descrição da mulher envolvida lembra vagamente a de Rose Fairweather.

Contrariando a sugestão de Rivers, Kroll e Cutler chegam juntos. Dirigem-se sob olhos hostis até a mesa de sinuca.  Únicos brancos do recinto, lembram os policiais que agridem sem distinção e os funcionários da prefeitura, recém-chegados com discursos prepotentes de salvação.

Após algumas partidas onde o jogo é o de atração da presa, dois homens se aproximam. Kroll e Cutler mantêm o dinheiro trocando de bolsos, a conversa fluindo e os canecos cheios; o ambiente propício para o assunto que importa.

Na rodada seguinte, Joey é fisgado do bar que comanda e, como um ator acostumado a um velho papel, conta sua história.

Joey – Foi numa noite mais tranqüila do que essa. Tinha uns dez caras. Trabalhadores. A clientela de sempre. Era durante a semana. O pessoal vem aqui antes de aturar a mulher e as crianças. Bem, então entrou esse casal. Sentaram e pediram qualquer coisa bem forte pra beber. Eu vi o carro que eles chegaram, mas nem precisava. Eram o tipo de branco grã-fino que aparecia naquele clube ali em frente de vez em quando. Quando terminou, a mulher se encostou nessa mesa de sinuca e abriu as pernas. Era uma loira bonita, perfumada, mas mesmo assim o pessoal demorou pra entender. Sabe, tem umas histórias aí sobre o que acontecia no tal clube, mas ninguém nunca acreditou. Na verdade, ninguém gosta de falar muito. O lugar parece que atrai azar. Bem, mas então a loira abriu as pernas e o pessoal ficou só de olho. O primeiro que se chegou logo meteu nela. E então virou uma putaria. Um depois do outro, alguns mais de uma vez. Quando acabou, o marido, sei lá se era marido, alcançou o casaco dela e foram embora.

A descrição não é de Rose Fairweather. Em meio a perguntas para revelar detalhes da história, quando Joey reconhece que pode ter exagerado um pouco, tocam em um ponto nevrálgico.

Joey – Ninguém se importa com o clube. Quem manda aqui disse para todo mundo que era para não se importar, então, ninguém se importa. Eu só conto isso porque aconteceu aqui e, bem, a maior parte das pessoas que ouve não acredita mesmo.

Leroy Brown é o nome de quem diz o que é e o que não é importante, balbuciam seus companheiros de partida antes de saírem dali.