Capítulo 4: Lady Day

por SamCromwell em

Dom Cinzento ficou de pé sobre a quina do edifício, esticando os braços e sentindo o vento tentar derrubá-lo. "Desista.", pensou ele. "Você não tem poder sobre mim.". Mesmo o vento mais furioso neste mundo não era comparável com a força aterradora do vento da Torre. O equilíbrio de Dom era impecável. 

O terraço do Persona começava a se tornar seu lugar favorito naquela cidade patética. O letreiro de néon azul tremeluzia como o brilho de um crepúsculo, estendendo uma sombra arroxeada por alguns metros à sua volta. Através de dezenas de janelas, podia-se ver as sombras de amantes naquele frenesi em que se deixavam cair durante o sexo. Mas sua hora favorita era aquela em que a meretriz do oitavo andar terminava com um cliente. Chamavam-na Lady Day. Uma piada de mal gosto sobre uma cantora da Filadélfia. 

Lady Day terminava seu trabalho, deixando o homem da vez exausto em sua cama, então aumentava o som de seu aparelho velho, punha uma música lenta e recostava-se na varanda para fumar um par de cigarros. Nem sequer imaginava que dois andares acima havia um Perdido escondido pelas sombras, aproveitando o gosto único de seu coquetel de emoções. 

Dom se deixava embalar pela melodia, sentindo o vento frio na pele, e inspirava o gosto agridoce da Tristeza que cercava aquela mulher tão singular. Vinha misturada a uma nota quente e apimentada de Ira contida e um Desejo denso, reprimido. Tudo isso era inebriante ao ponto de incitar suas memórias. 

A meretriz certas vezes juntava sua voz ao aparelho e a noite ganhava uma luz a mais. Mas a luz cria sombras novas. A Tristeza alcançava até mesmo o coração do Perdido, que pensava no filho que não vira crescer e no amor, agora seco e morto, pela mulher que um dia fora sua. Do lado de lá, ele ao menos tinha uma meta. Um motivo claro e gritante pelo qual viver uma noite depois da outra. 

A solidão era a pior parte desta vida nova. 

Embora houvesse encontrado Dedosdepó e aqueles que a Perdida chamava de amigos, ainda sentia-se sozinho. Os outros pareciam estar superando o lado de lá. Faziam festas em volta de fogueiras no jardim da sede da Vernissage, enchiam o Millano's sempre que Olhos Amarelos subia no palco para cantar. Alguns cochichavam sobre criar toda uma sociedade de Perdidos, escondida bem à vista.

A maior parte dos Perdidos da Vernissage estava tentando esquecer o lado de lá, procurando novos hábitos. Esquecendo das dores tanto quanto podiam. Alguns viam seus estranhos poderes como uma maravilha. Seduziam humanos, dando-lhes cor à vida. Visitavam seus sonhos, para semear ideias. Caçavam homens maus nas esquinas e nos becos escuros.

Dom não via sentido nisso. Não se encaixava. Não o atraía. Nada o atraía, exceto aquela mulher, com suas emoções confusas e suas camisolas cor de rosa. Mas haveria de observar, apenas. Acima daquela atração, havia o Medo. Aquele sentimento amargo no fundo da garganta. A sensação de que havia algo caminhando e escondendo o som dos passos nos dele. De que um vulto bailava de sombra em sombra, evitando seu olhar. A Fuga ainda não acabara.

Como poderia trazer aquelas curvas cor de rosa para essa Fuga interminável?

Amaldiçoá-la com esta sensação de temor ininterrupta. Não. Preferia, de corpo e alma, que a solidão permanecesse consigo apenas. Dela teria apenas a Tristeza, a vista e a voz.

Neste ponto, a melancolia tornava-se demais. A vontade de fugir daquilo se tornava uma necessidade e Dom terminava sua noite, jogando-se do alto para cair, esquecer, sonhar e cair. 

