Capítulo 21 – Além das Máscaras e Além dos Espinhos
Terça-feira, 09/02/2010
Cena 01 – Iminência de Algo
Compartilham dos olhos fundos resultantes da noite sem descanso. Rivers, que acabara de chegar, está especialmente agitado. Compensa o cansaço com as suspeitas que a madrugada invocou.
Rivers – Olha, é mais ou menos como um casamento.
Kroll – Quê?
Rivers – O noivo entra. Ele tem seu modo de vestir. A noiva se faz esperar. Então, chega com o vestido branco. Toca a música. A cerimônia é levada adiante por uma autoridade reconhecida. Não percebem? É um ritual!
Cutler – Etapas necessárias para que um objetivo se cumpra.
Rivers – Exato. Nós encontramos no As Extremidades situações diferentes. Do mesmo modo que o Parque Fairmount não foi o que normalmente é quando estivemos lá. Algo tornou isso possível. Só consigo pensar que foi uma espécie de ritual.
Kroll – Quando estivemos lá pela primeira vez havia uma poesia no chão. E a linha na máquina de costura do segundo andar tinha sangue. E havia as máscaras.
Cutler – Isso abre a porta, mas não garante que vamos atrair a presa certa.
Rivers – Qual o osso que precisamos?
Kroll – Sangue e secreções. Foi o que ela disse. Merda, eles faziam orgias e sei lá mais o quê lá dentro.
Cutler – O Porykov tinha alguma rixa com o Tailor, mas antes foram associados ou coisa assim. Quem sabe ele possa apontar pessoas dispostas a fornecer o que precisamos.
Kroll – O cara é a porra de um mafioso russo. Quer mesmo envolver ele nisso?
Cutler – Ele sabe o que nós fizemos.
Kroll – Ele suspeita.
Cutler – Não. Ele sabe. E foi por isso que apertou minha mão. Porque ele sabe o que nós fizemos.
Rivers – O que vocês estão sugerindo?
Cutler – Que nós vamos ter que armar uma cena para atrair aquela coisa sem que tudo se transforme em um banho de sangue.
As alternativas que se avizinham deixam Rivers desconfortável. Não importa o que farão, terão de fazer logo. Seu contato no meio político sugeriu que, após os crimes que ocorreram nas imediações do As Extremidades, a prefeitura, motivada pelas ações do conselheiro municipal Bill Green, estuda um projeto de beneficiamento do bairro. Isso implicaria no fim do acesso fácil ao local.
Ao longo daquela tarde Kroll acompanha Rivers aos arquivos históricos da Filadélfia. A visita é infrutífera devido à incapacidade de ambos no estabelecimento de parâmetros claros para a pesquisa. Pelo que procuram, exatamente?
Cutler tem tanta sorte quanto. Porykov não o recebe. “Quem sabe outro dia, após um aviso com maior antecedência”.
Cena 02 – Fantasmas no Porão
Há dias Cutler não visitava o antiquário. A residência que foi de Jebediah Stone tornou-se seu lar e uma trilha de decisões difíceis tomou o espaço das obrigações de rotina. Mas alguém andou interessado em seu negócio. O vidro quebrado e a porta entreaberta preparam para o óbvio: um escritório revirado, peças no chão, dinheiro roubado. Nada daquilo importa, porém. A passagem para o porão, é para lá que volta os olhos. A única porta trancada de toda a casa serviu como uma maldita isca para o invasor.
No porão, o odor de segredos expostos enche os pulmões de Cutler. Em meio a caixas de objetos vasculhados e descartados estão os tijolos de uma parede que ruiu. A parede que ele ergueu para separar algo a ser esquecido. Algo cuja ausência exibe um espaço vazio.
Quarta-feira, 10/02/2010
Cena 03 – Tempo de Precauções
Uma noite de sono sem reparo precede outro dia de perplexidade sem trégua…
Encontram-se diante de seu refúgio. Kroll leva a sacola de uma loja de souvenires. A embalagem de um apanhador de sonhos se destaca.
Cutler – Que diabo você está fazendo?
