Sob uma Lua de Sangue - Capítulo 1

por Aramil em

“O céu e o inferno estão dentro de nós, e todos os Deuses estão dentro de nós.” - Joseph Campbell, The Power of Myth

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Para alguns, a morte não era inimiga. A vida, sim, era uma oponente bem menos misericordiosa.

Até mesmo os fantasmas que vagavam pela noite eram apenas sombras perto do terror que aquela noite de 2025 representava na vida da maioria dos desabrigados. Para os drogados com seus olhos rubros, para os dependentes químicos com seus cacoetes trêmulos, para todo tipo de mendigo que não queria congelar no inverno, a vida era apenas uma viagem de uma dose para outra entre dois focos de sofrimento.

A viagem em si era muitas vezes dolorosa demais para ser suportada sozinha. E nenhum ser humano normal poderia sobreviver no inverno daquela cidade. O desespero e o terror em Hamshire eram companhias constantes.

Klaus era apenas mais um estudante da Faculdade Estadual voltando para casa apressado, tentando não congelar na rua. Havia acabado de sair de uma longa aula de empreendedorismo e estava com pressa, assim como todos que caminhavam na rua naquela noite. Sua mente trabalhava rápido, pensando em tudo que o professor havia falado na aula anterior, revendo mentalmente a matéria enquanto amaldiçoava a semana de provas mais do que qualquer coisa.

Seus passos apressados se misturavam à cacofonia gerada pela multidão que passava pela Avenida Principal, a maioria conversando em voz alta, reclamando do frio e da neve que caía sem intervalos há uma semana.

Foi nessa noite que ele parou de andar quando a viu. Inicialmente era apenas um rosto aleatório na rua, sem nada em especial que pudesse ter chamado a sua atenção.

Mas não, havia algo nessa mulher, algo em particular, algo que o deixava desconfortável. E, tão rápido como ele a viu, ela sumiu novamente na multidão. Olhou ao redor, procurando por ela, seu coração começava a acelerar, achar a mulher era importante. Aonde diabos ela tinha ido?

Foi quando a viu novamente, dessa vez mais próxima dele, andando apoiada numa bengala tosca de madeira, tentando se equilibrar na neve que se acumulava aqui e ali no chão.

Ela era uma senhora de idade, aparentava já ter vivido algumas boas décadas e andava curvada, usando uma capa de chuva preta rasgada por cima de um casaco de lã. Seus cabelos brancos caíam pelo rosto e seus olhos se esforçavam para enxergar por trás de lentes grossas de um óculos velho. Era apenas uma senhora pobre, ele pensou, então por que ela representava tamanha ameaça?

Seu coração acelerava mais ainda a medida que ela se aproximava dele. Mas não importa. Nada mais importava naquele momento. Ele não podia perde-la de vista de novo ou não teria outra chance.

Mas chance de que? Era como se uma nuvem tivesse recoberto seus pensamentos e tudo que ele pudesse pensar era em se aproximar mais ainda dela. Precisava disso. Sim, era o melhor a se fazer. Na verdade, era a única coisa que importava na sua vida. É, ele tinha que achar aquela senhora de novo.

Largou o guarda chuva e o copo de café no chão no mesmo momento em que saiu correndo em meio a multidão, em meio a gritos indignados do namorado de uma garota que ele havia derrubado no chão enquanto corria empurrando a todos no caminho. Finalmente, ele havia a alcançado.

Esticou o braço e segurou-a pelo pulso com força. Antes que ela pudesse se dar conta do que estava acontecendo, ele havia jogado ela no chão com tamanha violência que até mesmo ele se espantou. Mas não importava, ia ficar tudo bem. O corpo dela era frágil e leve, seus pés mal tocaram o chão enquanto ela voava por cima da calçada e aterrisava de cabeça na porta de uma loja. Assustada e dolorida, a senhora não tinha nem mesmo forças para esboçar qualquer reação enquanto sentia a calçada fria e molhada contra o seu rosto.

Ele avançou novamente, empurrando para o lado um casal que havia parado, espantados demais com a cena para esboçar qualquer reação. Ignorando os gritos das pessoas, ele a levantou pelo braço para então desferir um soco certeiro em seu rosto. A força do golpe fez jorrar sangue no vidro da loja ao lado, aonde as pessoas começavam a se levantar, atraídas pelos gritos e a agitação na rua.

Alheio ao barulho a sua volta, Klaus desferiu um soco no estômago seguido de uma joelhada no rosto em um homem que havia tentado segura-lo, para então avançar novamente na velhinha.

Sua mente era uma neblina, seu rosto suava enquanto ele investia uma, duas, três vezes em socos contínuos na pobre senhora, que já não esboçava nenhuma reação. Parando apenas para pegar o guarda-chuva dela, que havia caído ao seu lado, o jovem continuava a socar o rosto dela, manchando tudo a sua volta com o sangue da vítima.

Por fim, segurando o guarda chuva como um punhal, ele ergueu os braços acima da cabeça, olhando fixamente para a senhora no chão.

“Por favor...” Foram as primeiras – e últimas – palavras que a senhora havia tido a chance de falar naquela noite.

Ele havia enterrado a ponta de metal do guarda chuva na barriga dela, banhando o corpo velho com sangue rubro, que agora escorrida como um rio de lágrimas pela barriga da senhora, descendo a calçada e afundando ambos, cada vez mais, em uma poça vermelha.

“Ei, você!” Gritou um homem, correndo em sua direção.

“Droga, há mais deles!” Pensou Klaus, enquanto se levantava, pronto para lutar. Olhando em volta, ele percebeu. “Há outros.. e outros!” Droga, todos estão aqui! Eram exatamente como a velha. Cada um a sua volta havia se tornado uma ameaça. Era impossível lutar contra tantos, mas pelo menos ele sabia que havia matado um deles.

Seus pensamentos estavam cada vez mais confusos e o suor escorria pelo seu rosto, ardendo em seus olhos. Enquanto isso, um grupo de homens uniformizados, vestidos de branco em roupas que protegiam o corpo inteiro apareceu na esquina. Os poucos segundos que ele havia se distraido foram suficientes para o homem que gritou dar um murro em seus rosto e derrubá-lo no chão, para logo em seguida ele se pereceber cercado pelos homens em branco.

E naquela noite, a última coisa que ele viu foi um rosto entranho, por trás de uma máscara e uma roupa que protegia o corpo todo, aonde se lia em letras vermelhas com o símbolo do governo ao lado: Centro de Controle de Doenças.