Capítulo 6: Juramento do Mindinho

por SamCromwell em

"Eu juro". 

 

Tanto poder em num par de palavras. Dedosdepó achava engraçado que os homens pudessem mentir tanto. Os juramentos dos homens da lei eram uma piada diante de seus ganhos inescrupulosos. Os casais traíam-se sem remorso e suas crianças nem mesmo pensavam antes de contar uma lorota. 

Para os Perdidos não funcionava bem assim. O que quer que prometessem, haveriam de cumprir. Todo e qualquer Perdido só tivera alguma chance de escapar dos Gentis depois de algumas juras. Assim como ela lembrava muito bem de seu primeiro juramento. 

Lembrava ainda mais claramente do último. 

 

Tinha os cabelos embaraçados. Chorava por tantos motivos e por nenhum. A clareira em que estava parecia fechar-se lentamente como a boca de uma fera. A luz de seis estrelas verdes cintilava sobre aquele rio fino e prateado que dava voltas no céu. Era tão lindo. 

As árvores um dia tão belas e brilhantes estavam envoltas por uma roseira cheia de espinhos dos mais afiados. Cada rosa púrpura se movia como se tocada por uma brisa que não soprava. E o cheiro de grama, de chuva. Nunca chovia no reino de seu Dono. Ele não gostava de água, tal como ela passara a detestar. 

Seu amigo, o fogo, não se aproximava da floresta Dele. Estava sozinha. E a floresta estava com fome, podia sentir. Estava se aproximando tão rápido quanto podia, naquele odioso deslizar. Nem seu Dono, nem seu amigo viria ao seu encontro. 

Estava acabada. Sem aqui nem lá. Assim cria, até ouvir aquele tímido chamado. 

Ergueu os olhos para ver uma pequena criatura com cara de sapo na borda da clareira. 

- Psiu! - chamou o goblin, encarando-a com dois grandes olhos amarelos. - Por aqui! 

Dedosdepó estava paralisada. 

- Ande logo, menina! Não temos mais tempo. - o pequeno e gordo sapo tinha ao menos uma dúzia de chaves penduradas no pescoço e uma roupa de seda amarela. - Vem, vem, vem! 

Ela piscou, aturdida, antes de engatinhar e se erguer, correndo na direção dele. Viu que a criatura estava de pé bem diante de um buraco redondo no solo. 

- Pra dentro! 

 

Recostou-se num dos carros parados na porta e olhou para dentro, tentando evitar a sensação agoniante de que as árvores atrás dela inclinavam-se para devorá-la. Abriu seu isqueiro. O olho azul piscou para ela, sussurrando para que se acalmasse. 

Um casal cantava no hall de entrada, saudando aqueles que compareciam ao baile de caridade. Sozinhos ou em pares, homens e mulheres vestindo roupas pretas formais subiam o pequeno lance de escadas para dentro do museu. O negro representava o luto pelo quinto aniversário de morte de um grande filantropo da Cidade Cinza

Já sentia-se mal pelo que tinha de fazer. 

Naquela garganta gelada, no meio da Roseira, ela não pensara que seria tão difícil. Nem tão terrível. Sentia medo, era só, e queria fugir dali antes que os galhos a torcessem e costurassem. Não havia pensado que realmente haveria consequências. 

Os últimos convidados entraram pelo portal de madeira. Alguns dançavam lentamente ao ritmo da música. Outros se enamoravam, segurando seus cigarros com a pinça suave de seus dedos. Dedosdepó inspirou o ar frio. Maldita cidade. Estava sempre chovendo. O céu estava sempre nublado. Não admirava os hábitos dos cidadãos, com seus cigarros e tragos de bebida. 

 

- Aqui está bom. - disse o goblin, com sua voz gorgolejante. 

- Mas... 

- Sem mas. Você tá quebrada, criatura. Só não preciso de Cheiradores na minha porta. 