Kroll – Mais do que você!
Imposta pelo cansaço, a indisposição os encaminha a atividades distintas. Cutler distribui meia dúzia de livros que trouxe consigo. Deixa-os em um canto qualquer. Foi isso que Stone pediu que fizesse regularmente. Sem maiores especificidades, seria o bastante para alimentar o habitante da casa. Kroll, por sua vez, busca aleatoriamente por obras que indiquem métodos de proteção do sono, combate aos demônios do pesadelo e qualquer outra coisa que o ajude a dormir. Foco, repete para si mesmo o tempo todo, como que para manter-se concentrado.
Ao longo da tarde, pela Internet ou ao telefone, reúnem todas as informações disponíveis a respeito de Rose Fairweather na esperança de encontrar algo que confirme a tese de seu envolvimento com os eventos recentes.
Quinta-feira, 11/02/2010
Cena 04 – Incitação
Quando Rivers chega, Kroll ainda leva no rosto e nos braços as marcas das pinturas feitas na noite anterior. Fechada, a casa guarda o odor das ervas queimadas durante a noite. Sobre a mesa, papéis com canções de povos nativos da América, celtas e outras opções não tão óbvias. Seria cômico, não fosse o trágico que reflete: o desespero de homens pressionados diante de opções que escasseiam.
Rivers – Não achei nada sobre o Parque Fairmount que fosse útil.
Kroll – Nada? Tem certeza que você fez tudo o que podia?
Rivers – Não tem nada, droga. Vocês não percebem que essa pesquisa não vai dar em nada? Nós não sabemos nem que perguntas fazer. O que estamos procurando? Uma fada, um demônio, a morte, um espírito ou fantasma? Mas que merda…
Kroll – Olha, eu estou cansado. Cutler está e você também. Estamos todos esgotados. Mas se nós não fizermos um esforço para conseguir descobrir algo, para ter alguma vantagem, nós estamos perdidos.
Rivers – E vocês não enxergam que, se não fizermos algo logo, nós não vamos ter forças para fazer nada?
Kroll – E fazer o quê?
Rivers – Não sei, não sei. Mas se eu ficar mais uma noite sem dormir acho que vou… eu não sei.
Cutler – Eu tenho uma idéia. E vocês não vão gostar dela: Fairweather.
Kroll – O que tem ela?
Cutler – É obvio que ela está envolvida. E se vamos ter que fazer algo envolvendo sexo e sangue, que seja com ela.
Rivers – Você não tem certeza.
Cutler – Tenho, e mesmo que não tivesse, e daí? Como vamos escolher alguém? Vocês perceberam o que estamos prestes a fazer? Querem pegar alguém inocente? Eu prefiro a supostamente culpada.
Rivers – Isso é o mesmo que inocente.
Cutler – Olha aqui, você chegou dizendo que tínhamos que fazer algo de uma vez. Bom, nós vamos fazer. E lá no fundo dessa sua mente covardezinha, você sabe que não temos opção.
Rivers fica acuado. Não é capaz de admitir que, talvez, Cutler tenha razão. Se não fizerem nada, podem morrer. E aquilo que vitimou duas pessoas nos arredores do As Extremidades vai continuar à solta.
Cena 05 – Últimos Preparativos
A conversa com Rose Fairweather é breve. Por meio de frases ofegantes e amedrontadas Cutler consegue convencê-la de que Bill Green está em apuros e precisa dela. Direciona toda sua habilidade cênica para que os laços que ambos supostamente compartilham a atraiam até uma armadilha.
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Kroll e Rivers encontram-se em uma praça pública com o performer previamente contatado. Com sua maleta e ar de funcionário de cartório, não parece ser capaz de fazer o que logo ordenarão que faça…
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Assim que vence o receio, Rose Fairweather entra no As Extremidades. Chama por Bill Green. Abaixa-se para pegar um casaco deixado no chão. Atrás dela, saído das sombras, Cutler a golpeia na nuca.
