Capítulo 20 – A Bela Dama sem Piedade
Domingo, 07/02/2010
Cena 01 – Sono na Árvore Frondosa
Kroll – E vocês acham que todos eles são cópias?
O frio daquela noite faz latejar a mão engessada de Kroll. Tira com dificuldade o rolo de cordas do porta-malas.
Cutler – Não sei. Não tem como saber. Mas hoje vamos dar um jeito nessa árvore.
Um galão de gasolina e uma sacola com pedaços de carne são separados por Cutler. Rivers tem os olhos na arma em sua cintura.
Rivers – E quando sabemos que é hora de usar isso?
Cutler – Quando as coisas começarem a dar errado. Geralmente é fácil de perceber.
Kroll – É quando eu começo a sangrar.
Caminham em silêncio em direção de onde esteve a árvore. Não sabem o que encontrarão dessa vez. Cutler chama atenção para o vento soprando contra a vegetação. O som é mais intenso do que seria de se esperar pela brisa noturna.
Após quase dez minutos avistam um adolescente deitado em posição fetal junto do tronco largo da árvore. Veste roupas inapropriadas para o relento. Cutler toma o galão de gasolina e a contorna, dando início aos preparativos para o incêndio. Rivers saca a câmera e registra a aproximação de Kroll. É Thomas, murmurando entre os dentes cerrados enquanto dorme: Tom…Tom…
Seus olhos se abrem de súbito. Tem nas mãos a faca de cortar carne a qual dormia abraçado. O olhar transtornado é de um animal na defensiva.
Kroll – Você deve estar com frio.
Tentando não representar ameaça, Kroll desce o fecho do pesado casaco de inverno. Thomas salta sobre ele. A faca rasga tecido sem encontrar carne. Rivers guarda a câmera no bolso e procura pela arma. Atrás da árvore, Cutler julga que os dois são capazes de cuidar do adolescente sem que ele precise intervir.
Kroll golpeia tentando afastar Thomas. Com o canto do olho, percebe a movimentação de Rivers. Apenas depois de ter a coxa perfurada reúne forças para afastar o garoto.
Kroll – Atira, porra. Atira!
Rivers atinge Thomas acima do joelho direito. Ele tomba aos gritos. Com metade do galão derramado, Cutler junta-se a eles. Kroll o olha com raiva enquanto manca, mas a ferida não é grave.
Cutler – O som nas árvores. Está aumentando.
O restante da gasolina é espalhado em um círculo que tem na árvore seu início e seu fim. Esperam que o fogo os proteja do que se aproxima.
Thomas, imobilizado, tem o rosto comprimido contra a neve.
Cutler – Veio procurar a mamãe, é?
Thomas – Sim, e ela veio.
Cena 02 – A Dama e os Cães
Agachada junto de uma árvore está uma mulher nua. Atrás dela, uma intransponível barreira de espinhos. Caminha tocando a neve com pés delicados. Cercada de cães que são crianças, sorri quando Cutler percebe que seu isqueiro não funciona.
Dama – Vocês não fizeram os acordos corretos. O fogo não os atenderá aqui.
Cutler – Não se aproxime mais. Ou o seu aqui filhote vai pintar a neve.
Dama – Isso? Issoo é apenas algo que eu fiz. Ele é nada.
Cutler solta Thomas, que se arrasta para longe. Tem nos olhos toda a dor que o desdém lhe causou.
A carne preparada com Dolantina é lançada próxima às bestas. Elas farejam, mas são detidas por um olhar de desaprovação.
Dama – Mas vocês têm algo que é meu.
Cutler – Se não nos deixar ir, nunca mais verá ele.
Ela encara Cutler com uma expressão vazia. Está interessada pelo que dizem, mas comporta-se como se incapaz de sequer compreender o que é uma ameaça direta.
Dama – Se não devolverem o que é meu, tomarão o lugar dele. Ou dele.
Mira uma jaula. Confinado nela está o Sr. Claude. Os braços e pernas foram quebrados para acomodá-lo ao espaço exíguo. As órbitas vazias são contornadas por sangue seco.
Dama – O velho, cego e bisbilhoteiro, agora não pode ver de modo algum. Apenas não foi extinto porque Tom parece ter desenvolvido certa afeição por ele.
Ela acaricia os cabelos de Tom, que até então não tinha sido visto ao seu lado. Os dedos da Dama afagam fios vibrantes e vivos como chamas. As sardas do rosto são as cicatrizes de queimaduras antigas. Ele entende o que está acontecendo, mas não pode fazer nada para mudar isso.
Cutler – Qual é o acordo?
Dama – Devolvam o que roubaram, prendam o que soltaram.
Kroll – Soltaram?
Dama – Sim, vocês deixaram a porta aberta e ele a atravessou.
