Prelúdio: O Homem-Estranho
Na beirada de um terraço, um homem-estranho se inclinava na direção do chão abaixo, observando os pedestres que daquela altura pareciam pequenos pontos escuros com seus guarda-chuvas. O vento fustigava suas roupas, fazendo-as esvoaçar furiosamente de um lado para o outro. As gotas d'água dançavam, espiralando pelo ar, conforme a chuva começava a cair.
Sob as nuvens escuras, naquela cidade de luzes brancas e fracas, tudo parecia cinzento. Apesar da pequena lâmpada que brilhava sobre a porta do terraço, parecia que as sombras tentavam abraçar o homem-estranho.
Para olhos curiosos, pareceria um suicida, tomando coragem para tirar a própria vida. Para quem olhasse das janelas dos prédios vizinhos, pareceria uma gárgula de rocha, tão rígido e parado estava ele: apenas uma sombra curvada na direção do vazio.
Esperou que chovesse.
Tão logo a tempestade desabou sobre a cidade, escurecendo de uma vez as luzes fracas dos postes, o homem-estranho se jogou para a queda de dezenas de metros diante de si. Não caiu como aquele que busca a morte, mas como um paraquedista concentrado.
Sua sombra passou tão veloz pelas janelas do prédio, que um homem grisalho e cinzento, fumando um cigarro na varanda, nem mesmo o viu. Caiu com braços e pernas juntos de si, olhos fixos no chão. Um segundo antes da colisão, girou numa cambalhota, apontando os pés juntos para o solo. Então, a gravidade piscou os olhos.
O homem-estranho pousou na calçada com a leveza de um gato. Um morcego passou diante da luz do poste exatamente no momento em que ele chegava ao chão e pareceu que ele sempre estivera ali.
Olhou para a vitrine diante de si. A loja estava às escuras e por isso refletia a sua silhueta iluminada pelo poste. No vidro molhado, um ser de pele rija e cinzenta olhava de volta. Tinha chifres curvos saindo do topo da testa, garras grossas e curvas na ponta de cada um dos dedos e olhos negros como piche. Esse monstro, no entanto, tinha um semblante atormentado e triste.
Meneando a cabeça, o homem-estranho abandonou o reflexo, seguindo rua abaixo na direção do centro. Chovia, encharcando seu cabelo denso e preto. Ventava, balançando seu sobretudo escuro. Estava frio, mas ele estava acostumado ao frio. Sozinho, ouvia apenas os próprios passos, enquanto a neblina se desprendia do chão, subindo como se a cidade estivesse respirando.
Dedosdepó dizia que eram Perdidos. Talvez estivesse correta. O homem-estranho sentia-se mesmo Perdido.
A reconhecera como tal desde o momento em que a vira sentada num canto escuro do bar. Dedosdepó bebia qualquer coisa que não água, conversando com a chama de seu isqueiro. Ninguém parecia perceber, tal como não percebiam os chifres do homem-estranho, mas as mechas ruivas de Dedosdepó se moviam sozinhas, como uma chama. Ela falava e luz avermelhada brilhava no fundo de sua garganta. Uma Perdida. A única que conhecera até então.
O homem-estranho parou diante de uma casa no subúrbio. Ouvia o som da risada de uma criança. Um garoto. Olhou pela janela, oculto pelas sombras. Seu filho corria pela sala, seguido por uma réplica de quem o homem-estranho fora um dia.
Estranhamente, não sentia raiva da cópia. Aquele garoto, que sabia ser seu filho, também lhe era estranho. Estava alguns anos mais velho, talvez quatro ou cinco. Aquele já não era mais seu lugar. A cópia parecia mais com ele do que ele mesmo. Dedosdepó estava correta. O lugar deles era com outros Perdidos.
O endereço que Dedosdepó o havia indicado ficava numa esquina comum na Cidade Baixa. Árvores velhas e sem folhas se espalhavam pelo jardim e ao longo da calçada. O homem-estranho se aproximou do portão de ferro e empurrou a grade. Estava aberto.
Subiu com cautela pela estrada de tijolos cinzentos. O casarão tinha algumas poucas janelas iluminadas por lâmpadas fluorescentes. Preto e branco. Toda aquela cidade parecia monocromática.
Bateu à porta. E outra vez. E outra.
Cinco minutos passaram e ele já se preparava para ir embora, quando a porta abriu. Uma Perdida o encarou com dois grandes olhos amarelos.
- Quem é você e quem te chamou? - perguntou ela.
- Dedosdepó me chama de homem-estranho. Meu nome é Dom Cinzento.
- Ah! Ela nos falou de você. Entre.
Dom passou pelo umbral medindo os passos, enquanto a Perdida de Olhos Amarelos fechava a porta e o seguia.
Olhos Amarelos: Se você veio é porque percebeu que não tem mais espaço pra você na sua vida antiga.
Dom assentiu.
- Assim sendo, estás conosco. Bem vindo à Vernissage de l'Automne. Pode chamar de Verni.
Falando isso, Olhos Amarelos riu consigo mesma, como um gato ronronando, e abriu a porta que terminava o corredor. Na sala que se revelou diante de si, Dom viu o mais estranho, destoante e fantástico grupo que já vira. Uma dúzia ou mais de Perdidos. Animalescos, belos, assustadores, grandes e pequenos. Um bando de deslocados como ele.
De um canto, ouviu a voz conhecida, enquanto Dedosdepó fechava o isqueiro e se dirigia a ele:
Dedosdepó: Então, homem-estranho, o que acha dos meus amigos?