Sob uma Lua de Sangue - Capítulo 2

por Aramil em

“Os humanos pensam que sabem o que é a realidade e sobre o que é a vida. Eles acham que sabem por que podem pensar. ‘Penso, logo existo.’ Essa atitude é ‘Eu sou o topo da cadeia alimentar, então eu decido o que é real e o que não é’. O que eles não querem que exista, simplesmente não existe. Exceto, talvez, em seus sonhos. Ou pesadelos. Então, eles acabam vendo as sombras na parede da caverna, pensando que aquilo é como o mundo é realmente. Eles nunca olham para quem faz as sombras...” - Nancy Collins, In the blood.

 

Era noite em Hamshire.

Prédios antigos, letreiros luminosos, pessoas andando apressadas para casa. Enquanto as horas passam, as sombras crescem e engolem a calçada. As pessoas vão sumindo, o movimento diminui e a multidão de trabalhadores indo para casa começa a dar lugar aos mendigos, assaltantes, bêbados e prostitutas.

Nas portas de lojas, metrôs e igrejas, dormem as crianças de rua. Durante o dia elas pedem dinheiro, comem restos e as vezes até assaltam algum desavisado. Na escuridão, elas dormem juntas, apenas rostos sem nome, com medo, talvez até mesmo pressentindo as trevas que recobrem essa cidade.

E ali, em meio as sombras crescentes da cidade grande, recostado na porta de alguma loja antiga, estava um rapaz brincando com seu cachorro. John era seu nome.

John tinha aproximadamente 23 anos, era alto, branco e calado. Não demonstrava muitas emoções e não tinha muitos amigos, exceto um labrador chamado Coby. Toda a noite, John e Coby saíam para correr pelo bairro. Era um exercício tanto para o garoto, que não era muito adepto de academias, como para o cão, que já contava com seus 11 anos.

Eles estavam terminando a corrida daquela noite, fazendo apenas uma pausa para descansar um pouco antes de voltarem para casa. Havia sido uma noite tranquila e John estava acariciando Coby, que havia deitado na calçada.

Subitamente, o cachorro se levanta.

“Ei garoto, o que foi?” Pergunta o jovem.

O cachorro fareja o ar e rosna, olhando para as sombras na estação de metrô.

“Ah...” Diz John com um meio sorriso. “Então eles chegaram? Vamos dar nossas boas-vindas, Coby.”

Ali, esgueirando-se pelas sombras junto aos prédios, estão três homens. É fácil ver que estão armados pois não fazem a menor questão de ser discretos. Eles contam piadas obscenas e falam de mulheres, narrando um para o outro, como mataram essa ou aquela. Um deles sugere que as mulheres não deveriam ser mortas imediatamente, os outros começam a rir. Eles são altos, brancos, todos usavam cabelo comprido e vestiam roupas leves, alheios ao frio que fazia naquela madrugada.

Enquanto isso, o garoto se mistura às sombras e os persegue, seguido pelo cachorro.

“EI, mas o que-”

Um dos homens se assusta na mesma hora que John sai das sombras. Ele nem teve chance, a faca enterrada em seu pescoço o faz cair no chão no mesmo momento.

Um dos homens saca uma pistola mas é interrompido pelo cachorro, que o derruba no chão, rosnando, latindo e mordendo o pescoço dele. O terceiro recua para as sombras e saca a arma.

Quase não dá tempo, mas o garoto se joga atrás da escadaria da igreja enquanto o bandido abre fogo.

“Então, garotinho, como prefere morrer?” Grita o homem, ainda atirando contra as escadas.

John se levanta detrás da escadaria, as mãos estendidas para o alto.

“Se rendendo?” O homem ri com escárnio “Você vai se arrepender de ter matado meus irmãos, garoto. Eu não sou como os bandidos que vocês humanos estão acostumados a perseguir pelas noites.” O homem sorri novamente, revelando presas pontiagudas aonde antes deveriam haver dentes.

“Está tudo bem.” Diz John, com um meio sorriso no rosto. “Eu também não sou um humano qualquer.”

O sorriso do bandido foi diminuindo gradualmente a medida em que o garoto deixava escorregar um terço de ouro para fora de sua blusa. O terror caiu como um peso em cima da criatura da noite, que não conseguia mover nenhum músculo, enquanto John se aproximava lentamente dele.

“Vou perguntar apenas uma vez. Quem é o responsável pela zona que está acontecendo nessa cidade?”

O vampiro apenas sorri, cuspindo no chão.

John aproxima a faca do pescoço do bandido, que faz um careta de dor.

“Prata alquímica. Poderia cortar você e sua família toda e vocês não teriam tempo nem pra mostrar esses dentes horríveis. Agora fala: Quem é o responsável pelo que está acontecendo na cidade?”

O vampiro novamente sorri. “E quantos você conseguiria matar antes de morrer, garoto? Três? Vinte? Em breve vocês humanos vão estar se matando com tanta frequência que eu nem mesmo precisarei sair da minha ca-”

John força a faca pelo pescoço do vampiro, penetrando sua garganta, interrompendo-o antes mesmo dele terminar a frase.

As crianças fugiram, os tiros devem tê-las assustado e algum vizinho intrometido já deve ter ligado para a polícia. John limpa a faca, arruma sua blusa e volta a caminhar lentamente para casa.