Kroll – Do que ela está falando?
Rivers – Do As Extremidades, eu acho.
Dama – Vocês foram além da barreira de espinhos no lugar onde se acumulam sangue e secreções. O alfaiate conseguia contê-lo com sua roupa, mas sem ela e sem ele, o guardião dos espinhos está solto.
Kroll – E ele também é um de seus filhos.
Dama – É apenas algo impedindo a passagem.
Cutler – E como espera que peguemos aquela coisa?
Dama – O atraiam do mesmo modo que o alfaiate fazia. Com o sangue e as secreções da carne. O façam próximo dos espinhos, e eu poderei agarrá-lo.
Cutler, Kroll e Rivers preparam-se para partir. Não conseguem ver alternativas além do cumprimento do acordo. A Dama, porém, ainda não está disposta a libertá-los.
Dama – Devem dar de comer aos meus filhos antes que eu abra os espinhos.
Kroll – Quê?
Cutler – Tem carne espalhada pelo chão.
Dama – Ela não serve.
Cutler – Que devorem Thomas.
Dama – O que os faz pensar que há carne e sangue nele?
Kroll, que até então vinha contendo o sangramento na coxa, sacode a mão umedecida. O sangue respingado sobre a neve agita as crianças famintas.
Cutler – Que dê merda para eles comerem, então.
Dama – Devorem!
Uma dúzia de crianças com dentes afiados salta sobre Cutler. Fecham mandíbulas sobre o que encontram. Sobrepujado, esforça-se para não permitir o prazer que seriam seus gritos. Rivers hesita. Kroll olha ao redor, estão cercados pelos espinhos. Não há para onde ir. Ao aproximar-se da massa que cobre Cutler, chuta sem atingir nada.
Dama – Você não sabe a sorte que tem. Basta!
Com o seu tributo entre as presas, os cães afastam-se de Cutler. Levanta-se com a ajuda de Kroll e Rivers. Os espinhos se abrem. Há fragmentos de roupas, sangue e objetos diversos em suas pontas agudas.
Fecham-se atrás deles com o som do vento nas árvores.
Cena 03 – Interlúdio
Rivers – Vocês têm idéia de quantas teorias isso derruba? E quantas cria?
Kroll – Já tinha passado por algo assim?
Rivers – Não, nem perto disso. Um dia eu conto como comecei, mas como isso? Não, de jeito nenhum.
Cutler – E a câmera?
Rivers – Parou de funcionar como todo o resto. Só peguei o garoto atacando o Kroll. Como está a perna?
Kroll – Ok. Fui liberado. A minha história e a do Cutler foram boas o bastante. Sem perguntas.
Cutler – Mas eu vou passar a noite aqui. Em observação.
Kroll – O que era aquilo? Um Elemental?
Rivers – Olha, uma das coisas que aprendi nessa vida é não classificar as coisas que vemos. Não existem respostas prontas. Mas, se é para dar palpite, eu diria que é uma fada ou coisa do tipo. Essa história de seqüestrar crianças fecha muito com as lendas.
Kroll – Fadas? Por acaso aquilo parecia a Sininho para você?
Cutler – Mogli, Sininho… Vai se foder, Kroll. Maldita Geração Disney. O que houve? Seus pais nunca quiseram te levar para sentar no colo do Mickey?
Kroll – Vamos embora. O ração de cachorro aí está ficando azedo.
Naquela noite, Cutler dorme o sono dos analgésicos. Kroll vira-se na cama diversas vezes, sempre despertado pelo uivo de cães.
Segunda-feira, 08/02/2010
Cena 04 – Suspeitas…
Fairweather – Lamento que tenha perdido o seu tempo, Sr. Kroll. Infelizmente, não posso me ausentar do trabalho no momento.
Kroll – Eu acho que sei o que Tom tem.
Fairweather – Vamos nos encontrar no final da tarde de hoje, então. O aguardarei na clínica.
—–
Kroll – Você acha que estão todos envolvidos?
Cutler – Sim, porra. O tal conselheiro municipal, o detetive, Fairweather. Todos.
Kroll – Green (Verde), Oak (Carvalho), Fairweather (Águas Agradáveis),… Rivers (Rios)?
Cutler – Não sei. É um peso-morto. E inofensivo.
Kroll – E dos acordos que ela disse, alguma idéia?
Cutler aponta com o braço enfaixado na direção de uma das inscrições rúnicas que Jebediah Stone gravou em pontos diversos da casa.
Cutler – Aposto que é algo do tipo. Que permita ou impeça que coisas aconteçam.
Kroll – Vou encontrar Fairweather na clínica.
Cutler – Enquanto eu mexo nesses livros. Organizar tudo e ver o que aparece a respeito.
