Capítulo 4: Lady Day
Dom Cinzento ficou de pé sobre a quina do edifício, esticando os braços e sentindo o vento tentar derrubá-lo. "Desista.", pensou ele. "Você não tem poder sobre mim.". Mesmo o vento mais furioso neste mundo não era comparável com a força aterradora do vento da Torre. O equilíbrio de Dom era impecável.
O terraço do Persona começava a se tornar seu lugar favorito naquela cidade patética. O letreiro de néon azul tremeluzia como o brilho de um crepúsculo, estendendo uma sombra arroxeada por alguns metros à sua volta. Através de dezenas de janelas, podia-se ver as sombras de amantes naquele frenesi em que se deixavam cair durante o sexo. Mas sua hora favorita era aquela em que a meretriz do oitavo andar terminava com um cliente. Chamavam-na Lady Day. Uma piada de mal gosto sobre uma cantora da Filadélfia.
Lady Day terminava seu trabalho, deixando o homem da vez exausto em sua cama, então aumentava o som de seu aparelho velho, punha uma música lenta e recostava-se na varanda para fumar um par de cigarros. Nem sequer imaginava que dois andares acima havia um Perdido escondido pelas sombras, aproveitando o gosto único de seu coquetel de emoções.
Dom se deixava embalar pela melodia, sentindo o vento frio na pele, e inspirava o gosto agridoce da Tristeza que cercava aquela mulher tão singular. Vinha misturada a uma nota quente e apimentada de Ira contida e um Desejo denso, reprimido. Tudo isso era inebriante ao ponto de incitar suas memórias.
A meretriz certas vezes juntava sua voz ao aparelho e a noite ganhava uma luz a mais. Mas a luz cria sombras novas. A Tristeza alcançava até mesmo o coração do Perdido, que pensava no filho que não vira crescer e no amor, agora seco e morto, pela mulher que um dia fora sua. Do lado de lá, ele ao menos tinha uma meta. Um motivo claro e gritante pelo qual viver uma noite depois da outra.
A solidão era a pior parte desta vida nova.
Embora houvesse encontrado Dedosdepó e aqueles que a Perdida chamava de amigos, ainda sentia-se sozinho. Os outros pareciam estar superando o lado de lá. Faziam festas em volta de fogueiras no jardim da sede da Vernissage, enchiam o Millano's sempre que Olhos Amarelos subia no palco para cantar. Alguns cochichavam sobre criar toda uma sociedade de Perdidos, escondida bem à vista.
A maior parte dos Perdidos da Vernissage estava tentando esquecer o lado de lá, procurando novos hábitos. Esquecendo das dores tanto quanto podiam. Alguns viam seus estranhos poderes como uma maravilha. Seduziam humanos, dando-lhes cor à vida. Visitavam seus sonhos, para semear ideias. Caçavam homens maus nas esquinas e nos becos escuros.
Dom não via sentido nisso. Não se encaixava. Não o atraía. Nada o atraía, exceto aquela mulher, com suas emoções confusas e suas camisolas cor de rosa. Mas haveria de observar, apenas. Acima daquela atração, havia o Medo. Aquele sentimento amargo no fundo da garganta. A sensação de que havia algo caminhando e escondendo o som dos passos nos dele. De que um vulto bailava de sombra em sombra, evitando seu olhar. A Fuga ainda não acabara.
Como poderia trazer aquelas curvas cor de rosa para essa Fuga interminável?
Amaldiçoá-la com esta sensação de temor ininterrupta. Não. Preferia, de corpo e alma, que a solidão permanecesse consigo apenas. Dela teria apenas a Tristeza, a vista e a voz.
Neste ponto, a melancolia tornava-se demais. A vontade de fugir daquilo se tornava uma necessidade e Dom terminava sua noite, jogando-se do alto para cair, esquecer, sonhar e cair.
