Capítulo 19 – Questões de Família

por Hentges em

Décimo-nono capítulo da crônica Os Espaços Vazios, publicada no blog The Truth's For Sale.

Sábado, 06/02/2010

Cena 01 – Receio

Kroll – Eu não vou entrar aí.
Cutler – Não vamos até a árvore. A idéia é descobrir onde fica a casa da foto.
Kroll – Foda-se! Eu não preciso de cicatrizes novas.
Rivers – Olha, eu acho que vale dar uma olhada. Não vi o que vocês viram, mas pessoas morreram. E a garota que sumiu, Donna, pode estar no parque.
Kroll – Fique vivo hoje e siga em frente amanhã. É isso o que eu acho. Além do mais, o cheiro do Mogli deve estar forte o bastante em nós para que os outros sintam.
Cutler – Vamos dar uma olhada no As Extremidades. Assim não perdemos a noite.

Antes de partirem das imediações do Parque Fairmount, Cutler faz uma ligação para o 911. Inventa uma baderna que alguns garotos estariam causando junto de um campo de futebol americano. Não é longe de onde imagina estar Donna. Se os policiais esbarrarem com ela, estará segura.

 Domingo, 07/02/2010

Cena 02 – Lembranças de outro lugar

No caminho até o As Extremidades Rivers recorda as mortes de Tyrone, há pouco mais de uma semana, e de uma viciada, dois dias atrás. Por conta disso, sugere que os moradores da região – comumente acuados entre policiais e traficantes – sejam evitados.

O primeiro piso do prédio, debilmente impedido pelos mesmos tapumes removidos em visitas anteriores, está intocado. Avançam receando o que Kroll e Cutler, então acompanhados por Charles Kallinger, viram quando aqui estiveram; ou o que Rivers afirma ter encontrado poucas horas depois.

O segundo andar recende a gasolina utilizada na fracassada tentativa de incêndio. A máquina de costura antiquada, ao centro da sala, é o único objeto relevante da decoração. Há fragmentos de máscaras junto do armário derrubado. Porém, existe algo de decadente que certamente o ambiente não tinha antes. Ainda que mais sutil, parece o mesmo efeito testemunhado na loja do Sr. Claude, Por Trás da Máscara.

Cena 03 – Sr. Claude, Por Trás da Máscara

No terceiro piso os corpos de Tailor e do casal de amantes foram empilhados. Mas sumiram. Nem mesmo traços de sangue ou de suas peles presas à parede restaram. A escada prateada desapareceu e o forro não guarda marcas de uma abertura que possa um dia ter havido ali. Todo o andar parece um depósito onde, ao centro, se destaca a figura de um homem sobre uma cadeira.

Com a cabeça pendendo mal-equilibrada pelo frágil pescoço, o Sr. Claude jaz inerte com o rosto parcialmente encoberto por um molde partido. Aos seus pés estão três peças nas mesmas condições. Na mesa próxima, ao alcance do braço, mais duas, essas intactas.

Cutler verifica a pulsação. Fraca, mas estável. A mesma condição em que encontraram Tom. Kroll observa a fina camada de poeira acumulada sobre os moldes. Toma um deles entre as mãos.

Rivers – Você não está pensando em…
Kroll – Sim, alguém tem que fazer.
Rivers – OK, só para eu entender… Tem esse cara aqui, desmaiado. E um garoto em coma. Os dois com essas coisas no rosto. E você vai colocar uma delas na sua cara?
Kroll – Pode ser o único jeito de ajudar.
Rivers – É, pode. Mas te ocorreu que fazer isso pode ser a última coisa que vai fazer? Fique vivo para seguir em frente. Foi você que acabou de dizer isso.

Rivers se afasta algo irritado com o que considera insensatez. Kroll vasculha os bolsos do Sr. Claude. Há cerca de US$ 500 e uma fruta partida ao meio. Deixando o dinheiro de lado, observa a casca amarelo-esverdeada e rugosa. O pomo está escuro pela oxidação. Jamais viu outra como essa antes.