Cena 05 – …que se fortalecem
A clínica particular tem aquela elegância ostensiva que apenas alguém com a carteira vazia apreende. Após alguns minutos, Rose Fairweather deixa o consultório em companhia do Dr. Raymond Phillips.
Kroll – Então, como está o Tom?
O Dr. Phillips responde com diligência às perguntas de Kroll. Contudo, não existem novidades nem um prognóstico. De relevante apenas o fato de que na noite de ontem Tom esteve mais agitado do que em qualquer outro momento desde a chegada.
Fairweather – Me desculpe se criei alguma dificuldade, Sr. Kroll. Sei que desenvolveu laços com Tom no breve período em que estiveram juntos. Mas, como responsável legal por ele, é meu trabalho tomar todas as providências para que receba os melhores cuidados possíveis, especialmente em vista de sua condição delicada. Imagino que já tenha dado-se conta disso e, se não, terá certeza ao visitá-lo pessoalmente.
Voltar a ver Tom, mesmo naquela condição de incerteza, é reconfortante. Mas as suspeitas em relação a Fairweather conduzem a conversa para temas que se revelam espinhosos.
Kroll – A senhora conhece o Bill Green?
Fairweather – Sim, conheço.
Kroll – O conselheiro municipal?
Fairweather – Já nos encontramos em diversas ocasiões. Sua cadeira no Conselho diz respeito ao Lar da Criança diretamente. Ele, inclusive, já esteve lá em algumas oportunidades. Somos considerados modelo na Filadélfia. O que isso tem a ver com Tom?
Kroll – Coisa alguma. Mera curiosidade. E Phineas Claude, a senhora conhece?
Fairweather – O que é isso? Algum jogo de adivinhas? É claro que conheço.
Kroll – Ele está no Hospital Saint Joseph. Com os mesmos sintomas de Tom. Sabia disso?
Phillips – Isso é muito relevante.
Fairweather – Eu não admito esses modos comigo, Sr. Kroll.
Kroll deixa o quarto. A mulher usou de subterfúgios em cada palavra.
O Dr. Phillips quem o aborda no corredor.
Phillips – Esse Sr. Claude. Quem é ele?
Kroll – Tom era meio que o protegido dele.
Phillips – Se viviam juntos e apresentam os mesmos sintomas, é possível que seja um fator ambiental.
Kroll – Duvido… Olha. Essa mulher, Fairweather. Ela não quer o melhor para o Tom. Ouça o que estou dizendo. Ela está escondendo alguma coisa.
Phillips – Mas foi a Sra….
Kroll – Pouco importa. Isso aqui. Não mostre para ela. Eu acho que pode ajudar a despertar o Tom. Faça uns exames, veja o que é. Quem sabe ajude. Mas não mostre para ela. Não deixe que ela saiba.
Phillips – Está bem.
Depois de entregar um pedaço do fruto encontrado com o Sr. Claude, Kroll deixa a clínica. Um grupo de cães afasta-se assim que ele se aproxima do carro.
Cena 06 – Libertação
Fadas levam crianças de seus berços. Às vezes, deixam coisa alguma para trás. Em outras, deixam algo que os pais criam como se fossem seus filhos. A maioria jamais percebe a troca. As fadas, criaturas de sonho presentes em todas as culturas. Onipotentes em seu meio, são capazes de bênçãos e horrores inimagináveis, frutos da total ausência de empatia. Dizem que todas sofrem de algum tipo de interdição. Mas é difícil saber. Uma fada nunca é igual a outra, e elas podem se parecer com o que bem entenderem.
Cutler encontra pouco alento na biblioteca de Stone. Mas as porções de texto encontradas em livros diversos sugerem que existem meios para combater a “vagabunda nua do bosque”. Quando Kroll retorna da clínica concluem que o melhor a fazer é soltar Mogli. Não desejam descumprir acordos como o mais recentemente forjado.
Do lado de fora da casa, cães uivam.
Aprisionado no banheiro fétido, Mogli está coberto por fezes e urina. Sente fome. Mesmo não sabendo o que ele é, Kroll e Cutler reconhecem a negligência no seu trato. Após um banho, registram as digitais do garoto em uma faca de cozinha. Se ele tem os mesmos dedos do conselheiro Bill Green, isso ainda poderá ser útil.
Soltam suas pernas e um braço; abrem a porta; cães uivam na rua para recebê-lo. Como um deles, Mogli parte em disparada pela rua vazia.
Terça-feira, 09/02/2010
Cena 07 – Epílogo
Cutler e Kroll tem os olhos fundos. Ambos dormiram mal. Ambos tiveram o mesmo sonho que deixou como lembrança somente uma frase.
- Isso ainda não foi tudo.