Aquela noite estava só começando.

Já era madrugada quando John chegou em casa, cansado, suado e louco para dormir. Tirou a blusa e ficou brincando distraidamente com a faca, pensando, enquanto esperava o conhecido apito do microondas indicando que seu jantar estava pronto. Estava acostumado com criaturas da noite interferindo na vida das pessoas, mas aquela cidade estava uma verdadeira bagunça.

Pegou seu jantar e foi para o sofá. Ultimamente suas noites se resumiam em sentar no sofá, tendo por companhia um prato de lasanha de microondas, seu cachorro, sua faca e a conhecida voz da garota do noticiário noturno. Acidentes, algumas mortes, assaltos e escândalos políticos. Sua mãe costumava dizer que, caso fosse possível espremer o noticiário da televisão, ele escorreria sangue.

Aparentemente essa madrugada não seria diferente. O plantão da madrugada estava recheado de propaganda de todos os tipos: políticos, refrigerantes, carros e mulheres. Não parecia ser nada interessante e John já começava a arrumar suas coisas para ir dormir quando ouviu a tradicional música do plantão urgente. “Mas que diabos... São três horas da manhã!” Ele pensou, enquanto aumentava o volume para prestar atenção nas novidades.

O plantão de urgência era apresentado por um conhecido repórter gordinho, que trabalhava na emissora havia anos. John costumava ter pena do trabalho desse cara. Manhã ou noite, sol ou neve, lá estava ele aonde quer que houvesse uma notícia urgente a ser apresentada. As vezes dava a impressão de que a emissora só tinha dinheiro pra contratar esse cara, ou que ele era o único que topava esse tipo de trabalho.

O repórter está no meio de uma tempestade de neve, aparentemente precisando gritar para se fazer ouvir no microfone. Houve um ataque em uma das avenidas principais de Hamshire. Duas pessoas começaram uma briga no Exodus e uma delas havia acabado morta. O que era estranho, pois o Exodus era considerado um dos pubs mais seguros da cidade, um local para se ir com a família, provar da melhor cerveja do país e ter uma conversa civilizada, sem a presença dos incômodos bêbados. “Que idiotas, se eles soubessem o perigo que essa cidade está correndo, se preocupariam mais em proteger a própria família do que em ficar se matando em um bar.”O sono agora parece tomar conta do seu corpo, enquanto ele continua ouvindo a voz do repórter gordinho.

Ele olha o relógio na parede. São cinco horas da manhã.

“Devo ter cochilado.” Diz em voz alta, bocejando. “Faz quatro noites que não durmo direito."

Desde que havia começado a investigar esses ataques, John não conseguia dormir. Era como um sexto sentido, que colocava seu corpo em alerta e não permitia que ele descansasse.

Coby havia acabo de entrar na sala, se arrastando e agora recostava a cabeça no colo do dono. Para John, Coby era seu melhor – e único – amigo. Não havia muito tempo para vida social quando se passava o dia analisando dados e a madrugada investigando crimes misteriosos pela cidade.

O repórter na televisão continuava falando e John havia voltado a prestar atenção nas notícias. Dessa vez havia um mapa da cidade na tela. Ele não estava falando apenas sobre um ataque isolado, haviam vários. Parece que a cidade inteira resolveu explodir em encrenca essa noite. Um cara havia matado a sua esposa com o cinto, um genro matara o sogro com machadadas, dois caras se esfaquearam durante um jogo de poker, uma velhinha foi perfurada com um guarda chuva em plena praça pública... as notícias não paravam!

John estava parado, olhando com atenção a cena que era apresentada agora. Era uma gravação agitada, entre muita neve, aparentemente do local aonde a senhora havia sido morta por um cara, na frente de todo mundo. A televisão agora mostrava o chefe da área de homicídio, declarando que, até agora, a Polícia Federal não havia identificado nenhuma ligação entre os crimes. Eles só afirmavam que nenhum deles havia sido por roubo. Era como se as pessoas simplesmente resolvessem se matar no meio da rua, sem motivo nenhum!

Agora a emissora havia mudado para uma cena aonde a polícia prendia o assassino da senhora. “Como esses caras chegam tão rápido na cena do crime?” O cara se debatia, gritava e chorava em desespero. Uma pessoa poderia até mesmo acreditar que ele era a vítima, tamanho o drama que o cara fazia! Parecia desesperado, louco, seus olhos demonstravam nada além de medo.

O assassino havia sido identificado como Klaus, um estudante da faculdade pública local. O rapaz devia ter seus 20 anos de idade, branco, alto, uma cicatriz marcava seu rosto e...

“Meu Deus...” Sussurou John.

Coby havia aberto os olhos e agora olhava com cara de sono para o dono, que parecia estupefato na frente da televisão, sem mover um músculo.

“Ei garoto, eu vou na delegacia, preciso conversar com um sujeitinho e acho que não vai dar pra esperar até amanhã. Cuide da casa, certo?” Ele falava com o cachorro como se falasse com uma pessoa. Recebeu um latino animado de volta.

John Crowley havia levantado e agora estava mudando de roupa. Trocou o jeans e a tradicional camisa branca por um terno e mocassins. Retirous os alargadores da orelha e penteou o cabelo no espelho. Largou a faca em cima da mesa e pegou as chaves do carro.

A noite havia terminado, mas seu dia estava só começando.