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Conduzido ao segundo andar do As Extremidades, o performer abandona as desconfianças conforme se aproxima o momento da apresentação. A fruta encontrada em posse do Sr. Claude, dividida em três partes, é compartilhada por Kroll, Cutler e Rivers.
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As luzes das lanternas; os três homens de aspecto alquebrado; a câmera; a mulher nua de rosto coberto. Trajando couro e a máscara que lhe foi dada, ele, trazido para uma performance, age como que impelido por perversa indiferença. Está pronto para começar.
Cena 06 – O Horror Necessário?
Rose Fairweather está desacordada quando é penetrada. Seu corpo desnudado por Cutler apóia-se como o de uma boneca sobre a máquina de costura onde Kroll a amarrou. Sabem que respira pelo movimento sutil do tecido usado para cobrir-lhe o rosto.
- Sangue e secreções ela disse. Sangue e secreções ela vai ter.
O único som daquela sala é o dos movimentos de quadril que se acentuam, chocando carne contra carne. Por trás da máscara, a respiração pesada se torna arfante.
Rivers esconde-se atrás da câmera para ignorar seu papel naquilo tudo. Convencendo-se de que é mera testemunha, busca minimizar o horror pelo qual também é responsável.
Cutler escuta os murmúrios, mas é Kroll quem dá o sinal para que aquilo vá adiante. O golpes no rosto impede que Rose retome a consciência. Os demais mancham de sangue suas faces ocultas. Uma poesia é recitada.
Nós gastamos nosso tempo
Encharcados em opulento esplendor
E quando das badaladas noite adentro,
Irão as almas iluminadas se opor?
Vamos beber à beira extremosa
De piscinas de excrementos
Todos os tipos de glamour
Que Mefistófeles emprestou.
Foi da escada de prata através da escuridão
Que naquela noite veio o culto e seu açoite.
Ele era um predador, o frio credor
A alma havia fiado no pergaminho amarelado.
Agora, é hora de vestir a pele
Sentir o toque que ao prazer compele
Abrir-se ao inferno de cada um
Espaço vazio não haverá nenhum.
Mero instrumento de algo terrível, o corpo de Rose é reclinado sobre a máquina de costura. O aparelho começa a trabalhar. A linha marcada de vermelho corre enquanto estalos metálicos ditam o ritmo das penetrações. Sangue espalha-se pela pélvis e toca o chão.
Ao fundo da sala, um silhueta negra avança. Permanece a dois passos do espetáculo odioso criado em sua homenagem. Mas o deus sórdido daquele antro não está saciado. E em resposta a um apelo silencioso o violador redobra esforços. Um sorriso lhe deforma as feições. Não há cansaço ou hesitação, apenas a diligência histérica do estupro e do espancamento.
Um corpo violenta outro e a consciência das testemunhas fragmenta-se.
Essa era a única forma de fazer com que as mortes parassem.
Ela era parte disso – cansado demais, cansado demais – e agora está recebendo a punição devida.
Nós fizemos tudo o que podíamos antes de chegar aqui. Tudo.
Vento frio sopra no salão. O som da vegetação se emaranhando interrompe pensamentos e leva o olhar na direção das escadas. Pés delicados são o primeiro vislumbre de uma beleza alva e pura, antítese de tudo que ali acontece.
A silhueta trajando couro leva a mão ao peito. Caminha para a escada prateada enquanto arranca seu traje com o som de pele dilacerada. Revela-se um eunuco bestial, com sangue pingando das mãos criadas para destrinchar e o corpo marcado pelos riscos vermelhos que os espinhos que separam mundos jamais permitem cicatrizar.
A Bela Dama sem Piedade sorri diante do rito cruel ali celebrado. Leva consigo um brinquedo e deixa para trás aqueles dos quais se cansou.
Acordam de seu transe quando os corpos sobre a máquina de costura separam-se com um baque. Estão mortos.
Cutler tem sangue-frio para apunhalar ambos e abandonar a faca com as impressões retiradas de Mogli. Espera que isso cause alguma dor de cabeça a Bill Green.
Rivers desliga a câmera e guarda seus demônios junto dela.
Kroll nada tem a dizer.