Voltando do terraço, onde não achou nada mais interessante do que observar os vizinhos dos prédios próximos, Cutler ajuda Rivers a levar o Sr. Claude até o carro.

Rivers – Sem escada de prata.
Cutler – É. O lance de escadas que usei para subir agora ficava do outro lado do andar.
Kroll – Eu lembro muito bem do que aconteceu aqui. Não estamos enganados.
Cutler – Não estamos. E isso é o mais estranho.

Cena 04 – Baixas, Altas

Cutler entra sozinho no Hospital Saint Joseph. Afirma ser o Sr. Claude um desconhecido que encontrou caído na rua. Em nenhum momento sua argumentação é questionada. Reponde perguntas de praxe para o caso da polícia precisar de dados adicionais.

Kroll, enquanto isso, descobre que Tom foi transferido, por ordem de Rose Fairweather, a uma clínica particular. Infelizmente, o hospital não tem autorização para ceder o endereço.

Cena 05 – Paraíso Artificial

Depois de verificar como Mogli se encontra, a sujeira malcheirosa do banheiro é problema para o dia seguinte, Kroll resolve deitar-se. Quase sem perceber, ele e Cutler estão mudando-se para a casa que pertenceu a Jebediah Stone.

O antiquário, contudo, tem planos para aquela noite. Descasca um pedaço da fruta encontrada com o Sr. Claude e prova uma fatia. Parece pêra, mas é menos suculenta. De tudo o que seu empirismo poderia esperar, resultado algum é o que menos lhe agrada.

Ao deitar-se, não consegue dormir.

Decide vaguear pela casa. Parece tudo bem com Mogli. Kroll descansa em um dos quartos do segundo andar. Mas o que houve com a porta para o sótão? Cutler vai e volta três vezes. Certamente não está no corredor errado. Sua primeira lembrança é da coisa comendo livros que viu apenas uma vez. Chegar até onde se deu a troca de olhares, entretanto, é impossível. As salas estão em locais errados ou sequer existem. Finalmente encontrando a porta da frente, pára e observa a rua durante a madrugada. Sua tranqüilidade é quebrada por algo arremessado de um veículo. A garrafa espatifa-se contra o asfalto e espalha cacos pela calçada.

Cutler – Onde é que você está?
Kroll – Uhn….Ahn?
Cutler - Onde é que você está, porra?
Kroll – No quarto do segundo andar. Alguém mais sumiu?
Cutler – Não. Vem até a sala!

(…)

Kroll – O que foi?
Cutler – Nada.
Kroll – Mas que merda… Por que me acordou?
Cutler – Por nada. Vai dormir.
Kroll – Vai se foder!

Recolhendo-se ao seu quarto, Cutler segue o conselho que acabara de dar.

Cena 06 – A velha casa

É meio-dia e o Parque Fairmount está lotado. A temperatura amena leva famílias inteiras aos gramados, quadras esportivas e alamedas da imensa área verde. Até então um transtorno, a neve tornou-se munição das brincadeiras de criança.

Orientando-se pelas placas que apontam os principais sítios históricos do parque, Cutler e Kroll buscam encontrar o local onde Donna Skinner e Thomas Clay fotografaram. A residência ao fundo da imagem, não resta dúvida, é uma das áreas ainda não restauradas que abundam no Fairmount.

A busca tem sucesso nas proximidades de um lago congelado. Dali se pode avistar a escola onde Thomas e Donna estudam. Para alívio de ambos, estão a quilômetros de distância de onde tiveram seu encontro mais infeliz. Após cruzarem uma barreira natural formada pela vegetação, deparam-se com a velha construção de dois andares. Uma de suas paredes tem pichado o escudo de um time escolar de hóquei. Cutler percebe movimentação junto da janela.

Circundam a construção centenária. Há uma varanda, além da saída de fundos e a entrada principal. Qualquer uma das janelas despedaçadas poderia ser passagem para uma fuga. Rotas demais para cobrir. Ainda assim, Kroll permanece observando do lado de fora.