Haviam atravessado tantos túneis escuros que Dedosdepó não conseguiria se orientar sozinha através deles. Por fim, emergiram de uma rachadura discreta na parede de uma garganta. Na frente dela, uma cachoeira de águas claras chorava dentro de um lago raso. A luz das estrelas esverdeadas deixava o goblin ainda mais parecido com um sapo. 

- Por favor, não me deixe aqui. Elas vão me pegar. 

- Que peguem. Não tenho nada a ver com isso. 

- Eu faço qualquer coisa. Só não me deixe aqui, por favor. Eu juro- 

Dedosdepó arregalou os olhos. Não devia ter feito isso. Sentiu o arrepio subir por sua coluna e eriçar seu cabelo e cada um de seus pelos. Um formigamento nas pontas dos dedos lhe deu a certeza. Havia atado a si mesma numa corda invisível, sem nem mesmo definir a quê iria amarrar-se. 

goblin sorriu com dentes tortos e amarelos. Alisando a barriga com uma mão enrugada de dedos compridos. 

- Se é assim... Você jura e eu aceito, menina. 

- Eu... 

- Você vai sair. Eu coloco você fora. E quando chegar lá, você faz o que eu vou mandar. 

- Como eu sei que você não vai simplesmente me deixar na floresta? 

- Eu juro que deixo você fora da Floresta, longe da Roseira. - ele esticou a mão fechada, com o dedo mínimo esticado. - Juramento do mindinho. 

Dedosdepó viu uma sombra do outro lado do lago. Não havia outra escolha. Ela segurou o dedo enrugado com o próprio dedo mínimo. 

Lá onde eu vou deixar você tem uma casa de guardar coisas velhas. E eles sempre fazem um baile por lá. 

- Sim? 

A sombra do Cheirador se aproximava da cachoeira, curvando-se sobre as patas dianteiras e ziguezagueando entre as pedras. 

Você vai pôr fogo em tudo. Em todos. 

- Como?! 

Última chance. 

- Eu faço. 

- Que bom. 

Cheirador já estava quase mergulhando dentro da cachoeira quando o goblin forçou uma das chaves dentro da parede da garganta. Dedosdepó se desesperava. Não havia tempo para aquela  insanidade. 

A porta surgiu na pedra como se sempre estivesse ali. 

O  goblin a abriu. Olhando-a interrogativamente. 

- O que está esperando?! 

A Perdida se jogou pelo portal no momento em que a fera atravessava a água, encarando-os com dois grandes olhos vermelhos. 

 

que está esperando?!pensou ela.  

A música já estava chegando ao fim quando a Perdida subiu as escadas e fechou a porta. Batiam palmas. Emanavam um calor febril, um cheiro adocicado de Alegria. Ninguém deu atenção à porta que fechava. 

Ela derramou todo o conteúdo de sua bebida contra a porta. Dando um passo para trás e olhando em volta. A rua deserta permaneceria assim até que tudo estivesse ardendo. Não queria fazê-lo, mas a compulsão da promessa era mais forte do que imaginava. Acendeu o isqueiro, inflamando a porta de madeira. 

As línguas de chama amarela e azul lamberam o portal e Dedosdepó aproximou o rosto do fogo até sentir o calor arder sua face. 

Queime tudo. - disse ela para a chama. - Espalhe sem ninguém ver e queime tudo até não restar nada. 

As línguas de fogo se esticaram como serpentes, subindo pelas vigas de madeira na direção do teto. O fogo sob o comando da Perdida não desprendia fumaça. Se afastou a passo rápido. O prédio já brilhava como uma grande lamparina quando ela ouviu os primeiros gritos. 

A Perdida cobriu os ouvidos e correu pra longe, mas os gritos a acompanharam. As árvores gritaram em uníssono e por um momento ela achou que fosse enlouquecer. Subitamente, o silêncio abraçou novamente a cidade. 

Dedosdepó soluçava contra um poste.  

"Acabou, acabou, acabou", pensou ela consigo mesma.

Dentro do vidro da lâmpada, um par de olhos sorridentes olhava para o horizonte iluminado por tons de escarlate.