Na Torre, cair era um jogo. Um jogo cruel, doloroso e insano, mas um jogo. Muitos desistiam, ao perceber que era impossível vencer o Mestre. Aceitavam seu destino. Não ele. Para ele, os dias de tortura e as noites de tentativas frustradas passavam como um piscar de olhos. Precisava vencer. Precisava fugir. Sua família o estava esperando.
O jogo era simples: salte e não seja pego, alcance o chão e fuja, passe dos Espinhos e está livre.
Mas nada do lado de lá era simples.
O Mestre os capturara e os pusera como vigias de seu domínio. Tal qual o Mestre, eram impedidos de agir durante o dia. A luz do sol os punha paralisados. Todos eles. Assim, ficavam como estátuas, com a pele queimando ao sol e sofrendo ao vento, enrugando na chuva e congelando no frio. Quando, por fim, a escuridão chegava, conseguiam se mover, mas a maior parte deles estava fraca demais para fugir e se encolhia nas cavernas da Torre para implorar por alimento.
Os mais corajosos tentavam a Fuga, mas parecia impossível. O Mestre estava sempre à espreita. Pegava-os no meio da queda. Aqueles que alcançavam o chão não iam longe. O terreno era difícil e havia Coisas lá. Se não estivessem num lugar seguro até a primeira luz, teriam mortes terrivelmente lentas.
Assim, Dom Cinzento juntou as migalhas, lambeu as feridas e esperou. Fez aliados e alianças. Tinha um plano. Levou uma eternidade para que juntasse comida o suficiente, mas finalmente chegou o dia. Dividiu toda a comida que conseguira entre aqueles que foram bravos o suficiente. Confiavam nele, chamaram-lhe de Dom. Dom Cinzento. Mas Dom só queria fugir. Não se importava realmente com os outros. Como havia se tornado egoísta.
Naquela noite, saltaram juntos. Eram tantos. Tão poucos alcançaram o chão. Fugiram. E havia pedras, riachos, árvores retorcidas. Já não conseguia recordar de tudo. Mas lembrava dos últimos instantes.
Só restavam eles dois. Dom e aquele outro. Os Espinhos furaram suas mãos e rasgaram sua pele. Sangraram e ficaram recobertos de vermelho. E ainda havia uma queda. Um precipício. Um poço, talvez. Não lembrava. Ouviam o Mestre se aproximando. Não havia tempo. Ele os pegaria durante o salto. Não haveria outra chance.
Não sabia como aquele Espinho havia parado em suas mãos, mas não importava. Cravou a videira com toda a força entre as costelas do outro Perdido. O olhar dele ainda aparecia em seus sonhos. A surpresa, a dor, a raiva de perceber a traição se estamparam num esgar maníaco na face coberta de riscos escarlate.
Saltou.
O outro se arrastou para a borda e caiu também.
Ouviu o farfalhar das roupas, das asas. As sombras, os vultos. O grito desesperado de dor. O Mestre pegou o outro. E continuava vindo. Estava vindo. Estava próximo. Tão próximo.
A água o abraçou com o aperto bruto e frio da esperança. Estava livre. Estava... Caindo. Precisava cair.
Conseguiu sair da Torre, mas a Torre não saiu dele. Agora a altura era uma necessidade. E a Fuga não terminara. Podia sentir no fundo de seu ser. O Mestre não aceitava que seus vigias se Perdessem. Não era um jogo. Ele estava vindo.
Dom tocou o chão. Seu coração estava acelerado. Vira sombras enquanto caía. Sombras vastas e trêmulas. Seu Medo desencadeara um descontrole naquela escuridão que geralmente o protegia da percepção. Subitamente, a noite pareceu mais escura. Os postes enfraqueceram, o vento soprou mais forte, a neblina tornou-se mais densa.
Aquela escuridão era, para o Perdido, um alerta.
Apenas um ser podia tornar a noite tão aterradora. E este ser pertencia ao lado de lá.
Este ser era o Mestre. E ele estava vindo.