Lá dentro Cutler encontra um lampião e uma mochila escolar: livros e cadernos de Donna Skinner. Não há nada na janela onde acredita ter visto algo. A luz daquele início de tarde ajuda a discernir almofadas coloridas e um aparelho de som portátil junto de cinzeiros carregados. Do segundo piso vem o som das tábuas protestando sob os pés de invasores.

Cutler – Donna, aqui é o detetive Ox. É melhor você descer até aqui.

Kroll junta-se a Cutler nas escadas que levam ao segundo andar. Da porta ao fundo do corredor apenas uma fresta se abre. A adolescente que olha para fora não é Donna, mas parece ter a mesma idade.

Cutler – Donna, a sua mãe nos mandou aqui. Ela está preocupada. Nós vamos levar você e sua amiga, agora.

As duas adolescentes deixam o quarto abraçadas. Amparam-se.

Donna – Estamos encrencadas?
Cutler – Depende. Eu sei o que vocês vêm fazer aqui… Drogas, putaria…
Kristy – Não, nós não. Tem um pessoal mais velho, da escola, mas nós nunca fizemos nada.
Kroll – E o Thomas? Vocês vieram encontrar ele.
Donna – Sim. Ele me ligou. Disse que alguém tinha entrado na casa dele. Ele conseguiu fugir, mas não conseguia falar com os pais. Achou que tivesse acontecido alguma coisa, mas estava com medo.
Cutler – E onde ele está?
Donna – Não sei. Quando chegamos, ontem, ele estava estranho. Queira que ele falasse com a polícia, mas ele mal falou comigo. Disse que tinha que sair. E não apareceu mais.

Cutler vai até o quarto de onde saíram as garotas. Há um colchonete e algumas sacolas de supermercado. Na parede, talhos recentes deixaram marcas abaixo da esquadria da janela. Seu tracejado incompleto lembra a frase gravada repetidas vezes na prancheta que Thomas recebeu em seu aniversário:

- Eles são meus.

Kroll – Donna, é muito importante que você nos ajude a encontrar Thomas. Ele disse algo diferente, esquisito?
Donna – Ele disse uma coisa. Ele falou, antes de sair, que ia encontrar a mãe.

Cena 07 – Epílogo

Kroll – Liguei para ter notícias de Tom.
Fairweather – Olá, Sr. Kroll. Tom está bem. O transferi para uma clínica particular. Um local onde pode receber melhores cuidados.
Kroll – Eu gostaria de visitá-lo.
Fairweather – Creio que isso não será possível hoje… Mas anote o endereço. Espero pelo senhor amanhã.

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Cutler – Elas vão ficar bem.
A.Skinner – Espero que sim. Elizabeth, a mãe de Kristy, estava muito preocupada.
Cutler – Ao menos isso está resolvido.
A.Skinner – Eu falei para ela que o senhor estava cuidando de tudo, detetive. Mas ela falou com a polícia. Disseram que não havia nenhum detetive Ox no caso.
Cutler – É natural. Estou cuidando do desaparecimento de Thomas e do homicídio de seus pais. Donna e Kristy sequer foram consideradas desaparecidas pela polícia. Boa tarde.
A.Skinner – Boa tarde, detetive Ox.

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Kroll – Estou com algo que você vai querer ver. É…
Kallinger – Não quero saber.
Kroll – Como assim?
Kallinger – Já disse que não quero mais envolvimento com as merdas que vocês andam fazendo.
Kroll – Mas eu ainda nem disse o que é.
Kallinger – Tanto faz. Especialmente enquanto o tal Oak estiver pela universidade.
Kroll – Sim, sim… Sempre a mesma porra de história da porra da sua carreira.

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O Sr. Claude dorme com as mãos mutiladas sobre o peito. Respira pausadamente. Do bolso, Cutler tira um pedaço da fruta que encontraram em posse do velho artesão. Coloca em sua boca e o ajuda a mastigar e engolir. Não demora até o aparelho de monitoramento acusar palpitações. Os olhos cegos de Claude abrem-se e voltam-se na direção de Cutler. Tenta falar, mas som algum escapa da garganta. Lágrimas lhe surgem nos olhos. Alaranjadas e depois de um sangrento vermelho vivo.

E então Cutler é retirado do quarto pela equipe médica.