Na Torre, cair era um jogo. Um jogo cruel, doloroso e insano, mas um jogo. Muitos desistiam, ao perceber que era impossível vencer o Mestre. Aceitavam seu destino. Não ele. Para ele, os dias de tortura e as noites de tentativas frustradas passavam como um piscar de olhos. Precisava vencer. Precisava fugir. Sua família o estava esperando. 

O jogo era simples: salte e não seja pego, alcance o chão e fuja, passe dos Espinhos e está livre. 

Mas nada do lado de lá era simples. 

Mestre os capturara e os pusera como vigias de seu domínio. Tal qual o Mestre, eram impedidos de agir durante o dia. A luz do sol os punha paralisados. Todos eles. Assim, ficavam como estátuas, com a pele queimando ao sol e sofrendo ao vento, enrugando na chuva e congelando no frio. Quando, por fim, a escuridão chegava, conseguiam se mover, mas a maior parte deles estava fraca demais para fugir e se encolhia nas cavernas da Torre para implorar por alimento. 

Os mais corajosos tentavam a Fuga, mas parecia impossível. O Mestre estava sempre à espreita. Pegava-os no meio da queda. Aqueles que alcançavam o chão não iam longe. O terreno era difícil e havia Coisas lá. Se não estivessem num lugar seguro até a primeira luz, teriam mortes terrivelmente lentas. 

Assim, Dom Cinzento juntou as migalhas, lambeu as feridas e esperou. Fez aliados e alianças. Tinha um plano. Levou uma eternidade para que juntasse comida o suficiente, mas finalmente chegou o dia. Dividiu toda a comida que conseguira entre aqueles que foram bravos o suficiente. Confiavam nele, chamaram-lhe de Dom. Dom CinzentoMas Dom só queria fugir. Não se importava realmente com os outros. Como havia se tornado egoísta. 

Naquela noite, saltaram juntos. Eram tantos. Tão poucos alcançaram o chão. Fugiram. E havia pedras, riachos, árvores retorcidas. Já não conseguia recordar de tudo. Mas lembrava dos últimos instantes. 

Só restavam eles dois. Dom e aquele outro. Os Espinhos furaram suas mãos e rasgaram sua pele. Sangraram e ficaram recobertos de vermelho. E ainda havia uma queda. Um precipício. Um poço, talvez. Não lembrava. Ouviam o Mestre se aproximando. Não havia tempo. Ele os pegaria durante o salto. Não haveria outra chance. 

Não sabia como aquele Espinho havia parado em suas mãos, mas não importava. Cravou a videira com toda a força entre as costelas do outro Perdido. O olhar dele ainda aparecia em seus sonhos. A surpresa, a dor, a raiva de perceber a traição se estamparam num esgar maníaco na face coberta de riscos escarlate.

Saltou. 

O outro se arrastou para a borda e caiu também. 

Ouviu o farfalhar das roupas, das asas. As sombras, os vultos. O grito desesperado de dor. O Mestre pegou o outro. E continuava vindo. Estava vindo. Estava próximo. Tão próximo. 

A água o abraçou com o aperto bruto e frio da esperança. Estava livre. Estava... Caindo. Precisava cair. 

Conseguiu sair da Torre, mas a Torre não saiu dele. Agora a altura era uma necessidade. E a Fuga não terminara. Podia sentir no fundo de seu ser. O Mestre não aceitava que seus vigias se Perdessem. Não era um jogo. Ele estava vindo. 

 

Dom tocou o chão. Seu coração estava acelerado. Vira sombras enquanto caía. Sombras vastas e trêmulas. Seu Medo desencadeara um descontrole naquela escuridão que geralmente o protegia da percepção. Subitamente, a noite pareceu mais escura. Os postes enfraqueceram, o vento soprou mais forte, a neblina tornou-se mais densa. 

Aquela escuridão era, para o Perdido, um alerta. 

Apenas um ser podia tornar a noite tão aterradora. E este ser pertencia ao lado de lá

Este ser era o Mestre. E ele estava vindo.